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A Medicina Baseada em Evidências em Tempos de Cloroquina

A Medicina Baseada em Evidências em Tempos de Cloroquina
Fernando Arfux Maluf
mai. 30 - 6 min de leitura
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Foi publicado no dia 22 de maio, no prestigiado jornal científico ‘The Lancet’, o maior estudo até a data acerca da Cloroquina para a COVID-19**, que apresentou conclusões desanimadoras para esta forma de tratamento: aumento importante da mortalidade e do risco de arritmias cardíacas para os que usarem o fármaco.

A publicação, divulgada amplamente pelos meios de comunicação, trouxe um protagonismo ao meio científico, após controvérsias envolvendo o fármaco. Intenções políticas e desespero diante de um contexto absolutamente devastador, cultivaram defesas infundadas do seu uso para pacientes infectados pelo o vírus antes mesmo da publicação de qualquer estudo conclusivo in vivo que apresentasse evidências suficientes para respaldar tal tomada de decisão.

O tempo foi passando e as evidências apontavam cada vez menos para um otimismo em relação a este tratamento, o que não pareceu alterar as posições dos defensores da droga. Hoje, sabemos da ineficácia do fármaco para essa doença. Mas e se os resultados tivessem sido diferentes? E se, no final, a cloroquina tivesse funcionado? Que reflexões essa possibilidade nos traz?

No Século XIX, a prática da sangria atingia seu ápice na Europa, sendo amplamente utilizada para tratar enfermidades cuja causa não podia estar mais distante de algo curável com a perda intencional de sangue.

Sim, o conhecimento atual da fisiopatologia das doenças faz da prática para a maioria das moléstias algo risível, mas, na época, já havia evidências que apontavam para incoerências na prática: Descobertas de Vesalius e Harvey nos Séculos XVI e XVII já evidenciavam erros nas teorias de anatomia e fisiologia de Cláudio Galeno (alicerces promotores dos princípios da sangria). Então por que a prática perdurou por tanto tempo?

Talvez estejamos diante de um deja vu histórico: Práticas perigosas, como a sangria, levianamente perduram quando a Medicina se faz baseada em qualquer outro princípio que não a de evidências científicas.

As pressões econômicas, sociais, políticas, e o sentimento de impotência diante de uma doença com projeções tão corrosivas para o nosso futuro tomaram o lugar da Medicina baseada em evidências, e distanciaram, da tomada de decisão mais apropriada, os defensores da cloroquina para a doença. A noção de que qualquer tratamento é melhor do que nenhum – que se repete nos dois casos - vai de encontro ao princípio da não maleficência primum non nocere: primeiro, não prejudicar.

Essas reflexões, no entanto, ainda parecem distantes de efetivarem alguma mudança nas interpretações das evidências científicas. Pesquisas da UNICAMP de 2015 sobre a percepção social da ciência e tecnologia apontam para um interesse da maior parte da população brasileira pelo campo científico, o que contrasta com indícios de baixo conhecimento sobre o tema.

Esse distanciamento entre a metodologia científica e a população e a política se reflete em outros episódios de precipitação das etapas da pesquisa clínica diante de pressões sociais, como o caso da Fosfoetanolamina para o câncer, que teve distribuição proibida pela Anvisa por evidências insuficientes de sua eficácia ao mesmo tempo em que o Congresso aprovava a lei que autorizava seu uso.

A fosfoetanolamina, bem como a cloroquina, poderiam posteriormente se mostrarem funcionantes, mas, enquanto a conduta médica não é baseada nas evidências da literatura, a Medicina se torna adivinhação, e não nos diferenciamos dos que praticavam a sangria quando o corpo de conhecimentos já sugeria o contrário.

A sorte não deve ser valorizada como virtude no desenvolvimento de conhecimento científico. Quando a adivinhação se torna o Norte, nos colocamos de forma submissa ao acaso, aceitando um futuro que olha para o seu passado, e ri das práticas que ocorriam.

 

**Adendo:

No dia 04 de Junho, pouco menos de duas semanas depois da publicação do artigo, a Revista científica The Lancet publicou uma nota de retratação do estudo sobre a Cloroquina citado neste texto, sob a justificativa de falhas na garantia de veracidade dos dados fornecidos pela empresa Surgisphere. É o segundo estudo envolvendo a empresa que foi retratado.

A manutenção da citação no texto envolve o fato de o seu objetivo não ser informar ou discutir a eficácia ou ineficácia da cloroquina para a COVID-19, mas sim refletir sobre a prática médica sem evidências, e inclusive levantar a possibilidade de que a conduta de defender o uso da droga em questão, sem evidências, não se justificaria ainda que fosse posteriormente constatado que a cloroquina funciona.

Apesar disso, mesmo com a retratação do artigo do The Lancet, não há evidências de eficácia da Cloroquina. Existem outras evidências, concretas e não fraudulentas, que compartilham da mesma conclusão, em relação a eficácia, do irresponsável artigo retratado: ao que tudo indica, não há benefício no uso do fármaco. Um exemplo é o ensaio clínico randomizado publicado no New England Journal of Medicine, outro prestigiado jornal científico: “A Randomized Trial of Hydroxychloroquine as Postexposure Prophylaxis for Covid-19"

Optei por editar o texto adicionando este adendo em vez de remover a parte em que cito o estudo, porque me parece que os acontecimentos envolvendo a sua retratação, embora lamentáveis, fortalecem o argumento de que a ciência segue como a melhor ferramenta que temos para nos guiar diante do desconhecido. A retratação, pelo menos enfatiza o que talvez seja a maior virtude da ciência: admitir seus erros quando confrontada diante de novas evidências, ou, no caso da retratação, diante da ausência de veracidade dos dados que levam às evidências. Errando ou acertando, mas sempre disposta a "mudar de ideia quando mudam os fatos".

 

REFERÊNCIAS:

- Hydroxychloroquine or chloroquine with or without a macrolide for treatment of COVID-19: a multinational registry analysis (The Lancet)

- The history of bloodletting (British Columbia Medical Journal)

- Percepção social da ciência e da tecnologia no Brasil (Centro de Gestão em Estudos Estratégicos e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação)

- A Randomized Trial of Hydroxychloroquine as Postexposure Prophylaxis for Covid-19 (The New England Journal of Medicine)


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