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A revolução intestinal: microbiota, tecnologia e perspectivas do futuro

A revolução intestinal: microbiota, tecnologia e perspectivas do futuro
Matheus Scalzilli
jun. 18 - 7 min de leitura
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Durante o século XVIII,  em resposta a Revolução Industrial, surgia o movimento ambientalista que buscava entender as consequências das nossas ações sobre o meio ambiente e como mitigá-las (1). Aproximadamente trezentos anos depois, crescia uma vertente científica que investigava outro ecossistema que também exige nossa atenção e cuidado (2). Essa área de pesquisa decidiu abordar nosso organismo de uma forma diferente, não simplesmente como um ser independente, mas também como um veículo portador de um ecossistema interno próprio com peculiaridades físico-químicas e rico em diversidade biológica: a microbiota intestinal humana.

A flora intestinal inclui uma variedade de microrganismos, predominantemente bactérias, que colonizam o intestino a partir do nascimento (2). A importância da microbiota para a saúde humana foi subestimada durante décadas, apesar dos grandes avanços em microbiologia. Classicamente, desde o surgimento da teoria microbiana da doença com Louis Pasteur e Robert Koch, criou-se a percepção de que colônias bacterianas no organismo eram necessariamente patológicas (3). Anos depois, entretanto, Ilya Ilyich Mechnikov, um microbiologista ucraniano,  propôs utilizar a ingestão de bactérias ácido-láticas como meio de reduzir a putrefação intestinal e prolongar a vida (3). A partir daí temos os primórdios da engenharia microbiótica: a utilização de microrganismos vivos com propósito terapêutico.

Assim como as espécies nos macroecossistemas, as espécies bacterianas da microbiota intestinal também competem por recursos, se adaptam e respondem a mudanças bruscas no ambiente (3). Da forma como estamos, atualmente, nos tornando mais conscientes em relação ao nosso impacto sobre o nosso ecossistema também estamos ganhando conhecimento acerca do nosso ecossistema intestinal e, principalmente, suas manifestações fisiológicas. Já sabemos que as bactérias residentes no nosso intestino possuem um papel fundamental na modulação do sistema imune, na sinalização intercelular neuro-endócrina e na comunicação entre o Sistema Nervoso Entérico e o Sistema Nervoso Central, conjunto conhecido como Eixo Cérebro-Intestino (4). O próximo passo agora é avaliar exatamente como se dá essa influência e como utilizá-la da melhor forma.

Atualmente, existem estudos que relatam a influência da microbiota intestinal em comorbidades como a obesidade e o potencial de dietas voltadas a modulação do microbioma intestinal para remediar essa condição. Zhang e sua equipe demonstraram que a microbiota de obesos dietéticos e obesos portadores de Síndrome de Willis (uma patologia genética associada com disfunção cognitiva e obesidade) possuíam microbiotas semelhantes (5). A microbiota dos pacientes possuíam características marcantes de disbiose: produção aumentada de TMAO e indoxil sulfato – metabólitos sabidamente indutores de deterioração metabólica – e aumento das vias de biossíntese de antígenos bacterianos como a endotoxina.

As principais bactérias associadas aos efeitos prejudiciais nesses pacientes tem como fonte energética a proteína e a gordura, logo, Zhang e sua equipe testaram uma dieta rica em carboidratos não absorvíveis, em contrapartida a dieta rica em proteína e gordura. Os carboidratos alcançavam a porção distal do trato gastrointestinal e serviram de substrato para fermentação nas bactérias julgadas boas (não produtoras de TMAO e indoxil sulfato) e dessa forma essas se tornariam predominante. Ao final do estudo, como previsto, houve uma alteração positiva na fauna intestinal com predomínio das bactérias fermentadoras de carboidratos. Entretanto, devido a complexidade do microambiente intestinal as interações entre as bactérias e o ambiente, as bactérias e os alimentos, suas manifestações no indivíduo e a imaturidade dessa área de pesquisa ainda é difícil estabelecer correlações concretas as inúmeras variáveis: uma barreira monumental para os pesquisadores.

Se durante a Revolução Industrial a tecnologia foi o grande antagonista, hoje, ela se redime na conscientização do microambiente intestinal. A inteligência artificial e o machine learning, principalmente, com a sua alta capacidade de processamento é possível sobrepor diversas camadas de variáveis e gerar simulações extremamente precisas da realidade. Diante disso, em breve seremos capazes de  recriar virtualmente o microambiente intestinal, estipular os efeitos das intervenções dietéticas na microbiota intestinal e suas consequências no organismo (6).

Em um futuro não muito distante teremos a possibilidade de criar dietas personalizadas para determinadas populações em contramão das recomendações gerais atuais (6) . As recomendações seriam feitas a partir da integração de dois sistemas. O primeiro seria responsável pela identificação da microbiota ótima levando em consideração o indivíduo, sua meta e o seu ambiente enquanto que o segundo iria abordar as recomendações para atingir a microbiota desejada (6).

As possibilidades levantadas por essa nova aplicação tecnológica são inimagináveis, seu potencial terapêutico abrange desde a imunologia;  a regulação metabólica até a estagnação de doenças neurodegenerativas como o Alzheimer (7) e sabe-se lá quais outras aplicações ainda podemos descobrir. Por enquanto, entretanto, ainda estamos nas fases iniciais de montar o data-base de informações, mas o futuro é inquestionavelmente promissor. É possível que o avanço tecnológico, ironicamente, resgatará parcialmente as origens xamânicas do médico que buscava o potencial terapêutico no que esta disponível e não somente sintetizar novos compostos. Acredito que conforme a produção cientifica e, consequentemente, a popularização do estudo da microbiologia intestinal for aumentando a nossa relação com a comida além de com nos mesmos ganharemos uma nova profundidade e aquele velho ditado, “você é o que você come”, ganha um novo significado.

 


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Referências:

1 - Maciel Pott C, Costa Estrela C. Histórico ambiental: desastres ambientais e o despertar de um novo pensamento [Internet]. Scielo. 2017 [cited 11 September 2020]. Available from: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142017000100271

2- Zatorski H, Fichna J. What is the Future of the Gut Microbiota-Related Treatment? Toward Modulation of Microbiota in Preventive and Therapeutic Medicine [Internet]. Scielo. 2014 [cited 11 September 2020]. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4335382/

3. Gonçalves Malaquias A. O micróbio protagonista: notas sobre a divulgação da bacteriologia na Gazeta Médica da Bahia, século XIX [Internet]. Scielo. 2016 [cited 11 September 2020]. Available from: https://www.scielo.br/pdf/hcsm/v23n3/0104-5970-hcsm-S0104-59702016005000015.pdf

4 - Zorzo R. Impacto do microbioma intestinal no Eixo Cérebro-Intestino [Internet]. Thieme. 2017 [cited 11 September 2020]. Available from: https://www.thieme-connect.com/products/ejournals/abstract/10.1055/s-0040-1705652

5 - Zhang C, Yin A, Li H, Wang R, Wu G, Shen J et al. Dietary Modulation of Gut Microbiota Contributes to Alleviation of Both Genetic and Simple Obesity in Children [Internet]. Scielo. 2015 [cited 11 September 2020]. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4563136/

6 - Eetemadi A, Rai N, Merchel Piovesan Pereira B, Kim M, Schmitz H, Tagkopoulos I. The Computational Diet: A Review of Computational Methods Across Diet, Microbiome, and Health [Internet]. Scielo. 2020 [cited 11 September 2020]. Available from:

7 - Sochocka M, Donskow-Łysoniewska K, Satler Diniz B, Kurpas D, Brzozowska E, Leszek J. The Gut Microbiome Alterations and Inflammation-Driven Pathogenesis of Alzheimer's Disease-a Critical Review [Internet]. Pubmed. 2018 [cited 11 September 2020]. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/29936690/

 


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