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Autonomia do paciente em fim de vida

Autonomia do paciente em fim de vida
Luciana Dadalto
jun. 8 - 10 min de leitura
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Autonomia do paciente em fim de vida

O vocábulo ´autonomia´ tem origem etimológica nas palavras gregas autos (próprio) e nomos (regra, lei). É, portanto, uma palavra que designa as regras próprias de cada indivíduo, o espaço da vida do sujeito em que nenhum sujeito externo pode penetrar.

Juridicamente, autonomia está relacionada à liberdade, e é tida como “o direito ao exercício da própria liberdade pessoal, livre de interferências arbitrárias ou injuntificadas¨[1]. Sendo assim, o sujeito autônomo tem o direito de tomar decisões sobre diversos aspectos de sua vida, sejam eles patrimoniais ou existenciais.

É certo que a autonomia existencial é um ganho mais recente da sociedade e, portanto, está em contínuo processo de transformação. As discussões sobre a autonomia em torno de cuidados de saúde enquadram-se nessa seara, sofrendo, cotidianamente, novos questionamentos, especialmente no que tange às discussões acerca da autonomia do paciente em fim de vida.

No estudo da autonomia dos pacientes, os bioeticistas Beauchamp e Childress construiram, na década de 1970, modelos de decisões substitutas, para serem usados quando os pacientes não mais puderem expressar suas vontade:

(i) julgamento substituto: que “parte da premissa de que as decisões sobre tratamentos pertencem propriamente ao paciente incapaz ou não-autônomo, em virtude dos direitos à autonomia e à privacidade”[2]. Por este modelo, o paciente nomeia um decisor substituto, por meio de um documento que hoje conheçemos como mandato duradouro, sendo certo que esse decisor que deverá tomar decisões como se fosse o paciente.

(ii) pura autonomia: que “se aplica exclusivamente a pacientes que já foram autônomos e expressaram uma decisão autônoma ou preferência relevante”[3]. Esse é o modelo que se insere o testamento vital, já trabalhado em nosso primeiro post, juntamente com o mandato duradouro.

(iii) melhores interesses: parte da ideia de que o decisor substituto “deve determinar o maior benefício entre as opções possíveis, atribuindo diferentes pesos aos interesses que o paciente tem em cada opção e subtraindo os riscos e os custos inerentes a cada uma”[4]. Esse é o modelo adotado pelos médicos e, comumente no Brasil, pelos pacientes, quando inexiste qualquer manifestação de vontade prévia do paciente.

Percebe-se que cada modelo aplica-se a uma situação concreta bastante específica e todos parte de uma premissa inicial: a existência ou inexistência de vontade prévia manifestada pelo paciente.

Isso posto, é preciso pontuar e discorrer sobre alguns mitos que envolvem a discussão da autonomia do paciente:

a) o paciente idoso não tem autonomia para decidir: a associação entre perda de autonomia e envelhecimento é muito comum, contudo, é preciso deixar claro que o processo de envelhecimento, per se, não incapacita o idoso. “Ocorre que a fragilidade física é tomada, socialmente como fator incapacitante, desconsiderando o idoso como sujeito de necessidades e como pessoa capaz de continuar a construção de sua personalidade”[5] (TEIXEIRA; SÁ, 2007, p.76).

A verdade é que ninguém perde capacidade por critério etário no Brasil, portanto, a ideia de que o idoso é um sujeito incapaz é, em verdade, uma confusão entre incapacidade e vulnerabilidade. O idoso é um sujeito vulnerável e, portanto, merece cuidados especiais pois, como afirma Elias[6] “suas vicissitudes devem ser consideradas, a partir da consideração de que o processo de envelhecer acarreta uma transformação essencial na posição de alguém na sociedade e de todas as suas relações com os outros”. Todavia, estamos falando apenas em diferenças no cuidado, como, por exemplo, preferência em filas nos bancos, assento preferencial no transporte público, aposentadoria, remédios a baixo custo, entre outros. Tais diferenças apenas tornam o idoso merecedor de atenção, o que não pode ser confundido com um sujeito incapacitado e, portanto, sem autonomia, impossibilitado de tomar decisões em sua vida.

b) os pais sempre decidem pelo paciente menor: tradicionalmente, os genitores são consultados para que autorizem determinada intervenção médica em seus filhos, uma vez que os menores estão sujeitos ao poder parental.

A Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina que, no artigo 6o, reconhece a legitimidade do representante legal em decidir pelo incapaz.

Artigo 6.º

(Protecão das pessoas que careçam de capacidade para prestar o seu consentimento)

§2 - Sempre que, nos termos da lei, um menor careça de capacidade para consentir numa intervenção, esta não poderá ser efetuada sem a autorização do seu representante, de uma autoridade ou de uma pessoa ou instância designada pela lei.

A opinião do menor é tomada em consideração como um fator cada vez mais determinante, em função da sua idade e do seu grau de maturidade.

Entretanto, esse concepção tradicional merece questionamento em virtude do caráter personalíssimo das decisões sobre saúde, ou seja, essas decisões pertencem exclusivamente ao paciente, seja ele capaz ou incapaz, em virtude das características dos direitos de personalidade, assim há uma forte corrente defensora do argumento que os pais não poderiam tomar decisões em nome dos filhos, sem que esses o tenham autorizado, cabendo essas decisões aos médicos, dentro do modelo do melhor interesse do paciente.

c) os familiares sabem o que é melhor para o paciente: é muito comum os médicos serem surpreendidos com pedidos dos familiares para que poupem o paciente do diagnóstico.

“Por favor, doutor, não conte para meu pai que ele tem câncer. Ele não aguentará”. “Não fale com minha mãe que a doença piorou e ela tem pouco tempo de vida, isso a matará mais rápido”. “Eu sei o que é melhor para meu irmão”. Todas essas frases são ouvidas cotidianamente nos corredores dos hospitais, embasadas na falsa premissa de que o paciente em fim de vida é incapaz e precisa ser poupado da realidade pelos médicos.

Aqui, é preciso ter em mente que quando o paciente em fim de vida ainda está lúcido ele é o único sujeito que pode tomar decisões sobre seus cuidados de saúde. Omitir a realidade do quadro clínico para o paciente, quando inexiste pedido expresso dele, é eticamente inaceitável. Portanto, para as frases acima, só cabe uma resposta: “É direito do paciente saber seu diagnóstico e prognóstico, cabendo a ele tomar as decisões sobre cuidados, tratamentos e procedimentos médicos”.

O papel da família, quando o paciente em fim de vida é autônomo ou deixou um testamento vital é apenas apoiar o paciente, ajudá-lo a viver seus últimos dias de forma digna, não cabendo aos familiares a tomada de decisões.

d) os médicos sabem o que é melhor para o paciente: o Código de Ética Médica, em seu artigo 28, veda ao médico “deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.”

Na exposição de motivos, o então presidente Roberto D´Ávila deixa claro a preocupação do Conselho Federal de Medicina em superar o paternalismo médico, ao estabelecer o princípio da autonomia do paciente.

Com isso, o Código de Ética Médica se estabelece também como indutor de transformações no campo da política, sem, contudo, negar sua principal contribuição para a sociedade: o reforço à autonomia do paciente. Ou seja, aquele que recebe atenção e cuidado passa a ter o direito de recusar ou escolher seu tratamento.

Tal aperfeiçoamento corrige a falha histórica que deu ao médico um papel paternalista e autoritário nessa relação, fazendo-a progredir rumo à cooperação – abordagem sempre preocupada em assegurar a beneficência das ações profissionais em acordo com o interesse do paciente.

Percebe-se assim, que apesar de detentor do conhecimento técnico, deve o médico, sempre que possível, dar o poder de escolha ao paciente, cabendo ao médico a decisão apenas quando o paciente não tem capacidade para consentir e não deixou um testamento vital ou um mandato duradouro.

Em resumo, a autonomia é conquista recente dos pacientes, cabendo esse direito inclusive aos pacientes em fim de vida, sujeitos vulneráveis mas não incapazes, que, sempre que possível, devem ser ouvidos no processo decisório, ou terem seu testamento vital e/ou seu mandato duradouro cumprido, ou, por último, inexistindo autonomia e documento previamente escrito, ter seu melhor interesse preservado pelo médico.

[1] BAGARIC, Mirko. Euthanasia: patient autonomy versus the public good. University of Tasmanian Law Review, v.18, n.1, 1999, p. 146-167. Disponível em: <http://www.austlii.edu.au/au/journals/UTasLawRw/1999/6.html>, acesso em 20 jul. 2015.

[2] BEAUCHAMP; CHILDRESS. Princípios de ética biomédica. Trad. Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2002, p.196.

[3] BEAUCHAMP; CHILDRESS. Princípios de ética biomédica. Trad. Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2002, p.199.

[4] BEAUCHAMP; CHILDRESS. Princípios de ética biomédica. Trad. Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2002, p.205.

[5] SÁ, Maria de Fátima Freire de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Envelhecendo com autonomia. In: FIÚZA, César; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de (Org.). Direito Civil: Atualidades II. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2007, p.76.

[6] ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p.83.


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