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Demasiado Humano

Demasiado Humano
Crônicas de Anestesia
set. 5 - 6 min de leitura
020

Fazia pouco mais de 48 horas que eu havia me formado. O diploma brilhante e com cheiro de novo dizia que eu agora, do alto dos meus 23 anos, era médico! Teoricamente, bem teoricamente, boa parte do conhecimento de uns 3000 anos de lutas contra as doenças estavam armazenados na minha cabeça. Como eu disse, teoricamente.

O barulho da festa de formatura ainda reverberava e eu estava ali de jaleco, carimbo(feito às pressas) e estetoscópio no pescoço esperando o primeiro ou primeira paciente. Era um posto de saúde. Um lugar simples, como todos são, onde alguns segundos antes(sim, pareciam segundos) eu passara a caminho da escola, depois do cursinho e ultimamente para a faculdade.

A sensação era de uma batalha iminente. Como um soldado recém chegado eu transpirava. Tentava fazer uma revisão de alguns temas na mente mas estava tudo embaralhado. Vozes dos professores, textos e mais textos, imagens num microscópio. Uma bela confusão. Então uma paciente chegou. A funcionária do posto trouxe uma pastinha com um nome. Um nome que minha memória não consegue trazer de volta. Ela não sabia(será?), mas seria minha primeira paciente.

Entrou, uma mulher jovem, eu a cumprimentei. Sentou-se e eu lhe perguntei: - O que a trouxe aqui?(pergunta de livro-texto). Ela disse: estou com muita tosse. Uma tosse que não passa. Pronto! Minha mente foi sugada para um redemoinho de interrogações. Poderia ser apenas uma tosse banal, uma virose inofensiva, mas poderia ser TUDO! Bacilos de Koch, pneumococos, estreptococos, doenças inflamatórias dos pulmões, problemas cardíacos, lúpus!!! Poderia ser qualquer coisa.

Era minha função, era meu treinamento, era minha primeiríssima luta descobrir o motivo e sanar aquela tosse que estava incomodando tanto. Para mim, naquele instante não era só uma tosse, era A TOSSE. Era a pior coisa que poderia acontecer para aquela mulher naquele momento. Ela estava tranquila apesar da queixa, eu era um poço de dúvidas e medos.

Então começou um bombardeio: Febre? Rouquidão? Perdeu peso? Tem catarro? Fuma? Bebe? Toma alguma medicação? Sente alguma dor? Já teve esta tosse alguma vez? Tem alergia de alguma coisa? Está ruim para dormir?.....e mais um punhado de perguntas que eu devo ter feito e nem me recordo mais. Tempo contínuo tudo sendo anotado freneticamente, faíscas saindo da caneta e fumaça da minha cabeça. Nada. Apenas tosse e um pouco de irritação na garganta.

Exame físico. A busca persistia. Ectoscopia. Abra a boca e diga "aaahhh". Orofaringe normal, ou estaria um pouco avermelhada demais?Amígdalas?(Tonsilas! Disse uma voz de professor na minha cabeça)Gânglios cervicais? Algum? Não. Movimentos respiratórios normais. Sem tiragem, sem esforço. Palpação, diga 33! Percussão. Tum, tum, tum...tum. Normal. Se tinha alguma consolidação não estava ali ou eu não conseguia perceber. Estetoscópio! Ausculta. Ápices, bases. Anterior, posterior. Nada. Som claro pulmonar. Vida normal. Teria algum sibilo se escondido bem naquela hora? Algum estertor que se calou? Não, nada mesmo.

Eu continuava raciocinando a 120 km/h. Exames! Vamos pedir exames! A paciente mantinha a passividade. Me olhava como se estivesse consultando com um médico muito mais velho. Isso me alegrou um pouco. Ela confiava! Ela acreditava! O título que o diploma trazia estava iluminando a sala, como um anúncio fluorescente em uma loja de eletrônicos.

Teremos que fazer alguns exames, eu disse. Tudo bem, ela respondeu. Normal. É isso que se espera de um médico mesmo. Rx de tórax, rx de seios da face, hemograma, urina(!!!), glicemia, coagulograma.....uma grande lista. Gastei com gosto o dinheiro dos contribuintes naquele dia. Médico novo é médico caro, alguém já deve ter dito isto antes. Faça estes exames e me traga quando estiverem prontos tá bom? Sim! Ela estava satisfeita. Mas ainda faltava alguma coisa. Um remédio! Uma panaceia(boa esta palavra).

Passei um xarope. Ambroxol. Um expectorante. Antibiótico? Não, não havia indicação. Me orgulhei disso, havia discernimento, havia conduta. Dipirona. Tome este se tiver dor ou febre a cada 6 horas ok? Sim. Precisa de atestado? Pergunta complicada, mas ela não precisava. Sou dona de casa, ela disse. Foi embora, agradeceu timidamente. Havia terminado.

Anotei tudo, absolutamente tudo naquele prontuário. Mesmo assim fiquei imaginando se não tinha faltado nada. Será? Deixei escapar alguma pergunta? Fui muito apressado? Poderia ter acrescentado algum medicamento? As dúvidas continuavam chegando e um outro paciente já estava a caminho.

A mesma paciente retornou uns dias depois. Disse que estava com menos tosse. Exames feitos. Normais, todos e cada um deles. Virose? Alergia? Alguma coisa entre estas duas opções? Não. Eu havia feito o meu trabalho da melhor forma possível. Havia honrado uma longa História de lutas e decepções, medos e perguntas, fracassos e sucessos. A luta da vida e da morte tão antiga quanto a própria Terra.

Muitas outras lutas, minha lutas, viriam e continuam vindo dia após dia, mais fáceis que aquela primeira paciente e sua tosse, mais difíceis que os casos mais complicados que já enfrentei. Depois de alguns anos, nem tantos assim, olho para trás com orgulho e respeito por esta pequena trajetória. Por aqueles que eu ajudei e mesmo por aqueles que não consegui fazer tanta diferença. A grande lição disso tudo, eu acho, é que a faculdade de medicina não termina nunca.

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