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Doença de Creutzfeldt-Jakob: Um Panorama Geral e Recorte Epidemiológico no Brasil

Doença de Creutzfeldt-Jakob: Um Panorama Geral e Recorte Epidemiológico no Brasil
Esther Padilha da Silveira
jan. 5 - 13 min de leitura
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Fascinado pela investigação epidemiológica e pelo ambiente tropical margeado pelas águas tranquilas do oceano Pacífico, o médico e antropólogo americano Daniel Carleton Gajdusek (1923-2008) mal imaginava estar prestes a descrever a etiopatogenia de uma das doenças neurodegenerativas mais raras do mundo [1]. Durante sua passagem pela Oceania em 1957, em seu percurso turístico da Austrália rumo aos Estados Unidos, Gajdusek deparou-se com uma estranha epidemia que acometia a tribo Fore, povo local de Papua Nova Guiné, afetando principalmente mulheres e crianças, as quais manifestavam fraqueza muscular e tremores incontroláveis, além de falta de coordenação motora seguida de óbito [2].

O “mal” ou “feitiço”, como alcunhado pela referente população aborígene, contudo, originava-se de uma prática ritualística muito comum: o canibalismo, o que, na cultura tribal, representava respeito aos falecidos por parte das famílias enlutadas. Dentro do costume, havia a célebre ingestão do cérebro de cadáveres, muito efetuada pelas populações feminina e infantil, o que explica a maior incidência de adoecimento desses grupos.

Apesar de proibido o cerimonial antropofágico, a origem do “kuru”, que significa “tremendo de febre e de frio” no dialeto da tribo (tradução livre do original: Adams et al., Principles of Neurology, 6th ed., p. 773), deriva de uma alteração na proteína priônica humana (PrP), presente em condições normais e capaz de depositar-se nos cérebros humanos e de outros mamíferos, causando a encefalopatia espongiforme transmissível (EET) humana, destacando-se a Doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ).

Etiologia

A PrP, também conhecida como príon, é sintetizada pelo gene PrP (PRNP), localizado no braço curto do cromossomo 20, de modo que a alteração da proteína normal (PrPc) para a conformação patológica (PrPSc) decorre de polimorfismos no códon 129 do gene envolvendo os aminoácidos metionina (Met) ou valina (Val). Além dessa mudança, modificações nas propriedades físico-químicas das variantes da PrPSc são capazes de gerar um amplo espectro de manifestações clínicas dentro da DCJ [3], dificultando a identificação prévia da patologia.

A deposição da proteína anormal possui a capacidade de provocar modificações na substância cinzenta do cérebro, particularmente de caráter atrófico, bem como gliose, perda neuronal e rarefação de neurópilos [3]. Os achados neuropatológicos mostram ainda que a deposição da PrP se faz presente majoritariamente no neocórtex, subículo, estriado, tálamo, córtex cerebelar, colículos superiores, inferiores e substância negra do mesencéfalo, além do núcleo pontino, núcleo olivar inferior e coluna posterior da medula espinhal [3]. O conjunto dessas modificações a nível celular e macroscópico levam a uma série de manifestações clínicas, a saber demência progressiva, mioclonias, distúrbios cerebelares, piramidais, extrapiramidais, visuais e psiquiátricos [4] e mutismo acinético na fase terminal [5].

A DCJ pode então ser definida como uma doença neurodegenerativa rara, rapidamente progressiva, que não apresenta predileção por sexo e que acomete, em primazia, indivíduos entre os 50 e 80 anos de idade.

A DCJ pode ainda ser classificada como forma (a) esporádica, a qual responde por 85% dos casos; (b) hereditária, advinda das mutações no gene PRPN; (c) iatrogênica, decorrente da inoculação de príons em materiais contaminados, como tecidos transplantados; e (d) variante (vDCJ) ou “doença da vaca louca”, cuja transmissão se dá por ingesta de carne bovina contaminada [6].

Diagnóstico

O diagnóstico clínico é dificultado pela quantidade de variações sintomáticas dentro da própria DCJ, bem como devido a semelhança entre os sintomas e demais doenças neurológicas, a citar as doenças de Alzheimer, Parkinson e Huntington [7]. A ressonância magnética (RM) constitui a principal referência para diagnóstico. Nos casos esporádicos, há presença de sinais de hiperintensidade em FLAIR e T2 nos núcleos caudado, putâmen e córtex cerebral, enquanto que, nos quadros de vDCJ, visualizam-se hipersinais simetricamente no tálamo [5]. Salienta-se também a importância dos biomarcadores proteicos do líquido cefalorraquidiano (LCR), incluindo a proteína 14.3.3, S100b (proteína B de ligação ao cálcio S100) e a tau, as quais apresentam-se em níveis elevados em pacientes com DCJ, apesar da limitada especificidade do exame [8].

Uma técnica relativamente nova é o “real-time quaking-induced conversion” (RT-QuIC), a qual parte da análise laboratorial da PrP recombinante e possui alta sensibilidade e especificidade [9]. Apesar de pouco resolutivo, no eletroencefalograma (EEG) da DCJ esporádica, observam-se ondas trifásicas [5] e ritmo de base lento, difuso ou lateralizado, com descargas epileptiformes no período inicial da doença, provocando as mioclonias [10]. Contudo,

o diagnóstico conclusivo apenas é alcançado por meio de exame neuropatológico a partir do tecido cerebral obtido durante a necropsia, o qual passará por estudo histopatológico, imunohistoquímico e aplicação de outros testes para detecção da proteína priônica, como Western blot, imunoensaio enzimático (ELISA) e reação em cadeia da polimerase (PCR) [11, 12].

Prognóstico e Situação Epidemiológica da Doença no Brasil

Apesar dos discretos avanços na pesquisa das doenças priônicas no Brasil, somados ao escasso reporte da temática na literatura, ainda não há cura para a DCJ, de forma que essa constitui-se em uma doença fatal em todos os casos diagnosticados [13]. O manejo clínico se faz, portanto, por meio da assistência médica intensiva e suporte paliativo permanente, sendo a introdução de sonda alimentar um fator crucial na longevidade do paciente, sem diferença significativa na sobrevida dos pacientes quanto ao tipo de sonda utilizada (nasogástrica ou nasoenteral) [14, 15, 16].

No Brasil, a vigilância sanitária da DCJ é organizada pela Coordenação-Geral de Doenças Transmissíveis (CGDT), do Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis, da Secretaria de Vigilância em Saúde, vinculada ao Ministério da Saúde (CGDT/DEVIT/SVS/MS), compondo a Lista das Doenças de Notificação Compulsória desde o ano de 2005. Desde então, até o ano de 2014, foram notificados 603 casos suspeitos de DCJ, dos quais 55 foram confirmados, 52 foram descartados, 92 foram indefinidos e 404 tiveram classificação “ignorada ou em branco” [17]. Tais dados apontam para a alarmante necessidade de busca ativa dos diagnósticos para a DCJ, em especial os casos esporádicos, a fim de destacar a relevância epidemiológica dessa doença.

Devido à carência de discussão acerca das doenças priônicas no território brasileiro, há uma eminente deficiência nos sistemas regionais de vigilância epidemiológica ligados às Secretarias Estaduais de Saúde. Essa deficiência é vislumbrada quando se analisa a distribuição regional das doenças priônicas em solo brasileiro, uma vez que a maioria dos casos são melhor notificados em estados com maior aporte estrutural para diagnóstico e vigilância sanitária. Em uma pesquisa de avaliação dos óbitos por doenças priônicas no Brasil, realizada de janeiro de 2005 a dezembro de 2010, dos 133 registros, obteve-se a seguinte distribuição espacial para os estados com maior taxa de mortalidade: São Paulo (56), Rio de Janeiro (15), Minas Gerais (11) e Rio Grande do Sul (11), indicando ausência de dados quanto à doença nos estados das regiões Norte e Nordeste [18].

Além do emblema da subnotificação, existe uma tendência de registrar-se apenas os casos mais graves, dos hospitalizados e daqueles que estão sendo focalizados pela mídia em detrimento do restante, o que aponta para a baixa representatividade dos óbitos por DCJ e demais doenças priônicas no Brasil, problemática acrescida da ausência de biomarcadores específicos para o diagnóstico precoce [18]. Em contrapartida, um indicativo positivo quanto à vigilância das doenças priônicas no Brasil refere-se à inexistência de casos de vDCJ ao longo da história, o que aponta para efetividade da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em prover adequada segurança alimentar e fiscalização de estabelecimentos que trabalham como materiais biológicos, como o sangue [17].

Um relatório precedente pela rede internacional da fiscalização da DCJ indica que as taxas de mortalidade anuais decorrente da doença têm crescido na maioria dos países nas últimas duas décadas [19] em especial no Japão, o que, segundo o pesquisador Dr. Yoshito Nishimura, da Universidade de Okayama, Japão, requer o alerta das autoridades públicas para políticas de enfrentamento a essa doença e demais demências: “apesar de a DCJ ser uma doença rara, o fenômeno de envelhecimento da população pode provocar uma elevação na incidência e, assim, na carga socioeconômica e nos cuidados médicos para a DCJ. Nosso alvo era analisar estas tendências, em um esforço para espalhar a consciência e estratégias novas de tratamento ” [19].

Haja vista a tendência temporal de envelhecimento da população brasileira, o que implica na maior incidência de doenças neurodegenerativas decorrentes da senescência, é fundamental o trabalho conjunto dos Núcleos Hospitalares de Epidemiologia (NHE) e da comunidade científica em prol da busca por novas soluções para o tratamento da DCJ, bem como investigação a fundo das demências progressivas, tanto a nível hospitalar quanto no ambiente acadêmico por intermédio da pesquisa. Suscitar interesse na DCJ é o primeiro passo para que se discuta tal doença tão negligenciada e, na maioria das vezes, até mesmo desconhecida pela população, para que, assim, seja traçado um prognóstico mais digno aos pacientes e familiares, bem como gerar interesse na pesquisa de um tratamento em um futuro mais próximo.

Referências

  1. Weber, T. P. (2009). The Collectors of Lost Souls: Turning Kuru Scientists into Whitemen. Bulletin of the World Health Organization, 87 (9), p. 731.
  2. Warwick A. (2008). The Collectors of Lost Souls: Turning Kuru Scientists into Whitemen (2nd ed.). Baltimore, MD: The John Hopkins University Press.
  3. Iwasaki, Y (2017). Creutzfeldt-Jakob Disease. Neuropathology, 37 (2), p. 174-188.
  4. Ojha, R., Nepal, G., Jamarkattel, S., Prasad Gajurel, B., Karn, R., Rajbhandari, R. (2020). Sporadic Creutzfeldt-Jakob Disease: A Case Report and Review of Literature. Clinical Case Reports, 8 (11), p. 2240-2244.
  5. Mackenzie, G., & Will, R. (2017). Creutzfeldt-Jakob Disease: Recent Developments. F1000Research, 6(0), p. 1–9.
  6. Mendonça, L. F. P. de Saffi, P. M. N. R., Martini, L. L. L., Farage, L., & Camargos, E. F. (2020). Heidenhain Variant of Creutzfeldt-Jakob Disease in Brazil: a Case Report. Geriatrics, Gerontology and Aging, 14(1), p. 71–75.
  7. Nakagawa Y. & Yamada S. (2020). Metal Homeostasis Disturbances in Neurodegenerative Disorders, with Special Emphasis on Creutzfeldt-Jakob Disease-Potential Pathogenic Mechanism and Therapeutic Implications. Pharmacology & Therapeutics.
  8. Green, A., Sanchez-Juan, P., Ladogana, A., Cuadrado-Corrales, N., Sánchez-Valle, R., Mitrová, E., Stoeck, K., Sklaviadis, T., Kulczycki, J., Heinemann, U., Hess, K., Slivarichová, D., Saiz, A., Calero, M., Mellina, V., Knight, R., van Duijn, C.M., Zerr, I. (2007). CSF Analysis in Patients with Sporadic CJD and Other Transmissible Spongiform Encephalopathies. European Journal of Neurology, 14(2), p. 121-124.
  9. Orrú, C.D., Bongianni, M., Tonoli, G., Ferrari, S., Hughson, A.G., Groveman, B.R., Fiorini, M., Pocchiari, M., Monaco, S., Caughey, B., Zanusso, G. (2014). A Test for Creutzfeldt-Jakob Disease Using Nasal Brushings. The New England Journal of Medicine, 371(6), p. 519-529.
  10. Neitzke, I., Brito, H. F. De, Brandão, A., Narciso-Schiavon, L., Schiavon, L. D. L., & Buzzoleti, C. (2009). Apresentação Clínica da Doença de Creutzfeldt-Jakob como Síndrome Cerebelar. 17(1), p. 63–66.
  11. Bechtel, K., Geschwind, M. D. (2013). Ethics in Prion Disease. Progress in Neurobiology, 110, p. 29-44.
  12. World Health Organization. Manual for Surveillance of Human Transmissible Spongiform Encephalopathies, Including Variant Creutzfeldt-Jakob Disease. Geneve: WHO; 2003.
  13. Leunda-Casi, A., Pauwels, K., Herman, P., Verheust, C., Zorzi, W., Thellin, O., Roels, S., & Vaerenbergh, B.V. (2009). Risk assessment of laboratories involving the manipulation of unconventional agents causing TSE.
  14. Jackson, W.S., Krost, C. (2014). Peculiarities of Prion Diseases. PLoS Pathogens, 10(11).
  15. Iwasaki, Y., Mori, K., & Ito, M. (2012). Investigation of The Clinical Course and Treatment of Prion Disease Patients in the Akinetic Mutism State in Japan. Rinsho Shinkeigaku: Clinical Neurology, 52 (5), p. 314-319.
  16. Iwasaki, Y., Akagi, A., Mimuro, M., Kitamoto, T., & Yoshida, M. (2015). Factors Influencing The Survival Period in Japanese Pacients With Sporadic Creutzfeldt-Jakob Disease. Journal of the Neurological Sciences, 357 (1-2), p. 63-68.
  17. Ministério da Sáude (2018). Protocolo de Notificação e Investigação da Doença de Creutzfeldt-Jakob com Foco na Identificação da Nova Variante. In Diário da República, 1a série, n° 96 de 18 de maio de 2018.
  18. Cardoso, C. A. de O., Navarro, M. B. M. de A., Soares, B. E. C., & Cardoso, T. A. de O. (2015). Avaliação Epidemiológica dos Óbitos por Doenças Priônicas no Brasil sob o Enfoque da Biossegurança. Cadernos Saúde Coletiva, 221 (1), p. 63-68.
  19. Trend Analysis in Japan Reveals Creutzfeldt-Jakob Disease May Not Be So Rare Anymore (https://www.news-medical.net/news/20201019/Trend-analysis-in-Japan-reveals-Creutzfeldt-Jakob-disease-may-not-be-so-rare-anymore.aspx).

 


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