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Doutor, PARADA!!! - Ensaios sobre questões éticas

Doutor, PARADA!!! - Ensaios sobre questões éticas
Carlos Eduardo Bernini Kapins
nov. 4 - 6 min de leitura
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Muito me interessa o comportamento humano sobre situações do dia a dia, e os conflitos éticos fazem parte da nossa ponderação decisória a cada instante. Estes textos não tem a menor pretensão de dizer o que é certo ou errado, mas simplesmente tentar olhar quais coisas pesam no momento de decidir sobre situações complexas. Todas elas são fictícias (NÃO SÃO RELATOS DE CASO! São exercícios mentais que me propus para me preparar melhor para decisões, situações difíceis e desafios éticos). 

A primeira delas lhes será apresentada agora:

… Estava num desses plantões, era uma semana pesada, acabávamos de receber nossos relatórios de performance, e nos meus dias algo não ia bem… Debruçado sobre livros e sobre estudos científicos, ia checando protocolo por protocolo das últimas intercorrências que havia tido… ACLS, ATLS, PALS, todos eles, checados e decorados de frente para trás e de trás para frente.

Abre a porta do descanso: 

— Doutor…. Parada!

Essas duas palavras são suficientes para gelar a espinha, dar um frio na barriga e um misto de adrenalina e culpa já vem a mente… movimentos automáticos invadem minha vontade e simplesmente agarro meu estetoscópio e em 10 eternos segundos chego ao paciente com as perguntas dominando meu corpo e minha mente:

— O que foi que aconteceu? Acabei de checar todos os pacientes há 15 minutos, não apresentavam absolutamente nada de anormal. O que foi que eu não vi? O que me passou desapercebido?

Essa dúvidas dão uma pausa… há a necessidade de ser robô agora… ABC, sem respiração…. Pulso ausente…. 

— Rápido! Traz o carrinho de parada, chame ajuda, preciso de mais uma pessoa para me ajudar.

Minha mente, mesmo no automático, começa a pensar: não, não, não. Isso não está acontecendo de novo comigo… p#$%! Por que só no meu dia?

1, 2, 3, 4, 5, 6… respira! 
1, 2, 3, 4, 5, 6… respira!

Reponde c%$#… Hoje não, por favor…. Volta…. Volta!

Tuuuuuuuuuuuuuu...

1, 2, 3, 4, 5, 6….
Me dá o tubo…. 7,5

E para meu azar ainda tinha que ser paciente obeso. Só consigo ver o esôfago… m$%#, m#$%!

Levantem a cintura escapular (não disse assim, mas nessas  horas nomes lindos anatômicos se transformam no mais chulo da nossa língua portuguesa).

Agora deu… passou… Vamos checar, posiciono o estetoscópio e:

—  Respira… Respira… Respira…. Respira…. Respira…

Noto agora uma diminuição da adrenalina, afinal nesse caso o paciente estava com acesso sanguíneo adequado. Agora é só seguir o protocolo.

— Vamos lá gente, quem começa na respiração? Eu fico na massagem.

E todo mundo se posiciona como num balé coordenado… e entre massagem e respirações, começamos o interrogatório:

— Quem estava com esse paciente? 
— Eu doutor.
— O que aconteceu?
— Ele parou do nada,

Do nada??? Do nada??? Como assim do nada???  Uma fúria invade a mente…

Ninguém para do nada. Será que estão querendo me ferrar? O que será que essa galera fez de besteira? Ou será que realmente ela diz a verdade e se eu não fui capaz de ver, ela igualmente também não conseguiu. Ou fui eu que falhei em entender as possibilidades do caso e não alertei para os sinais de alerta?

— Então corre com a gasometria… E me mostre antes disso os controles!
— Doutor, agora é tudo na tela do computador.

P#$% só me faltava essa!
Para checar as coisas preciso sair do meio do atendimento para olhar a porcaria do computador.

A senha não entra… Meus dedos tremem!

— TEM ALGUM COMPUTADOR ABERTO AÍ???
— AQUI DOUTOR!

Ufa! Agora tudo checado. Nos sinais que estávamos olhando, nada de anormal.

Voltamos para o paciente…

Tuuuuuuuuuuuuuu…

Somente o barulho do pior pesadelo possível.

— Vamos voltar… massagem… respiração….
— Quantas adrenalinas já foi?
— 1 doutor…
— Deixa eu ver o ritmo…

Tuuuuuuuuuuuuuu…

Volta, volta… Você está querendo me f#$% também?
Poxa cara, não me lasca… por que não parou no plantão anterior? (ou segurasse mais dois dias?) Por que você está fazendo isso comigo?

Uma reza invade minha mente, como se suplicando para a alma do paciente não deixasse eu sozinho com todo o rojão.

Tuuuuuuuuuuuuuu…

Os protocolos não estão adiantando. Eu li em alguns artigos que eles tiveram sucesso com o uso de uma medicação nova… será que para ele serviria? Será que o convênio vai pagar essa medicação, ou eu vou tomar outra bronca de fazer coisas que não seguem o protocolo? Mas o protocolo não está adiantando…

Tuuuuuuuuuuuuuu…

Volta diacho! Juro que se você voltar começarei a comer os produtos veganos que minha esposa está querendo que eu coma para diminuir uns quilinhos.

Tuuuuuuuuuuuuuu…

Você vai estragar ainda mais minha performance. Volta cara… mesmo se for para ficar sequelado, volte!

Mas se ele voltar sequelado, é a família dele que vai sofrer ao longo do tempo… anos sem fim cuidando de uma pessoa sem muitos momentos felizes.

Mas quem sou eu para julgar o valor dessa vida a família dele?

Dai-me forças!

Tuuuuuuuuuuuuuu

Muito tempo parado. Será que estou fazendo a coisa certa? Será que vale entregar um paciente sem muita capacidade neurológica? Será que a vida vale a pena assim? O que será da família dele? Será que vão jogá-lo num canto? Ou ele vai continuar sendo amado? Ou será que estou pensando bobagens e ele vai voltar sem sequela nenhuma, afinal estamos de acordo com as normas?

Tuuuuuuuuuuuuuu…

O que eu devo fazer? Tentar até quando? Quando está bom? 2 horas, 1 hora, 30 minutos? Quanto tempo será que já foram? Estou exausto! Será que vou ser demitido? Será que perdi mais essa? Será que tenho forças para continuar? Mas qual é o meu limite? Ou o limite dele? Ou para a família dele? Ou para o advogado da família? Ou para minha própria consciência que não me deixa dormir?

Tuuuuuuuuuuuuuu…


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