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Mais Médicos e Médicos Pelo Brasil - um testemunho

Mais Médicos e Médicos Pelo Brasil - um testemunho
Ariane Neuhaus
ago. 13 - 8 min de leitura
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Atuo no projeto ''Mais Médicos'' desde janeiro deste ano e tive minhas felicidades e tristezas com o programa. Ele não é perfeito e não creio que seja capaz de fixar médicos em áreas distantes. O Programa que promete substituí-lo, ''Médicos pelo Brasil'' tem vários avanços interessantes e torço pra que funcione melhor que o programa atual nesse sentido.

Pra quem não está envolvido na área da saúde, o Projeto Mais Médicos foi criado no governo Dilma com o objetivo de suprir a carência de médicos no interior e periferia de grandes cidades. Seus primeiros editais não supriram essas demandas, e foram abertas vagas para estrangeiros com revalidação de diploma como forma de resolver o problema em curto prazo; enquanto isso, diversos novos cursos de Medicina eram abertos em todo o país para formar mais profissionais para ocupar esses locais remotos.

Foi então criada a medida mais questionável: contratação diferenciada de médicos cubanos para trabalhar apenas em locais específicos sem revalidação de diploma e recebendo um valor bem mais baixo do que o pago aos demais profissionais do programa. As críticas do então deputado Bolsonaro a esse tipo de contratação pesaram depois da sua eleição presidencial, e o acordo de contratação de profissionais intermediado pela OPAS/OMS foi interrompido no ano passado pelo governo cubano.

Sem hipocrisia: foi uma oportunidade excelente para mim e para vários colegas que ocuparam vagas deixadas por colegas cubanos. Ao mesmo tempo, sinto pelos colegas cubanos que não conseguiram, até o momento, revalidar seus diplomas para continuar atuando no Brasil. A prova Revalida, que permite revalidação do diploma estrangeiro, não é realizada desde 2017 e esses profissionais não podem atuar como médicos até que revalidem.

Sou recém-formada e estou bem empregada, algo que já é extraordinário no nosso país, infelizmente. O salário é bom, ganho como bolsista, recebo benefícios e os pagamentos são feitos em dia. Existem situações bastante diferentes entre cidades e entre unidades de saúde mas, em geral, não tenho tido problemas sérios. Ouço relatos de colegas, no entanto, que vivem situações complicadas por estarem em locais mais isolados ou nos quais a política domina a saúde pública. Não é por acaso que é tão difícil fixar um médico no "Brasil profundo".

Acredito que, para os brasileiros em geral, soa como uma coisa de elite — ou mesmo como uma frescura de ''riquinho'' — isso de não querer ir para o interior do interior por um salário excelente como os expostos para o ''Mais Médicos''.

Eu entendo esse ponto de vista.

Contudo, eu gostaria de tentar mostrar outro ponto de vista: imagine estar na pele de uma pessoa que passou seis anos da vida dentro de um ambiente acadêmico, com muitos colegas ao redor, discutindo casos clínicos, aprendendo, morando em uma cidade média ou grande, com alguns recursos mínimos para exercer a profissão. Agora coloque essa pessoa, ganhando muito bem, em um local isolado. É difícil trabalhar em um lugar onde faltam recursos mas também é muito difícil viver em um local onde faltam recursos. Muitos colegas não teriam qualquer problema em trabalhar por alguns anos em um local isolado; outra pergunta diferente é se a pessoa constituiria família e criaria seus filhos nesse mesmo local. Não é algo tão simples assim. Entendo o julgamento, porém eu também não gostaria de me estabelecer em um local onde eu não possa me atualizar com facilidade, me divertir ou dar boa educação pros meus — futuros, quem sabe — filhos. Trabalho em uma cidade de 230 mil habitantes na zona metropolitana de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul; e mesmo assim eu penso em morar na capital para continuar estudando e melhorando como profissional. Não julgo meus colegas que não querem se estabelecer no interior.

Agora, o ''Médicos Pelo Brasil'' tenta substituir o ''Mais Médicos'' e promover essa interiorização que esse último não foi capaz de gerar. Na apresentação em coletiva de imprensa do novo Programa, foram colocados pontos muito importantes e destaco aqui quatro deles: prova de seleção, especialização em Saúde da Família, contratação CLT e bonificação pelo desempenho.

Quem tentou realizar a inscrição para o projeto ''Mais Médicos'' já entrou em contato com o Sistema de Gerenciamento de Programas (SGP). A alocação dos profissionais funciona como a venda de ingressos para um show, em que consegue os melhores lugares aquele que tem a melhor banda larga. Estou sendo apenas honesta, não existe uma melhor descrição para a alocação. Não há critério de seleção, seja de mérito ou de perfil do candidato; é um questão de quem clica mais rápido. Qualquer tipo de processo seletivo já é um grande avanço perto do SGP.

Ainda, a formação durante um programa como esse é essencial por dois motivos, a meu ver: para promover um atendimento qualificado e moldado às necessidades da atenção básica, com suas particularidades; e para manter o profissional em contato com os colegas e com a academia. Esse fator ajuda muito a fixar o profissional e aproveita os diversos recursos EAD que já estão disponíveis para a educação permanente. Ao longo do tempo, isso ajuda também a gerar uma cultura de respeito ao profissional da atenção básica como um especialista em sua área, e não um generalista que caiu de paraquedas para atender no posto de saúde. No ''Mais Médicos'' atual, realizamos pós-graduação em Atenção Básica durante dois anos. Apesar de ser excelente ter esse embasamento teórico, o termo de adesão ao programa tem duração de apenas três anos. Em resumo, recebemos uma pós-graduação e atuamos apenas um ano na área específica, para então sermos desligados do programa. Não me parece custo-efetivo.

Acredito que a cereja do bolo do ''Médicos Pelo Brasil'' seja a contratação CLT com bonificações, que flerta com o tão sonhado plano de carreira federal. Essa medida é muito interessante como forma de fixar o profissional e espero que seja efetiva e suficiente para os locais mais isolados. Dito isso, não importa o valor pago, a estrutura oferecida precisa ser a mínima necessária. Não adianta ganhar uma fortuna pra ver pessoas doentes por um sistema quebrado. O médico sozinho não faz milagres.

Se eu tivesse o poder de interferir em algum aspecto da política pública em saúde buscando interiorizar os médicos, eu focaria na valorização do profissional. Desde o início da faculdade existe uma expectativa de especialização dos médicos; o médico de família e o clínico, que são os profissionais que o sistema mais precisa, são os menos valorizados dentre os especialistas. Durante minha graduação houve mudanças no currículo da faculdade visando aumentar o tempo de contato dos estudantes com a atenção básica — e isso é ótimo — mas ainda temos o preconceito a vencer. A maioria dos médicos ainda encara o profissional da atenção básica como um idealista, quando esse cara deveria ser o melhor e mais respeitado profissional, pois é dele que dependem todos os outros. Se a porta de entrada falha, todo o sistema de saúde falha em consequência.


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