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Pandemias esquecidas

Pandemias esquecidas
Lara Gandolfo
abr. 14 - 12 min de leitura
030

A trajetória humana, desde sua origem, seja ela criacionista ou evolucionista (de acordo com suas crenças, caro leitor), vem acompanhada de diversos surtos, pandemias, endemias, enfim! Diversas doenças contribuíram para que a nossa história, fosse escrita, reescrita e assim fosse evoluindo até os dias de hoje. De fato, alguns comportamentos entre as sociedades dividem algo em comum, o da culpabilização. Sempre houve e ainda há (pasmem!), essa ânsia em saber qual a raiz do problema.

Estamos, infelizmente, em uma pandemia de COVID-19 e, enquanto a doença era endêmica da China, os outros países, inclusive o Brasil, não estava se preocupando e tomando as medidas necessárias para a contenção do surto. Sim, o jeitinho brasileiro extrapolou fronteiras e deixou o mundo de mãos atadas. Aí a história ficou diferente.

-De onde começou?
-Culpa do morcego
-Culpa do chinês

Tenho certeza que muitos de vocês receberam informações como essas.

É evidente a necessidade de conhecer as origens do vírus, o paciente zero, a transmissibilidade e o potencial de virulência, desde que isso seja usado para estudos e avanço na ciência, de forma que, a tecnologia e as pesquisas se voltem para a cura e também para medidas de prevenção e promoção de saúde. O problema é quando as pessoas se apropriam dessas informações para demonizar grupos que elas antagonizam.

Vou trazer nesse artigo uma comparação mais palpável com o que a humanidade vivencia desde 1980, com a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida [1], e desde 1961, com a pandemia mais antiga do mundo, e por vezes esquecida, que é a da Cólera [2].

 

Uma pandemia moderna

De acordo com os dados disponíveis no site do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS-UNAIDS, em 2018, 1,7 milhão de pessoas foram infectadas pelo vírus da AIDS. Cerca de 37,9 milhão, viviam com HIV e, destes, 1,7 milhão eram de crianças [4].

Isso indica que há décadas o HIV continua sendo um grande problema de saúde pública. Nos anos de 1980, houve um perfil de pacientes apresentando quadros similares de infecções oportunistas, que culminava em morte, por doença desconhecida. Tratavam-se de homens homossexuais, que pela alta incidência, foram intitulados como “grupo de risco”.

Isso acabou refletindo na criação de um conceito no imaginário social, de que somente esse grupo de risco estava suscetível. Não muito diferente do que estamos passando agora, não é mesmo? As pessoas acreditam que somente o grupo de risco para o COVID-19 está sujeito a adquirir a doença, e por isso não levam a sério as medidas de isolamento social.

Essa culpabilização de grupos de risco, no caso da AIDS, coloca o Brasil como um dos líderes entre os países com elevados índices de crimes homofóbicos [5]. Sabemos que as causas são diversas.

Isso me levou a pensar na possibilidade de um reflexo de ódio e preconceito pelos casos de HIV que foram primariamente identificados e tidos como responsáveis pela doença. Seria devido a divulgação inequívoca que surtiu o efeito de aumentar o preconceito e o discurso de repúdio em cima da população homossexual. É claro que o preconceito e outras causas, decorrentes de uma sociedade patriarcal e por vezes antiquada, também justifica o elevado numero de casos de homofobia.

 Assim como em outras doenças, o comportamento humano individual e coletivo é determinante para a persistência do HIV [6]. É necessário que as pessoas saibam tudo sobre a doença. Uma alternativa seria o emprego de Educação Sexual nas escolas, pois visa garantir os direitos humanos à educação, informação e não discriminação. 

“Educação sexual é um programa de ensino sobre os aspectos cognitivos, emocionais, físicos e sociais da sexualidade. Seu objetivo é equipar crianças e jovens com o conhecimento, habilidades, atitudes e valores que os empoderem para: vivenciar sua saúde, bem estar e dignidade; desenvolver relacionamentos sociais e sexuais respeitosos; considerar como suas escolhas afetam o bem estar próprio e dos outros; entender e garantir a proteção de seus direitos ao longo da vida.” (UNAIDS, Guia técnico para educação sexual)

 

Como já citado, o conhecimento da origem da doença, deve ser estimulado visando prevenção e promoção de saúde. Com a educação sexual, a explicação das formas de transmissão, romperia tabus, promoveria conscientização e contribuiria para diminuição dos casos. Os avanços no tratamento dessa enfermidade são notórios, mas infelizmente, nem todos possuem acesso a esse tratamento. Em 2018, das 37,9 pessoas com HIV, apenas 23,3 milhão tinha acesso ao tratamento, de acordo com o UNAIDS [4].

A esses paradigmas da doença, reflete em diminuição da participação dos serviços de tratamento, recusa em fazer testes de HIV, dificuldade de acesso ao serviço de saúde, e como resultado exclusão, discriminação e consequências sociais. Por isso a necessidade de diminuir o preconceito, e avançar na educação em saúde, seja ela nas escolas, ou na Tele-Educação, que consiste em aulas, palestras e conferências visando distribuir conhecimento e informações sobre temas da saúde [7].

Uma velha conhecida...

Além dessa triste doença, a epidemia esquecida de cólera, nos ronda há décadas, e a sétima pandemia, que é a atual, está presente desde 1961.

Essa doença acomete 2,9 milhões de pessoas por ano, sendo 95 mil casos de morte. A África possui surtos frequentes de cólera, devido a diversos fatores como: mudança climática, urbanização, crescimento populacional, acesso precário aos serviços de saúde, e principalmente, falta de água e saneamento básico adequado.

A contaminação ocorre pelo consumo de água e/ou alimentos contaminados com o bacilo gram negativo do Vibrio cholerae. O quadro clínico é variável, e a forma grave é manifestada por quadros diarreicos profusos, culminando em desidratação, acidose, e colapso circulatório, pois há desequilíbrio hidroeletrolítico em poucas horas[8].

Dentre os principais agravos á saúde, as doenças diarreicas como a cólera, representam 2,5 milhões de mortes anuais, principalmente em crianças menores de 5 anos nos países em desenvolvimento. [9]

Em janeiro deste ano, o ministério da Saúde da Somália informou 107 novos casos. O país encontra-se em surto desde 2017, após ter sofrido inundações. O total de casos é de 9.968, com 50 mortes associadas.

A grande expressividade no número de casos, por mais que exista prevenção vacinal, revela o quão precário é o sistema de saúde em países subdesenvolvidos. Prova disso, é que cerca de 2 bilhões de pessoas bebem água sem tratamento adequado, e 2,4 bilhões não possuem instalações sanitárias básicas. É devido à soma de todos esses fatores que essa doença não pode ser marginalizada.

É claro que, nem todos os países possuem condições econômicas para mudarem esse perfil tão propenso a doenças que podem ser evitáveis e gerenciáveis. Entretanto, é preciso incentivar que o poder público local volte seus recursos para investir em saneamento básico, pois somente o sistema de saúde, com vacinas e soro de reidratação oral não irá vencer essa batalha contra a cólera.

Dominique Legros, líder da equipe de cólera da OMS, afirma:

“A vacinação não resolverá o problema da cólera, mas apenas nos dará algum tempo. A menos que planejemos intervenções de água e saneamento a médio e longo prazo, a cólera reaparecerá assim que a imunidade à vacina diminuir. Não há atalhos. ”

É preciso, sim, que seja feita a vacinação, mas também é preciso recursos e investimentos para melhorar as condições de vida dessas populações. A tele-educação também pode servir, através da propagação do ensino sobre fervura de água antes do consumo e utilização de filtros domésticos [10]

Os investimentos em saneamento poderiam reduzir em até 37% o surgimento dessas doenças relacionadas com a água e destino do esgoto. [11]

Felizmente, há um projeto global para acabar com a cólera até 2030, através da Força-Tarefa Global sobre Controle da Cólera. O projeto contempla medidas preventivas e direcionadas para pontos de maior prevalência, e também irá fornecer água, instalações sanitárias, higiene adequada e acesso a vacina oral [12].

Existem países onde já foi possível evidenciar a eliminação dos surtos de cólera, como por exemplo, Peru, Vietnã e Senegal, em todos houve investimentos em infraestrutura para melhorar a água e o saneamento [2].

E o que aprendemos com essas pandemias?

Enfim, são diversas as pandemias que o mundo presenciou e presencia, infelizmente. Como lição, devemos nos amparar com o conhecimento científico feito sob cada uma, tomando medidas necessárias voltadas a prevenção de cada uma delas.

O ser almeja, antes de tudo, persistir” como citado pelo filósofo Baruch Espinoza. Ou seja, antes de qualquer cultura, hábito ou costume, devemos voltar atenções para garantir nossa saúde. Seja por meio de uma quarentena, ou pela abolição de preconceitos e tabus, ou pela exigência dos nossos direitos de saúde por meio de saneamento básico de qualidade e de um acesso à saúde digno. Pois os vírus, bactérias, e todos os microrganismos infecciosos, buscam sua persistência no corpo humano para sobreviver.

Então, que possamos deixar preconceitos, paradigmas, desobediência de quarentena e outras atitudes que interferem na prevenção e no controle da doença, visando a nossa permanência.

 

Referências

  1. VARGAS LAPROVITERA BOECHAT, Gustavo. Alerta vermelho: a AIDS bate à nossa porta (uma história da AIDS na cidade de Itapetininga1985-1999. 2017. Dissertação de Mestrado (Mestre em Ciências) - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, [S. l.], 2017. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5137/tde-11062018-132103/publico/GustavoVargasLaproviteraBoechat.pdf. Acesso em: 6 abr. 2020.
  2. CHOLERA: The Forgotten Pandemic. World Health Organization, 2018. Disponível em: < https://www.who.int/cholera/the-forgotten-pandemic/en/>. Acesso em 06/04/2020.
  3. SILVA, Antônio Augusto Moura da. Sobre a possibilidade de interrupção da epidemia pelo coronavírus (COVID-19) com base nas melhores evidências científicas disponíveis. 2020.
  4. GLOBAL HIV AND AIDS STATISTICS. Avert, 2018. Disponível em: <https://www.avert.org/global-hiv-and-aids-statistics>. Acesso em 06/04/2020.
  5. WENDT, Valquiria P. Cirolini. Os Movimentos Sociais dos homossexuais e a busca pela criminalização da homofobia: Análise desde os dados estatísticos apontados pela mídia. In: Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade-UFSM. 2015. p. 1-16.
  6. FEITOSA, Lucas et al. Atitudes e conhecimento sobre AIDS e seus significados: revisão integrativa. Psicologia, Saúde & Doenças, v. 19, n. 2, p. 422-434, 2018.
  7. Telemedicina: uma análise descritiva acerca de sua regulamentação. Academia Médica Brasil. Disponível em: <https://academiamedica.com.br/blog/telemedicina-uma-analise-descritiva-acerca-de-sua-regulamentacao>. Acesso em 06/04/2020.
  8. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Manual Integrado de Vigilância Epidemiológica da cólera. 2ª edição. ed. Revista: [s. n.], 2010. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_integrado_vigilancia_colera2ed.pdf. Acesso em: 6 abr. 2020.
  9. SILVA, Everaldo de Santana; OLIVEIRA, Deloar Duda de; LOPES, Amanda Pontes. Acesso ao Saneamento básico e Incidência de Cólera: uma análise quantitativa entre 2010 e 2015. Saúde em Debate, v. 43, p. 121-136, 2020
  10. SILVA, Sara Ramos da et al. O cuidado domiciliar com a água de consumo humano e suas implicações na saúde: percepções de moradores em Vitória (ES). Engenharia sanitária e ambiental, v. 14, n. 4, p. 521-532, 2009
  11. SILVA, Everaldo de Santana; OLIVEIRA, Deloar Duda de; LOPES, Amanda Pontes. Acesso ao Saneamento básico e Incidência de Cólera: uma análise quantitativa entre 2010 e 2015. Saúde em Debate, v. 43, p. 121-136, 2020.

 


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