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A revolta contra o que pouco importa

A revolta contra o que pouco importa
Hélio Angotti Neto
abr. 10 - 14 min de leitura
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A revolta contra o que pouco importa

Por Hélio Angotti Neto

Publicado Primeiro em SEFAM

Nestes últimos dias observei um fato curioso que despertou algumas reflexões.

Um grupo de jovens formandos de medicina, de uma universidade do Espírito Santo, posou sem calças e divulgou a imagem. Uma brincadeira típica daquelas de adolescentes – e nem tão adolescentes assim – que vemos por aí.

Quando as fotos circularam, escutei uma sequencia de análises revoltadas com o fato, inclusive pedindo punição pelo Conselho Regional de Medicina com suspensão de um ano para os rapazolas. Gritos virtuais de fúria e revolta ecoavam a perplexidade em relação a como aqueles jovens, um pouco inconsequentes, ousavam colocar em risco a frágil imagem da medicina brasileira com uma brincadeira tão sem noção.

Dos denunciados...

Os rapazes foram infelizes em sua brincadeira? Creio que sim. Expor suas imagens publicamente logo no começo de suas carreiras, em uma profissão tão visada como a medicina e de alta exigência de maturidade e postura de respeitabilidade, foi algo imprudente, para dizer o mínimo.

Foi um erro como tantos outros que, na qualidade de seres humanos jovens, muitos já cometeram, cometem e ainda cometerão. Provavelmente a maior punição já está acontecendo: a exposição exagerada e a condenação pública pelo politicamente correto e pelo moralismo exacerbado.

Do ponto de vista ético profissional, os rapazes são condenáveis? Convido o leitor a abrir seu Código de Ética Médica e a fazer uma busca específica sobre o caso aqui em discussão. Vejo um único princípio que pode ser aplicado ao caso:

IV - Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da Medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão.[1]

Há que concordar comigo no sentido de que o princípio é um tanto vago quanto ao que seria prestígio ou bom conceito. Também é necessário observar que não falamos de uma norma deontológica proibitiva, mas sim, de uma orientação geral a ser aplicada com bom senso na qualidade de princípio.

Do ponto de vista histórico e cultural, eles erraram? Vejamos o que nossos antepassados disseram sobre o excesso nos modos:

  • Para ganhar o paciente você deve evitar adereços exagerados de cabeça e perfumes exóticos. Excesso de estranheza garantirá má reputação, embora uma pequena dose não desqualifique o bom gosto. Assim é com a dor, irrisória quando numa pequena parte, grave quando presente em todo o corpo. No entanto, não desaprovo a tentativa de agradar o paciente, algo que não desmerece a dignidade médica.[2]
  • Excesso de estranheza garantirá má reputação. Desde Hipócrates já se alertava sobre a manutenção da respeitabilidade e da honra profissional, prescrevendo uma postura de moderação nos costumes.

    Outro trecho curioso encontra-se em Do Decoro:

  • Considerando, portanto, tudo o que acabei de dizer, é preciso que o médico tenha uma certa disposição para brincar, pois a severidade é falta de afabilidade, tanto para os que estão saudáveis como para os que estão doentes. É preciso, sobretudo, que ele vigie a si mesmo, nem mostrando muito partes de seu corpo, nem conversando muito com os leigos, mas somente o necessário. † Considere isso, forçosamente, um tratamento que leva à intimação judicial. † Não fazer, com certeza, nenhuma dessas coisas, com indiscrição e nem com ostentação. Pense antecipadamente em todas essas coisas, para que estejam facilmente à mão, como se deve; de outro modo, necessariamente, estará sempre em apuros em relação ao seu dever.[3]
  • De tudo, o que posso concluir? Fizeram uma brincadeira típica de adolescentes que seria mal vista até mesmo em tempos antigos. Adolescentes são craques em fazer tais coisas, ou você não se lembra de ter sido um adolescente? Em relação à ética – ou etiqueta -, talvez o máximo que possa ser aconselhado seja um pouco de temperança e discrição, como bem cabe a um médico que, desejando ou não, terá sua imagem lançada aos quatro ventos por ser figura pública.

    De quem denuncia...

    Agora eu realmente gostaria de partir para outras duas perspectivas, e peço que o leitor tenha um pouco de paciência e que leia até ao final. E que guarde as pedras nas mãos e nos bolsos – pois alguns carregam muitas - por um pouco de tempo antes de lançá-las em mim.

    O que dizer dos colegas que, revoltados, acusaram e compartilharam fotos em meios públicos? Partindo do fato de que muitos interpretaram o ocorrido como desrespeito à profissão, digno de suspensão de um ano, uma pena quase extrema em termos profissionais, deve-se ter em mente os seguintes trechos do Código de Ética Médica.[4]

    No Preâmbulo:

    IV - A fim de garantir o acatamento e a cabal execução deste Código, o médico comunicará ao Conselho Regional de Medicina, com discrição e fundamento, fatos de que tenha conhecimento e que caracterizem possível infração do presente Código e das demais normas que regulam o exercício da Medicina.

    O compartilhamento exagerado em redes sociais não teve nada de discrição. Se algo nos fere em termos éticos, a recomendação é que busquemos fundamentar uma denúncia que deve ser feita discretamente junto ao Conselho Regional de Medicina, não junto ao “conselho” dos grupos de mídia social, potencializando ainda mais o possível escândalo.

    O Artigo 57 repete a orientação, reforçando que a denúncia deve ser feita ao Conselho ou ao órgão responsável, sob a necessidade de se apontar qual é o postulado ético contrariado. É vedado ao médico:

    Art. 57. Deixar de denunciar atos que contrariem os postulados éticos à comissão de ética da instituição em que exerce seu trabalho profissional e, se necessário, ao Conselho Regional de Medicina.

    Alguém pode denunciar que os jovens e brincalhões colegas não tiveram consideração, respeito ou solidariedade para com a classe ao abaixarem suas calças, com base no seguinte princípio que orienta o seguinte:

    XVIII - O médico terá, para com os colegas, respeito, consideração e solidariedade, sem se eximir de denunciar atos que contrariem os postulados éticos.

    Todavia, a falta de decoro de uns não autoriza a falta de postura de outros. Se um erro de fato foi percebido, e se tal acontecimento merece ser punido com uma suspensão, como alguns proclamam, a denúncia deve ser feita com discrição e respeito.

    Se o que aconteceu foi um escândalo por romper as aparências, a frágil sensibilidade de alguns ou a sensível imagem da medicina, não há que se pedir punição. A simples reprimenda pública com certeza já é punição exemplar e tantas vezes exagerada.

    E agora passo ao último ponto da análise, que é o cerne de minhas preocupações reais.

    Do escândalo com as coisas pequenas e da completa falta de senso das proporções...

    A histeria causada entre muitos médicos, de todas as idades, frente ao ocorrido me preocupa.

    Os formandos fizeram certo? Acredito que não. Se um deles fosse meu filho escutaria um daqueles sermões!

    Acredito que médicos devem se dar ao respeito e oferecer à população uma postura digna e séria, compatível com o testemunho de quem lida com coisas das mais sérias que podemos encontrar neste mundo: a vida humana e o sofrimento alheio.

    Mas o que chama a atenção é a tendência repetida da sociedade brasileira em prestar muita atenção às coisas pequenas e menosprezar fatos e ideias de suma importância.

    Morrem sete dezenas de milhares de pessoas de forma violenta e intencional por ano. Mais de 70.000 assassinatos![5] O que as mídias sociais comentam? A morte de um gorila num zoológico estrangeiro[6] ou um bando de rapazolas de calças arriadas.

    Nas escolas ocorre uma lavagem cerebral tosca e uma censura velada à discordância ideológica, comprometendo a inteligência e a liberdade de nossas crianças e nossas famílias.[7] O que atormenta nossos compatriotas? O médico bobo e desrespeitoso que fez uma brincadeira criticando o paciente que fala errado a palavra pneumonia.

    Uma barulhenta e irresponsável minoria de médicos denigre toda a classe atendendo mal a seus pacientes, fazendo esquemas para burlar seus vínculos empregatícios e superfaturando materiais utilizados em procedimentos terapêuticos ou diagnósticos. Estudantes ligados ao movimento estudantil defendem posturas que atentam contra a dignidade da vida humana como eutanásia, abortamento e suicídio assistido, priorizando uma ideologia potencialmente genocida ao invés de respeitarem os valores clássicos da boa medicina.[8] Nosso próprio Conselho Federal da Medicina, em sua gestão anterior, defendeu a eliminação de vidas humanas e a eutanásia infantil![9] Qual o foco do burburinho escandalizado das frágeis e sensíveis almas que circulam nas redes sociais? Calças arriadas.

    Numa sociedade em que a ideologia de gênero distribui material pornográfico para crianças na educação infantil, em que adolescentes no ensino médio são instrumentalizados como bucha de canhão para a revolução que atenta contra toda e qualquer forma de pudor e em que todos são expostos ao material semipornográfico de suspeitíssima qualidade veiculado pelos meios de comunicação em horário nobre, só posso concluir uma coisa: os jovens egressos do curso de medicina fizeram foi pouco!

    Alguém já viu algumas das manifestações artísticas, políticas e culturais que abundam em nossos cursos superiores de humanas?[10] Repito, os rapazolas da medicina foram até muito comedidos, quase carolas.

    Mas o brasileiro típico é especialista em subverter a hierarquia de valores. Coisas medíocres e bobas, que seriam resolvidas com uma educada conversa entre adultos ou em família, tomam proporções dantescas. Por outro lado, temas mortalmente sérios que definem toda a nossa civilização – ou preparam o terreno para a sua destruição – simplesmente passam adiante, ignorados em meio à profusão carnavalesca de obscenidades e ameaças graves.

    O brasileiro, de regra acusa de moralista qualquer um que queira impedir que mães saiam por aí matando seus filhos em seus ventres, mas na prática são de um moralismo insuportável ao perder enorme tempo em picuinhas sobre maus costumes e pequenos desvios de conduta que pouco dano concreto fazem a qualquer um.

    Antes de condenar os jovens colegas e descarregar neles o condenável mecanismo do bode expiatório por todos os nossos males[11], gostaria de lançar duas reflexões.

    A primeira é a reflexão sobre tirar a trave de nossos olhos antes de acusar o cisco no olho alheio. Sua revolta está direcionada ao lugar certo? Sua prática médica está adequada com os mais elevados parâmetros morais ou somente possui uma casca de bons modos, vazia de substância? O mínimo que devo esperar de alguém que se revolta contra essa brincadeira imatura é uma revolta muitíssimo maior contra coisas extremamente mais urgentes e graves. Você não está virando as coisas de cabeça para baixo? Você quer defender a classe médica de verdade? É como um zelote dos bons costumes que você realmente pode fazer algo importante e construtivo? Será que fiscalizar brincadeiras bobas de formatura é a melhor forma de zelar pela dignidade da profissão médica?

    A segunda lição é a das três peneiras atribuídas a Sócrates: Verdade, Bondade e Utilidade.[12] Antes de divulgar algo, há certeza de que é verdadeiro? Esta é a primeira peneirada. A segunda questiona se é um bem divulgar o assunto. Causa algum bem maior à sociedade? E, por fim, a terceira peneira nos leva a perguntar se é realmente necessário divulgar.

    O povo brasileiro precisa aprender a dar importância ao que realmente importa, e entrar em discussões que são realmente urgentes. Utilizei o tema totalmente desinteressante e superficialmente moral da brincadeira dos formandos para chegar neste ponto: estamos criando uma tempestade em copo d’água enquanto o navio afunda em meio à ressaca!

    Quer lutar pela honra e dignidade da classe médica? Já estudou o Código de Ética Médica e já se aprofundou na cultura milenar da medicina e em como ela pode ajudar a restaurar nossa confiabilidade e nossa honra? Já estudou política e filosofia a ponto de compreender como se trabalha a imagem profissional em sociedade? Já começou a atender ao paciente com carinho e atenção? Já exortou ou denunciou aqueles que praticam atos muito mais graves, às vezes criminosos?

    Poderia perguntar por páginas e páginas, mas sei que muitos estão dando o máximo de si e fazendo o melhor que podem. Só torço para que os olhos da grande maioria dos médicos se abram a tempo de ver o que realmente está prestes a destruir nossa profissão.

    Agora, que todos joguem suas pedras... No alvo certo!

    Hélio Angotti Neto, 10 de abril de 2017.

    O colega Getúlio Bernardo Morato Filho escreveu uma carta resposta neste LINK

    Referências expostas na publicação original no SEFAM


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