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Na época da minha residência... blá blá blá

Na época da minha residência... blá blá blá
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fev. 11 - 6 min de leitura
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Como a cultura do "ferrar com o próximo, porque eu ja me ferrei muito" ainda é propagada nos hospitais de ensino do país. Ao que parece, o "trote" ao R1 não é algo isolado e ainda é feito pelos R2 que sofreram o mesmo ou pelos próprios preceptores.

Na época da minha residência... blá blá blá

*Por Solon Maia - Meus Nervos

Várias pessoas me mandando prints de colegas, principalmente ortopedistas e cirurgiões, indignados com essa tira...

Isso me leva a crer que esses doutores CONCORDAM que na residência haja tudo que foi mencionado nela:

- Humilhação
- Exploração
- Ausência de folga nos finais de semana
- Inexistência de férias
- Desrespeito
- Carga horária de 120 horas semanais

Fico em dúvida se (1) realmente pensam assim, se (2) foram doutrinados para acharem isso normal, ou se (3) são medíocres a ponto de pensarem "se eu me ferrei, todos têm que se ferrar."

Ainda existem muitas residências que se assemelham à escravidão, onde bullying e as humilhações rolam soltos. Me espanta ver pessoas teoricamente tão esclarecidas compactuando com coisas desse tipo.

Em 2012 fui o primeiro colocado na residência de ortopedia num certo serviço aqui em Goiânia. Fechei a prova da segunda fase! Foi uma mega comemoração, mas a alegria durou pouco: Eu mal sabia que estava entrando num inferno!

Começou no primeiro dia o chefe dizendo que não existia esse negócio de 60 horas, que existiam plantões extras como punição, que não teríamos férias e que não adiantava trazermos atestados médicos ou nada do tipo para justificar ausência.

Depois dessa declaração do chefe da residência, foi a vez dos residentes mais antigos entrarem em ação... Chegaram ao ponto de me mandar comprar salgados para eles (óbvio que eu não fui!), outros escondiam os exames dos meus pacientes para os preceptores me punissem na hora da visita, outros me avisavam às 23h que no dia seguinte eu teria que dar uma aula as 07:00am, para que não desse tempo de fazê-la.

Certa vez o chefe da residência pediu que uma técnica de enfermagem trouxesse cadeiras para ele e para os R2 e R3, enquanto eu tive que passar o ambulatório inteiro em pé porque "R1 não merece sentar."

Numa outra ocasião me mandaram retirar um fixador externo de um paciente na enfermaria, sem anestesia. O paciente não aguentou e não pude retirar o fixador. Resultado: Suspenderam a cirurgia dele e me deram um plantão extra, que tive que pagar no mesmo dia, ficando direto no hospital, só com a roupa do corpo.

Nessa residência, cada R1 tinha que prescrever mais de 30 pacientes, escrevendo à mão, até as 07:00am. Eu levantava às 04:00am para chegar ao hospital às 04:30am. A loucura era tanta que havia um carimbo gigante com uma prescrição padrão (pasmem!), igual para todo mundo! A enfermagem muitas vezes já deixava as prescrições carimbadas para que nós tivéssemos apenas que acrescentar ou modificar alguma coisa, para que ganhássemos tempo.

E eram muito mais absurdos que seria inviável listar aqui. Acho que só aguentei dois meses desse jeito porque (1) não queria ter que voltar a fazer provas de residência, (2) porque eu gostava da especialidade na época e (3) porque haviam alguns preceptores e três residentes que eram realmente muito bacanas. Por incrível que pareça, consegui fazer diversos amigos por lá.

no-tempo-da-minha-residencia

De 2012 para cá, não creio que as coisas tenham melhorado muito. Para terem ideia do que eu digo: Há dois meses atrás, num outro serviço aqui de Goiânia, um R1 deu porrada em três R2. Chegaram às vias de fato! Acham que foi uma explosão gratuita? Do nada? Tem muito babaca fazendo medicina sim. Acreditem! Devem ter merecido.

Uma pena em pleno 2015 ainda existir esse tipo de coisa, e pior que isso é saber que tem gente que apoia e que ainda se orgulha por ter aguentado calado todos esses absurdos.

Hoje sou R2 de anestesiologia. Trabalho 12 horas por dia de segunda a sexta, que dá 60 horas semanais. Algumas semanas faço mais, outras menos, a depender da necessidade do serviço. Sempre tive pelo menos um dia de folga nos finais de semana, sempre tive minhas férias asseguradas e, mesmo assim, na metade do R2 eu já tinha cumprido a meta do número de anestesias para os três anos de residência.

Lá eu sou tratado com respeito e dignidade. Me considero amigo de todos os meus preceptores, e por ser bem tratado e gostar do pessoal, faço questão de me esforçar e ser o mais útil possível. Sou levado pelo respeito que tenho por eles, e não pelo medo.

no tempo da minha residencia verde

Minha residência não é perfeita, ainda tem muito a ser melhorada, mas tenho a plena certeza e a consciência tranquila de que serei um ótimo anestesista. Estou realmente satisfeito com a minha formação.

Eu diria que mais da metade das residências estão meio que adequadas aos novos moldes e determinações. Apesar dessa notável evolução, ainda existem muitas aberrações semelhantes a essa que contei acontecendo por aí... O modelo de residência no Brasil deveria ser amplamente repensado e remodelado como um todo. Não há mais espaço para escravidão e ogridão numa profissão tão nobre como a nossa. É uma pena que no meio de pessoas tão jovens existam aqueles que aceitam e perpetuam essa cultura do assédio moral e exploração.

...Então, voltando à tira: Eu não sou besta de me submeter a tantos absurdos. Há quem goste; há quem aceite; há quem tenha seus motivos; mas eu, não.

Não deixe de comentar o post!

*Solon Maia é Residente de Anestesiologia em Goiás e Cartunista e mantenedor do Site Meus Nervos, onde através de suas tirar faz tiras sagazes carregadas de humor sobre a realidade da prática médica.

Leia este outro texto do Solon Maia : Desistir ou não da Residência Médica


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