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Exame clínico na medicina moderna

Exame clínico na medicina moderna
Fernando Carbonieri
mar. 19 - 11 min de leitura
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Celmo Celeno Porto talvez seja o maior mestre vivo da medicina brasileira. Falo isso porque todos nós, com pelo menos de 20 anos de formados, estudamos com seus livros e seus ensinamentos sobre a semiologia e a semiotécnica. Não importa o quão especialista você é, você teve ele como referência para aprender a conversar examinar e criar hipóteses diagnósticas. Reverenciar este homem que ensinou muito mais que a metade dos médicos brasileiros é um dever.

Fazemos isso porque queremos elevar a medicina através dos bons exemplos. A maneira como o mestre Porto trata a evolução tecnológica frente aos ensinamentos da medicina clássica é inspiradora. O artigo a seguir, publicado em 2006, mostra a visão do homem que, além de ser um mestre da Semiotécnica, é atualizado, inovador e criativo para absorver as novas tecnologias que surgem dia a dia.

Confira o extrato do artigo "O outro lado do exame clínico na medicina moderna". Se desejar, o link para o artigo completo pode ser encontrado AQUI.

 

O outro lado do exame clínico na medicina moderna

A parte mais conhecida e aplicada do exame clínico é a semiotécnica. Mas há um outro lado, tanto ou mais importante que o reconhecimento e análise dos sinais e sintomas, que coloca o exame clínico em posição ímpar na prática médica. Neste lado, tal como a outra face de uma moeda, encontram-se elementos essenciais para uma medicina de excelência, incluindo qualidades humanas, princípios bioéticos e a relação médico-paciente. Este lado é que vou abordar neste ponto de vista.

Vale lembrar, inicialmente, que a medicina nasceu associada a rituais mágicos e místicos que os povos primitivos praticavam para cuidar de seus doentes. A observação empírica da pessoa doente é a raiz mais profunda do método clínico. Sem dúvida, o momento mais significativo na evolução do método clínico foi representado pela Escola de Kós, quando Hipócrates e seus discípulos passaram a considerar as doenças como fenômenos naturais e sistematizaram o exame dos pacientes, ao mesmo tempo em que definiam as bases éticas da profissão.

Não se deve esquecer que as doenças podem ser semelhantes, mas os doentes nunca são exatamente iguais. Contudo somente quem examina pacientes compreende esta verdade e é ela uma das premissas sobre as quais se apóia uma medicina de alta qualidade.

Pacientes e médicos estão proclamando cada vez mais que o lado humano da medicina não pode ser sufocado pelos avanços tecnológicos. Ao mesmo tempo, todos desejam que novos e mais refinados recursos técnicos estejam sempre disponíveis na prática médica. Como conciliar uma coisa com a outra? Este é o maior desafio da medicina moderna. Para enfrentá-lo, não se deve esquecer que a medicina ocidental é um conjunto de tradições, conhecimentos e técnicas que vêm acumulando-se há mais de 2.500 anos, justamente o que permite ver o ser humano em sua plenitude, incluindo não apenas aspectos biológicos mas também suas relações com o contexto cultural e o meio ambiente. Nossa mente, apoiando-se em elementos lógicos e intuitivos, consegue armazenar e selecionar todo esse saber para aplicá-lo na cura ou, melhor dizendo, no cuidado dos doentes. Nenhuma máquina será capaz de fazer isso.

A possibilidade de avaliar os mais diferentes aspectos do corpo humano ou suas modificações anatômicas e funcionais, com detalhes e precisão nunca antes imaginados, fascinou os médicos a tal ponto que muitos pensaram – e alguns ainda pensam – que o método clínico teria de dar lugar à tecnologia médica. Fruto do progresso é a necessidade de rever conhecimentos e procedimentos, muitos dos quais precisam ser até abandonados. Isso significa exercer a profissão médica num momento de transição que, como seria de se esperar, fez nascer duas posições extremas: numa, concentram-se os que se apegam cegamente, por comodidade ou convicção, à maneira tradicional de exercer a medicina; na outra, aglomeram-se, às vezes, ruidosamente, os que ficaram deslumbrados pelas novidades.

É necessário manter a mente aberta e espírito crítico para encontrar uma posição de equilíbrio, que consiste em adotar o novo no que for útil sem medo de conservar o antigo no que ele tiver de bom. Sem dúvida, o exame clínico é o que há de melhor na medicina, e dele devemos tirar o máximo proveito, acrescentando-lhe os recursos técnicos com o melhor que eles tiverem. Se assim agirmos, ficaremos mais eficientes sem perder nossa sensibilidade.

Além disso, é fundamental nunca perder de vista que há um lado da medicina que não se enquadra nos limites – e nas limitações – dos aparelhos e das máquinas, por mais maravilhosos que sejam, pois aí se encontra muita coisa indispensável ao nosso trabalho, ou seja, a relação médico-paciente – é ela que possibilita reconhecer as incontáveis maneiras de sentir, sofrer, interpretar o que se sente e de relatar o que se passa no íntimo de cada um de nós –, os matizes impressos pelo contexto cultural, a participação de fenômenos inconscientes e as interferências do meio ambiente. Cuidar de pacientes com eficiência depende de todos esses fatores, porque a ação do médico não se esgota na identificação de uma doença e sua comprovação por exames complementares.

Não se pode negar, contudo, que os grandes progressos técnicos provocaram relevantes indagações. Algumas pertinentes, outras não. A mais importante delas é: será que a memória de um computador alimentado com todas as informações contidas nos tratados de medicina e ciências afins, nos periódicos e no mundo virtual não seria capaz de substituir, até com vantagem, o trabalho que os médicos fazem com apoio no exame clínico? Em outras palavras: o exame clínico estaria perdendo seu lugar?

Colocada nesses termos, a pergunta estabelece um antagonismo entre o método clínico e os avanços tecnológicos. Devemos reconhecer, de imediato, que não há conflito entre um e outro. São coisas diferentes. Uma pode completar a outra, mas nenhuma pode substituir a outra. Cada uma tem seu lugar, mas o exame clínico desempenha um papel especial, em três pontos cruciais da prática médica: para formular hipóteses diagnósticas, para estabelecer uma boa relação médico-paciente e para a tomada de decisões.

O médico que levanta hipóteses diagnósticas consistentes é o que escolhe com mais acerto os exames complementares. Ele sabe o que "rende" mais para cada caso, otimizando a relação custo/benefício, entendida em todos os seus aspectos. Além disso, a interpretação dos valores laboratoriais, das imagens e dos gráficos construídos pelos aparelhos será a adequada para cada paciente. Quem faz bons exames clínicos aguça o espírito crítico e não se esquece de que os laudos dos exames são apenas "resultados de exames" e nunca representam uma avaliação global do paciente. Na verdade, correlacionar com precisão os dados clínicos com os resultados dos exames complementares pode ser considerada a versão moderna de "olho clínico", segredo do sucesso dos bons médicos de ontem e de hoje, cuja essência é a capacidade de valorizar detalhes sem perder a visão de conjunto, ou seja, sem perder de vista a condição de pessoa do paciente em toda sua complexidade.

A relação médico-paciente, por sua vez, nasce e se desenvolve durante o exame clínico. É bom que se diga que sua qualidade depende do tempo e da atenção que se dedica à anamnese, tarefa que nenhum aparelho consegue realizar com a eficiência de uma boa entrevista. Aliás, os pacientes têm notado e proclamado que, quando se interpõe entre eles e o médico uma máquina, o médico pode ficar tão deslumbrado com ela que se esquece deles. Transferir para a máquina os cuidados e o carinho antes dedicados ao doente é uma tentação diretamente relacionada ao fascínio que equipamentos modernos exercem sobre muitos médicos, principalmente aqueles em início da carreira, quando as vivências da prática ainda não desenvolveram a capacidade crítica do profissional, única maneira de conhecer as possibilidades e as limitações dos exames complementares.

Precisa ficar claro que decisão diagnóstica não é o resultado de um ou de alguns exames complementares, por mais sofisticados que sejam. Tampouco é o simples somatório dos gráficos, imagens ou a quantificação de substâncias existentes no organismo. É um processo muito mais complexo porque utiliza todos esses elementos mas não se resume a eles. Numa decisão diagnóstica e no planejamento terapêutico, que é sua conseqüência prática e a que mais interessa ao paciente, é necessário levar em conta outros fatores, nem sempre aparentes ou quantificáveis. Somente o exame clínico tem flexibilidade e abrangência suficientes para se encontrarem as chaves que "personalizam" cada diagnóstico e cada proposta terapêutica. Convém nunca se esquecer de que ninguém nasce, ninguém vive, ninguém adoece, ninguém morre da mesma maneira em todos os lugares. É necessário lembrar, mais uma vez, que as doenças podem ser semelhantes, mas os doentes nunca são exatamente iguais.

O que parecia conflitante – o método clínico e os exames complementares – passa a exigir uma compreensão cada vez mais harmoniosa. Enquanto o método clínico caracteriza-se pela sua inigualável capacidade de ver o paciente como um todo, dando- lhe uma sensibilidade que nenhum outro método tem, os exames complementares vão adquirindo especificidade cada vez maior. A conclusão é óbvia: saber associá-los constitui o principal desafio da medicina moderna. Pode ser também o segredo do sucesso do médico.

Dizer que a medicina é uma ciência e uma arte não é uma afirmativa gratuita ou um pensamento saudosista. Tampouco representa um modo elegante de reagir aos avanços técnicos a que estamos assistindo.

O que faz a medicina tão diferente de outras profissões é esse lado não-racional, não-lógico, que nos obriga a ver além da célula lesada e do órgão alterado. O método clínico permite-nos penetrar neste mundo complexo, porque ele concilia o lado racional, que se alimenta dos conhecimentos científicos, com os outros aspectos ainda pouco conhecidos ou inteiramente desconhecidos da natureza humana, que se tornam ainda mais complexos quando há dor, sofrimento, risco de vida, medo da morte. Contudo pouco conhecer ou desconhecer não significa inexistir, nem justifica ignorar esse outro lado da prática médica. Aliás, é importante valorizá-lo porque nele podem estar os mistérios que fazem parte do estar saudável e do ficar doente. Pode estar aí a diferença entre o bom médico e o profissional medíocre.

O exame clínico, ao fazer esta fusão, rompe os limites da ciência cartesiana e positivista que circunscreve a medicina no âmbito das doenças e torna possível aceitar a presença do imponderável, sempre presente na medicina dos doentes.

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Acesse o artigo na íntegra, na Scielo clicando AQUI

 


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