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A inteligência artificial aplicada à medicina: COVID-19 e uma nova esperança.

A inteligência artificial aplicada à medicina: COVID-19 e uma nova esperança.
Rafael Lobo
set. 30 - 17 min de leitura
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  1. A inteligência artificial da atualidade. 

Do programa de streaming que recomenda os melhores filmes até laudar uma radiografia, a inteligência artificial (IA) tem gradualmente se inserido no nosso cotidiano e mudado a forma como interagimos com a tecnologia. A transformação, muitas vezes sutil e silenciosa, esconde algumas nuances desafiadoras deste novo mundo tecnológico. 

Profissões, relações interpessoais e a até forma como consumimos e votamos - veja os relatos da Cambridge Analytica - estão sendo alteradas graças à IA e, ao contrário do que se imaginava, ninguém está livre dessa interferência tecnológica. 

Segundo Kai-Fu Lee, autor do best-seller Inteligência Artificial, a tecnologia atingirá a todos, sem distinção por diplomas, abarcando tanto os profissionais altamente qualificados quanto aqueles com baixa escolaridade.¹ Algumas especializações da medicina já vêm experimentando essa interferência da inovação, como a dermatologia e os softwares capazes de reconhecer imagens de lesões cancerígenas com maior especificidade e sensibilidade que os próprios peritos na área.² 

Assim, uma nova carreira médica, mais tecnológica e inovadora, está sendo moldada pela inteligência artificial e é fundamental que saibamos nos adaptar e entender o que ela pode nos proporcionar. 

2.  Breve história da Inteligência Artificial. 

De meados de 1950, início das pesquisas sobre IA, até 2020 muita coisa no campo da inteligência artificial mudou. Acostumados com computadores do tamanho de frigobares, uma escassez de dados notória e pouco capacidade de computação, a inteligência artificial demorou a sair do seu status de ficção científica e assumir espaço no mundo real. 

Na verdade, após o início eletrizante da tecnologia, cientistas da computação entraram num pessimismo generalizado ao observar que as máquinas não funcionavam como eles haviam imaginado e que faltavam, ainda, muitos recursos. 

Esse período, marcado por uma redução das pesquisas e ausência de suporte, foi denominada como o inverno da IA. Foi somente com a popularização da internet, e sua oferta massiva de dados, atrelada ao avanço no poder de computação que técnicas como Deep Learning puderam ser refinadas e a IA sair da hibernação. Afinal, nas palavras de Kai-Fu Lee, não há nada melhor para os dados do que mais dados.¹ 

Hoje, a título de curiosidade, seu smartphone conta com um poder de processamento milhões de vezes maior que os principais computadores que levaram o homem à lua em 1969.¹ Assim, com um ecossistema favorável - Big Data, alto poder de computação e engenheiros de IA aptos - as grandes empresas começaram a se interessar pela tecnologia e formar o corporativismo da inteligência artificial, com grandes laboratórios de pesquisa e inovação voltados para desenvolver algoritmos cada vez mais impressionantes. 

Google, Amazon, Facebook, Microsoft, Baidu, Alibaba e Tencent, essa três últimas chinesas, são os sete gigantes que concentram recursos em inovação e talentos a fim de desenvolver tecnologia de ponta em IA e dominar o mercado.¹ 

3.  Mas o que é a inteligência artificial?

Herbert Simon, considerado pai da inteligência artificial, conceitua a tecnologia pela habilidade da máquina performar em tarefas que usualmente, quando realizadas por seres humanos, requerem pensar com inteligência.³ Em outros termos, inteligência artificial nada mais é do que o processo de recriar, através da máquina, o que é naturalmente típico para inteligência humana, como reconhecer uma imagem até dirigir um carro. 

Para tal, com o intuito de recriar a inteligência humana, pesquisadores da IA estabeleceram a abordagem intitulado de Deep Learning (DL). A tática, semelhante às redes de neurônios biológicos, consiste em construir neurônios artificiais, interconectados, que transmitem e recebem informação.¹ O Deep Learning, conforme Geoffrey Hinton explica, é inspirada na habilidade do cérebro humano em assimilar padrões complexos de dados através do reforço das conexões sinápticas.⁴

Desse modo, para que os neurônios artificiais leiam um raio-x, por exemplo, é necessário um largo espectro de imagens previamente rotuladas, com o diagnóstico feito por radiologistas, que treinam a máquina e fornecem alicerce para o aprendizado. Uma vez treinada, a máquina está pronta para ler imagens não-rotuladas e aprofundar o conhecimento, indo cada vez mais fundo em camadas e desmembrando a informação contida no raio-x, com o reconhecimento de padrões como formas, limites e opacidades na imagem. 

Ao final, na última camada, a rede neural já identificou cada micro pedaço da imagem radiográfica e está pronta para predizer, com base no treino que foi submetida, o que o exame está nos mostrando.

 

Discernir sobre qual imagem representa o quê no Deep Learning é um exercício de aprendizagem complexo, com várias camadas da rede neural artificial. Quanto mais camadas, maior é a capacidade da máquina em desvendar padrões nas imagens.  

O Deep Learning, portanto, é definido como um método para promover o famoso Machine Learning (ML), que permite o algoritmo adaptar e promover o aprendizado à máquina.¹

Essas máquinas, embebidas de dados e algoritmos inteligentes, estão redefinindo nossa forma de pensar como os dados são utilizados e se relacionam. 

4. COVID-19: Como a inteligência artificial pode nos ajudar? 

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) anunciou para o mundo o caráter pandêmico da coronavirus disease 2019 (COVID-19), o que levou diversas organizações mundiais a tomarem medidas drásticas para o controle da disseminação. Embora questionáveis, distanciamento social e o lockdown da economia foram algumas das inúmeras medidas perpetradas visando conter o avanço da doença e evitar mais mortes. Pois, quando falamos de covid-19, tempo é vida. 

4.1 Padrões tomográficos

No decorrer dos meses pós-decreto da OMS a comunidade científica mundial buscou encontrar padrões que facilitem o rastreio precoce da doença e auxiliam profissionais de saúde no diagnóstico. Uma das similaridades encontradas foram os padrões tomográficos, como opacidades em vidro fosco, opacidades em vidro fosco associado a espessamento dos septos interlobulares, caracterizando o padrão de pavimentação em mosaico, entre outros.⁵  

Tais semelhanças à tomografia computadorizada nos pacientes infectados pelo coronavírus são um norte importante no rastreio dos pacientes com maior probabilidade de possuírem a doença. Em estudo recente publicado na revista científica de Radiologia, do Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (CBR), foram observadas taxas de sensibilidade e especificidade de 90% e 85% para o diagnóstico de Covid-19 através da tomografia computadorizada, respectivamente.⁵

A associação dos exames de imagem com algoritmos de Deep Learning na identificação de padrões e posterior classificação pode ser um grande facilitador dos serviços de urgência e emergência.  Um algoritmo bem treinado é capaz de identificar sutilezas nas imagens, praticamente invisíveis ao olho nu, e auxiliar num diagnóstico extremamente precoce com uma taxa de sucesso na intervenção maior em relação aos diagnosticados tardiamente. 

Neste contexto, associar inteligência artificial com imagens tomográficas para a identificação precoce dos acometidos pela doença é um importante, e ainda imensurável, feito para o combate da doença. 

4.2 Chatterbot. 

Os agentes conversacionais inteligentes, também conhecidos como chatbots, utilizam da inteligência artificial para dialogar com seres-humanos interpretando suas questões e aplicando uma resposta "humanizada" em texto, imagem ou até mesmo em voz. Um artigo publicado no JAMA sobre a utilização dos chatbots no sistema de saúde afirma que a tecnologia é uma importante facilitadora no manejo de pacientes remotos, permitindo que médicos fiquem livres para realizar outras funções.⁶ 

Além disso, um estudo de 2014 com 239 pacientes concluiu que a utilização de chatbots fez com que os usuários fossem mais sinceros em relação a sua condição médica quando comparado aos entrevistados por humanos.⁷ Fato é que a utilização dos chatbots pode ser um grande auxiliador para desafogar os serviços de urgência e emergência através de uma triagem realizada pelo celular ou computador na própria residência. 

Com a entrevista realizada de forma remota podemos classificar o risco percentual dos pacientes estarem com coronavírus e orientá-los da melhor conduta a ser feita. A tecnologia é um ótimo estratificador do risco potencial, além de orientar a população e evitar que pacientes classificados como baixo risco necessitem ir até o hospital e se exporem a áreas hostis de contaminação. 

Também, o engenheiro e especialista em IA aplicada a medicina, Oge Marques, afirma sobre a possibilidade da simulação da eficácia de novas terapias por intermédio dos algoritmos antes de aplicar no paciente.⁸ A simulação é um importante resguardo para o paciente e o médico que buscam alternativas no tratamento para melhorar e individualizar o cuidado, sem sujeitar o doente ao risco desnecessário.

A inteligência artificial, portanto, é um importante auxiliador no combate ao COVID-19 e possui infinitas aplicabilidades. Entretanto, é importante recordarmos, como já mencionado por Kai-Fu Lee, que toda tecnologia necessita de uma quantidade massiva de dados para aprimorar suas funções e perfomar de forma adequada. 

Essa coleta massiva encontra barreiras éticas e legais que devem ser tratadas com cuidado para que os pacientes não tenham seus dados expostos à esmo e sem responsabilidade dos envolvidos. 

5. A LGPD e os desafios éticos impostos pelas novas tecnologias. 

A velocidade acelerada em que a IA tem-se instalado no nosso cotidiano impõe desafios legais importantes e que devem ser discutidos a fim de assegurar valores éticos no uso da tecnologia e proteger, em último espectro, a vida humana. Segundo Dr. Roberto Luiz D'Ávila, no prefácio do Código de Ética Médica, os limites éticos são como balizadores atuais e atentos às fugazes e rápidas transformações da ciência e da tecnologia.⁹ 

Assim, à luz dos preceitos hipocráticos, o Código de Ética Médica aduz "O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício.".⁹ Também, ainda no mesmo capítulo "Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente.".⁹ 

Ou seja, estar atento às mudanças e atualizar-se em benefício do paciente é caráter mandatório de um bom médico que respeita a profissão que exerce e, mais ainda, zela pela qualidade da vida humana. Entretanto, é imperioso que tais tecnologias sejam usadas com uso atento à norma e a ética da profissão, não realizando nenhuma discriminação quanto à herança genética do paciente ou eventuais informações que possam ser obtidas através do softwares. 

Saber lidar de forma diligente com os dados, atentando aos princípios fundamentais da bioética, é condição sine qua non para que a tecnologia e a inovação no mundo médico continuem avançando a passos largos. 

5.1 A necessidade de proteger os dados.

Com um mundo altamente digital e uma oferta estrondosa de dados dos pacientes, fica cada vez mais claro a necessidade de proteção destes dados para que não haja segregação e preferências no cuidado. Mais do que isso, os dados são verdadeiras informações íntimas e individualizadas de cada paciente e devem ser ofertadas à um número restrito de agentes do serviço de saúde para manter os preceitos do sigilo profissional e a dignidade da pessoa humana, esse último princípio do biodireito. 

Neste cenário, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Lei 13.709/2018, nasce para nos proteger do uso indevido de nossas informações e promover transparência na forma como os dados são empregados. ¹⁰ Em seu corpo, a lei busca estimular a utilização consciente e não predatória dos dados ofertados pelos incontáveis usuários da rede, pois à medida que o poder computacional avança - e isso tende a ser em base logarítmica - as informações sobre cada indivíduo tendem a crescer no mesmo ritmo. 

Essa informações que alimentam as máquinas de IA, sob a égide da LGPD, são tratadas sob os princípios da autonomia, dignidade, precaução e responsabilidade do biodireito. Dessa forma, é indispensável que médicos e prestadoras de serviço médico estejam a par, não só do conteúdo legislativo, mas também do disposto no código de ética médica para operarem de forma humana e célere com as informações disponibilizadas. 

6. Os próximos passos da IA. 

A era pós-médicos, teoria formulada por Maxmen em 1976, em que a inteligência artificial inauguraria no século 21 uma nova forma de exercer a medicina através apenas de computadores e paramédicos está, ao que tudo indica, longe de acontecer.¹¹ Entretanto, muito se especula sobre os limites da IA na medicina, alguns arriscam dizer que a medicina ocidental tradicional será remodelada para sempre e por definitivo e que muitas tarefas serão preenchidas por máquinas num futuro próximo.

Maximização do cuidado médico em áreas descobertas pelo sistema de saúde, habilidade da máquina em dizer o que o paciente com problemas na comunicação está sentindo, análise de imagens cancerígenas sem necessidade de biópsia para dar o diagnóstico, entre outros avanços são as infinitas possibilidades que a IA pode nos proporcionar.  Ademais, a IA promete ser um grande aliado dos profissionais da saúde quando precisamos de soluções rápidas e precisas, em que cada minuto conta para um desfecho favorável, como já discutido anteriormente no capítulo referente ao COVID-19. 

Neste sentido, a revolução tecnológica promovida pela IA pode alterar a forma de trabalho do profissional médico no futuro, invertendo a balança dos cuidados e voltando os holofotes para uma medicina mais preventiva, focada em evitar o aparecimento de doenças muito antes de qualquer sintoma. As máquinas terão um papel indispensável no diagnóstico médico, ampliando a cobertura de um serviço de alta qualidade a todos, mas não serão capazes de dar conforto e alento aos pacientes que não tiveram uma notícia otimista.

Por essa razão, médicos mais humanos e responsáveis, com empatia e habilidade de comunicação, vão ser cada vez mais requisitados e terão grande valor numa nova sociedade tecnologicamente inteligente. Essa é aposta de Eric Topol, médico cardiologista e autor de Deep Medicine, onde afirma que o maior benefício promovido pela IA será a disponibilização de mais tempo para fortalecer a empatia na relação médico-paciente.¹²

Também, Topol acredita que não só a relação médico-paciente será afetada, mas a forma como selecionamos e treinamos os médicos do futuro, com a valorização de profissionais com alta habilidade em inteligência emocional. Neste contexto, há dois mil anos, Hipócrates declarou, "é mais importante conhecer a pessoa que tem a doença do que doença que tem a pessoa”.

Em última análise, os avanços tecnológicos, como a inteligência artificial, irão permitir o resgate dos valores e virtudes da profissão médica. As humanidades, há muito tempo esquecidas, ganharão um novo papel no exercício da profissão e o maior beneficiário de tudo isso é, e sempre será, o paciente. 

 


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Referências: 

[1] Lee KF, “Inteligência Artificial: como os robôs estão mudando o mundo, a forma como amamos, nos comunicamos e vivemos” 1ª ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.

[2] Esteva A, Kuprel B, Novoa RA, et al. Dermatologist-level classification of skin cancer with deep neural networks. Nature. 2017;542 (7639):115-118.

[3] Simon HA. Artificial Intelligence: an empirical science. Elsevier, 1995; 77, 95-127.

[4] Hinton G. Deep Learning—A Technology With the Potential to Transform Health Care. JAMA. 2018;320(11):1101–1102.

[5] Vieira Pinto Barbosa PN, Galvão Vieira Bitencourt A, Diaz de Miranda G, Arruda Almeida MF, Chojniak R. Chest CT accuracy in the diagnosis of SARS-CoV-2 infection: initial experience in a cancer center. Radiol Bras. 2020;53(4): 211-215.

[6] McGreevey JD, Hanson CW, Koppel R. Clinical, Legal, and Ethical Aspects of Artificial Intelligence–Assisted Conversational Agents in Health Care. JAMA. 2020;324(6):552–553.

[7] Lucas GM, Gratch J, King A, Morency L-P. It’s only a computer. Comput Human Behav. 2014;37: 94-100.

[8] Tomé L. Saúde Digital: #Ep. 58 - Inteligência Artificial e COVID-19. Disponível em:https://open.spotify.com/episode/5r0oe2DkAWOAHBu7C6CGbo?si=hQTDc1HHRRWAPjYYZEwA1g.

[9] Código de ética médica: resolução CFM nº 1.931, de 17 de setembro de 2009 (versão de bolso) / Conselho Federal de Medicina – Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2010.

[10] Brasil. Lei nº. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados. Diário Oficial da União 15 ago 2018.

[11] Maxmen JS. The Post-Physician Era: Medicine in the 21st Century. New York, NY: Wiley; 1976.

[12] Topol E., “Deep Medicine: How Artificial Intelligence Can Make Healthcare Human Again”, 1ª ed. New York: Basic Books, 2019. 


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