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Sr. Carlos, me desculpe por não ter segurado em sua mão

Sr. Carlos, me desculpe por não ter segurado em sua mão
Bianca Ribeiro Souza
jul. 22 - 5 min de leitura
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88 anos de vida, eu só estive presente nos últimos 5 dias.

Sr Carlos tinha cabelos grisalhos e grandes, de uma maneira engraçada. Olhos castanhos e doces mas que já não tinham tanto brilho. Regular estado geral, corado, hidratado, acianótico, anictérico, afebril, taquipneico, taquicardico, hipertenso, em uso de droga vasoativa, pouco agitado, pouco comunicativo, responde a comandos.

Talvez eu deveria ter me atentado em perguntar se ele tinha alguma história para compartilhar. Auscultei seu tórax: murmúrios vesiculares presentes, simétricos, sem ruídos adventícios. Mas talvez eu deveria ter perguntado, Sr Carlos, alguma vez já lhe faltou ar por ter uma crise de riso?

Auscultei seu coração, bulhas rítmicas, normofonéticas, 2 tempos sem sopros. Talvez eu poderia ter me atentado, quais os mistérios, as alegrias, as dores, os amores que ali carrega?

Abdome globoso, depressível. Ruídos hidroaéreos presentes, sem fácies de dor a palpação superficial ou profunda, sem visceromegalias palpáveis. Se eu tivesse perguntado também, qual sua comida predileta Sr Carlos? Você gosta de sorvete? 

Membros inferiores sem edema, panturrilhas sem sinais de empastamento, tempo de enchimento capilar menor que 3 segundos, pulsos palpáveis e simétricos. Por quantos lugares esses pés já não passaram? Quantas cargas já não aguentaram?

Se eu tivesse ficado por mais 10 minutos, perguntado dos seus filhos, netos. Perguntado também qual a memória mais bonita que guardava consigo. Talvez eu teria arrancado um sorriso daqueles lábios enrugados, que substituiria por um instante, a agonia da dor.  88 anos de vida, eu estive presente nos últimos minutos.

Tantos anos, resumidos a poucos segundos, aos últimos suspiros. A sala de emergência estava um caos, o Sr Carlos estava ali no cantinho direito, lugar que passei nos últimos 5 dias por alguns instantes para ver como ele evoluía. Eu não sabia que seria ali o último lugar em que ele estaria.

Ele instabilizou, precisamos entubar. Pegue os materiais. Sedação. Laringoscópio. Tem muita secreção purulenta. Aspira. Saturação está caindo. Está ficando hipotenso. Evolui com parada cardiorrespiratória. Entubação feita, hipóxia corrigida. Ele não voltou. Começa massagem cardíaca. Faz adrenalina. 2 Minutos, troca. Foram 10 ciclos. Sr Carlos não voltou. Vamos aguardar a assistolia.

Eu poderia ter ficado ali, segurando em sua mão, aguardando com ele a sua morte, que dentro de poucos instantes ou alguns minutos, chegaria. Mas ainda tinham pacientes a serem vistos. Eu deixei a sala de emergência. Sr Carlos ficou ali. Espero que a enfermeira tenha segurado em sua mão. Creio que também não o fez. 88 anos de vida, eu estive presente nos últimos segundos.

Sr Carlos não sabe, mas ele me ensinou muito. Pela medicina, fizemos todo o possível, disso não tenho dúvidas. Mas e como seres humanos? É essa parte que me deixou inquieta. Eu poderia ter feito mais. Eu não sabia disso, até o Sr Carlos nos deixar.

Pulso não palpável, assistolia, hora da morte: 9:36h. 88 anos de história, de risos, de lágrimas, de emoções, de felicidade, de dias difíceis.

Eu queria ter perguntado se o Sr Carlos foi feliz, eu poderia ter feito isso. Eu poderia ter perguntado quem o Sr Carlos gostaria que segurasse a sua mão, em seus últimos momentos.

Sr. Carlos me ensinou, que precisamos falar sobre a morte. Sr. Carlos me ensinou que além de médicos, precisamos ser seres humanos. Sr Carlos me ensinou que devemos agir com mais empatia, que devemos ser mais sensíveis quando outros Srs Carlos estiverem ao nosso lado.

Obrigada Sr Carlos, que sua passagem seja serena e seu descanso tranquilo, me desculpe por não ter segurado em sua mão, me desculpe por não ter perguntado se concretizou seus maiores sonhos. Sei que vou falhar muitas vezes, mas prometo dar meu melhor. Sr Carlos me relembrou que essa vida é passageira. E que é preciso amar todas as pessoas, como se não houvesse amanhã.

Bianca Ribeiro Souza 

                                                                     Texto originalmente publicado em - 18/07/2019.


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