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Uma boca, dois ouvidos

Uma boca, dois ouvidos
Guilherme Neubern
mai. 8 - 11 min de leitura
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Fim de tarde em um atendimento de baixa complexidade. Entra o Sr. João, nome fictício, 75 anos, a princípio para renovar receitas de “colesterol” e pressão, diagnosticados após insistência de sua esposa, que também o convenceu a parar de fumar após tantos anos.

O médico, que poderia ser qualquer um de nós, em sua mecanicidade incontrolável, preenche a receita sem desviar os olhos do papel e a entrega ao humilde senhor, que, sem oportunidade para pronunciar qualquer sílaba a mais do que o protocolo burocrático prevê, sai do consultório imerso em dúvidas a respeito de sua doença e de seu tratamento atual; não pode sequer questionar o porquê atualmente seu xixi está mais vermelho e difícil de sair, e se pressão alta poderia causar isso, ou mesmo o cigarro.

Porém, seu médico, sobrecarregado com prazos, metas, números, fichas e visando o fim de sua jornada, nada o disse, e as dúvidas se acumulam gradativamente e o Sr. João torna-se mais um iletrado em seu próprio organismo e sujeito aos rumos naturais de seus problemas de saúde, dentre tantos que por aí caminham o mesmo caminho. Além do mais, questiona se tais remédios são realmente necessários para si, uma vez que nunca ninguém lhe explicou nada sobre sua doença nem a razão de tomar tantos medicamentos para algo que ele desconhece.

Incontáveis são as vezes que essa história se repete na prática médica.

O contato que tive com pacientes vindos de diversos lares, com múltiplas criações, com distintos valores e percepções, de diferentes estratos sociais, me mostrou que não importa quem você é ou de onde você veio, o prestígio do médico é o mesmo. O que muda é a relação médico-paciente, são as características próprias de cada um que moldam a relação àquele momento e àqueles agentes que se encontram frente a frente em uma consulta.

Cada paciente é um universo em si, de dimensões infinitas e elementos variáveis, acessíveis somente a ele em sua integridade. O médico, tal qual outros profissionais, conhece apenas uma pequena parcela deste universo, e com ela se relaciona. Cabe a esse profissional aproveitar a oportunidade que tem, pois pode ser um encontro único em um período demasiadamente prolongado.

Em tempos de tanta velocidade e fluidez, em que a corporativização da prática médica nos torna escravos de resultados e de metas a serem cumpridas, pouco a pouco vamos nos despindo de nossos trajes de médicos de outrora, caridosos e atenciosos, para nos munirmos de protocolos, checklists, burocracias, como sólidas maquinas de produção: frias, porém funcionais.

E em que momento de nossa vida nos tornamos quem mais temíamos? Seria no internato, quando a exaustão de horas sem dormir se uniu com o ritmo frenético das exigências do mundo exterior, e, por que não, de nós mesmos? Seria uma forma de nos protegermos de algo que nos ameaça ou nos fere quando estamos frente a frente com nosso paciente? Afinal, na relação entre duas pessoas há um choque de dois universos, de visões diferentes em que se expõem elementos que podem sensibilizar uma das partes.

De qualquer forma, é notável a robotização dessa relação, o que faz ser necessário o retorno aos ensinamentos de nossos mestres, para que se restabeleçam seus alicerces. Ora, é de amplo conhecimento que uma sólida relação médico-paciente repercute positivamente tanto na adesão ao tratamento quanto na percepção deste quanto à qualidade do serviço oferecido pelo profissional ou pela instituição que o emprega, promovendo maior satisfação do cliente – termos administrativos apenas empregados como manobra linguística. Com maior adesão ao tratamento proposto, atingimos nosso objetivo com maestria, que é o bem estar e a saúde do nosso paciente.

Os meios para atingir tais fins consistem em uma boa comunicação com nosso interlocutor, a qual se consolida fundamentalmente na prática de escuta ativa. Minha avó já me dizia: Deus nos deu dois ouvidos e uma boca apenas por uma razão, que é para ouvirmos mais do que falamos. Sabedoria popular que poucos livros e professores te ensinariam.

Da escuta ativa retiramos todas as ferramentas necessárias à construção de nosso raciocínio clínico, o qual, se solidamente edificado, resultará em menos erros diagnósticos e, consequentemente, menor grau de iatrogenias.

Nenhuma novidade até aqui.

Uma informação fundamental que alguns estudos recentes trouxeram no que tange à relação médico-paciente é o dito “empoderamento” do paciente (do inglês, “empowerment”), isto é, o quanto o paciente detém de informações a respeito de si e das enfermidades que possui.

Lembro-me de um caso do começo da residência de uma senhora que desenvolveu uma osteomielite de tíbia, e um colega antecipou-se de todos e a comunicou que iria amputar seu membro, sem maiores explicações, e se retirou do leito. A pobre senhora desatou a chorar incontrolavelmente até que outro colega, pouco mais prudente em seus atos, relatou que ela tinha uma infecção no osso, porém sem necessidade de amputar sua perna; somente antibióticos por tempo prolongado seria o suficiente. Dito e feito: está novamente andando por aí, ainda com algum receio de encontrar o primeiro médico que a viu e ele serrar sua perna sem ela saber o porquê.

No exemplo dessa senhora vemos alguns conceitos-chave: o paciente tem o direito de se apropriar de seu estado clínico atual, bem como das informações referentes ao seu próprio corpo, uma vez que são seu bem material mais ancestral. Dentro de um modelo colaborativo de relação encontramos espaço para essa troca de informações – sempre evitando o excesso de termos técnicos, mote para outro texto – que culmina, por fim, com a decisão terapêutica conjunta. No modelo paternalista, por sua vez, o médico fala, o paciente escuta e obedece, nada sabendo sobre si ou sobre seu problema de saúde. Neste, a chance de insucesso é infinitamente maior quando comparada ao cenário anterior, no qual temos profissional de saúde e paciente lado a lado, decidindo o que é melhor para este. Nada mais lógico, uma vez que o elo final do cuidado em saúde é o paciente: ele é quem irá ingerir a medicação, modificará um hábito de vida, irá tomar uma ação qualquer.

O grande desafio do médico não é só acertar um diagnóstico, é fazer o paciente acreditar nele e entender a importância do seu tratamento.

Há, no entanto, casos em que tal ferramenta tem seu uso impraticável. Nos casos em que há ameaça iminente à vida, ou quando o paciente não consegue responder por si só (trauma extenso, delirium hipoativo, intoxicações agudas, entre outros), obviamente o modelo a ser adotado é o paternalista, pois não há tempo ou possibilidade de obter o aval do paciente ao tratamento. Isso é esperado e é o preconizado, o mesmo não podendo ser dito de situações ambulatoriais ou em situações livres de risco.

Há de se ressaltar uma diferença entre duas ações: resolver problemas e tomar decisões. Naquela, o conhecimento científico é proeminente, sendo o detentor, na maioria das vezes, da palavra final o médico. Nesta, pelo contrário, vemos que a participação do paciente é maior, sendo ele o ator principal, e não coadjuvante. Nessa segunda ação, ambos refletem sobre o que foi exposto na primeira para, em seguida, decidir em conjunto o plano de ação a ser seguido.

Lembro-me claramente de uma das oportunidades que tive de noticiar um paciente a respeito de uma neoplasia que havia sido diagnosticada por biópsia de um linfonodo. Jovem, sem comorbidades, julgamento em nada distorcido; realizei a primeira ação, com o devido cuidado e seguindo exatamente como meus mestres me ensinaram. Na segunda ação, lágrimas, como é de se esperar ao se receber uma notícia dessas, e, confesso que meus olhos marejaram. Em seguida, refletimos os dois a respeito de como seriam os vários caminhos a serem seguidos, e, ao cabo de muito diálogo, ele escolheu o caminho da quimioterapia. O melhor? O pior? Não sei, e nunca saberei. Porém tenho ciência que foi o caminho escolhido pelo paciente, e sua família até hoje me é grata por tê-lo ouvido quando mais ninguém o ouvia.

Para avançarmos no que diz respeito à comunicação entre médicos e pacientes, que faz parte de uma relação interpessoal única, muito temos que caminhar e progredir. Especialistas elencaram fatores inerentes ao médico responsáveis pela fragilidade desse laço, dentre as quais se destacam a falta de treinamento nas habilidades sociais com os pacientes nas instituições de ensino e falta de tempo. Quando desde a base conseguimos implantar no jovem acadêmico a importância do contato com o paciente e suas peculiaridades, certamente criaremos a tendência de aumento da satisfação dos pacientes e um maior contingente de médicos preparados não só cientificamente, mas também em relações interpessoais.

Algumas ferramentas pedagógicas têm ganhado destaque, como laboratórios de simulação, contato precoce com pacientes, provas práticas de habilidades clínicas, entre outras, com bons resultados quanto à desenvoltura dos egressos de tais instituições.

A gerência do tempo é outra ferramenta muito poderosa quando domada, e nossa pior inimiga quando somos por ela subjugados. Além de artifício pouco estudado no meio acadêmico médico, no seio familiar é pouco abordado. No entanto, não faltam cursos, presenciais ou online, para administração de agendas, gestão de tempo e recursos, entre outras ferramentas que são pouco tangíveis ao médico comum, porém se fazem cada vez mais necessárias para evitar consultas de 5 minutos com o Sr. João que sai repleto de dúvidas e incertezas de seu consultório.

Caso não reflitamos acerca da relação que temos com nossos pacientes, estaremos sempre “atendendo” algum Sr. João sem nem olhar sua feição.

Será esse o atendimento que gostaríamos de receber?

 


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Referências bibliográficas

1. Grünloh C, et al. “Why do they need to check me?” Patient participation through eHealth and the Doctor-Patient Relationship: Qualitative Study. J Med Internet Res 2018 (Jan 15); 20(1):e11

2. Náfrádi L, et al. The doctor-patient relationship and patient resilience in chronic pain: A qualitative approach to patients’ perspectives. Chronic Illness. November 2, 2017. Volume: 14 issue: 4, page(s): 256-270

3. Orom H, et al. Relationships as Medicine: Quality of the Physician–Patient Relationship Determines Physician Influence on Treatment Recommendation Adherence. Health Services Research. Volume53, Issue1. February 2018. P 580-596

4. Moreira Filho AA (ed). Relação médico-paciente: Teoria e prática, o fundamento mais importante da prática médica. 2ª ed. Belo Horizonte: Coopmed Editora Médica, 2005. 200 p.


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