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A Visitante

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Crônicas de Anestesia
out. 16 - 4 min de leitura
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Olhou bem nos olhos do médico e disse: “você não pode nada contra mim!” Era verdade e aquilo caiu como um raio sobre ele. Súbito, tudo o que sabia não bastava. Cortes, drogas, cascatas enzimáticas, tudo inútil e vão. Então a risada ecoou e retumbou na sua cabeça. A risada da morte. Feroz e implacável.

Pensou por alguns instantes. Olhou ao redor. Estava ele, o paciente no leito e Ela. “Posso aliviar o sofrimento, posso tentar reanimá-lo”. Tentou parecer forte ajeitando o jaleco e a encarando. “Deste você não pode. Como tantos outros que você não conseguirá. Estou em toda parte. Você não”. Foi a resposta da Morte estendendo os braços lentamente e envolvendo o moribundo como uma brisa leve. O médico checou o pulso. Estava irregular, mas ainda estava lá. “Ele tem pulso”, pensou. Ela ouviu e mexeu-se devagar. “Isto não significa nada", disse antes que ele pudesse contestar.

De fato, os olhos baços do paciente fitavam algum ponto no teto, no infinito. A respiração estava acelerada e também ficando irregular. “Vocês são tão ridículos. Por que se importam?”, questionou a Morte. Ela não possuía olhos ou rosto, mas era como se tudo visse, tudo soubesse. O médico checou o pulso novamente. Nada. Era sua primeira vez depois de se formar e então tremeu ao gritar no corredor: “Parada! Tragam o carrinho de emergência!” Seria a primeira vez para o jovem doutor. Para o paciente seria a última tentativa. Uma teimosia.

“Você não precisa fazer isso. Poupe suas energias. Você está cansado.” Ouviu ou pareceu que ouviu a Morte lhe cochichando e um ar frio tocando o seu rosto. Adrenalina! Massagem! Monitor em linha reta. Começou a apitar, avisando o óbvio como se gritasse: “não adianta, não adianta!” Não havia mais energia. O coração era uma massa inerte seguindo o ritmo da massagem. Ritmo desesperado. Disforme. Tentando gerar fluxo. Sangue para o cérebro. Isto estava nos manuais. Por que não funcionava?

Olhos parados, pupilas dilatadas demais. “Vamos perdê-lo!” Alguém disse. A Morte moveu a cabeça afirmativamente. O ciclo da reanimação se repetindo, o ciclo da vida também. Ordens orientando a balbúrdia. O caos do fim. E a morte ali, incólume, observando tudo sem reação.

Olhou para o médico: “vocês chegarão aqui também. Estarei aqui para buscá-los”. Outro calafrio atingiu o doutor. “Vocês saõ pequeninos e assustados diante de mim. Eu sou o fim. A fagulha que extingue. A última gota.” O médico abaixou a cabeça e disse: “chega, não adianta mais”. Quanto tempo haviam tentado. Ampolas quebradas. Ambiente revirado e rostos exaustos. O riso voltou aos lábios da visitante. “O que você tem agora?”

Papéis para preencher. Falar com a família. Ver as faces cobertas de lágrimas e não chorar. Consolar? Dizer o que? Culpa de alguém? “Nós tentamos de tudo, ele estava muito doente.” Milhares de frases e justificativas. Inúteis.

Era sua primeira vez. Primeira parada como médico. Havia testemunhado e participado de outras durante a faculdade, mas agora era diferente. Cabeça baixa e olhar perdido. “Fiz algo errado?”, perguntou para a morte. “Não se iluda meu caro, está fora do seu alcance.” Ela respondeu quase simpática. Disse isso e saiu. “Estarei mais preparado da próxima vez!”, ele disse tentando alcançá-la. Ouviu uma risada longínqua vindo do corredor.


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