Nos últimos dias temos presenciado por meio da mídia e das redes sociais uma polêmica e uma infeliz polarização no que se refere a dois temas fundamentais relacionados à pandemia de COVID-19: o afastamento social e o uso da cloroquina ou seu análogo, a hidroxicloroquina, no tratamento.
Desde a chegada da doença no Brasil ficou famosa a expressão “achatar a curva”. Nada mais do que a tentativa de demonstração gráfica da necessidade de “espalharmos” o aumento do número de casos ao longo de várias semanas ao invés de termos um aumento exponencial desse número de contaminados em um curto espaço de tempo.
Pois bem, e qual a real importância disso? Simples! Impedir a saturação do sistema hospitalar de saúde seja ele privado ou a rede de hospitais do SUS. E o que isso significaria? Significaria que teríamos pessoas vindo a falecer sem a oportunidade de receber atendimento, algo no mínimo, desumano.
Alguns dirão: “Será que há mesmo esse risco? Não dizem por aí que a maioria das pessoas contaminadas nem terá sintomas?” Sim, dizem! E isso é resultado de estudos. Vamos ser práticos, te convido agora a fazermos juntos algumas contas simples.
Imaginemos uma grande metrópole como o Rio de Janeiro. Sua população é de aproximadamente seis milhões de habitantes. Imaginemos ainda que metade dessa população se contamine pelo coronavírus em curto espaço de tempo (algo possível dada à altíssima transmissibilidade que será comentada mais abaixo). Nesse caso, seriam três milhões de infectados. Desses, segundo algumas estatísticas, “apenas” 20% desenvolverão sintomas (600.000), dos quais “apenas” 5% necessitarão de internação hospitalar. O que corresponderia em números absolutos a 30.000 pessoas.
Agora, lembre-se das imagens que estamos acostumados a ver na televisão quando fazem reportagens sobre os hospitais públicos. Algo ali nos sugere que aquelas unidades de saúde já superlotadas teriam capacidade de acolher em poucos dias ou semanas 30.000 novos casos de uma determinada doença? Não!
Muito provavelmente teríamos cenas lamentáveis de pessoas morrendo sem assistência, em casa, nas ruas ou mesmo nos corredores de nossos hospitais, lotados, carentes de profissionais de saúde (que também adoecerão) e de equipamentos disponíveis (essencialmente respiradores). A rede privada, ainda que com mais leitos e mais bem estruturada, certamente também não estaria livre desse cenário.
Aqui cabe lembrar que a falta de vagas e de suporte médico não se restringiria, obviamente, apenas aos casos de COVID-19. Faltariam leitos de CTI também para os infartos, AVEs, sepses bacterianas, politraumas e todas as demais doenças graves que conhecemos e que já fazem parte do nosso dia a dia. Muitas delas totalmente passíveis de tratamento e completa recuperação, desde que possamos oferecer a devida assistência hospitalar, sem a qual são altamente letais.
Parece-me ponto pacífico também que a alta transmissibilidade do vírus está diretamente relacionada à circulação e consequente proximidade entre as pessoas, dado o seu elevado potencial de transmissão direta, pessoa a pessoa, a partir da dispersão de gotículas de saliva até mesmo na fala ou mesmo indireta a partir da sua capacidade de sobreviver por longos períodos nas mais diversas superfícies (segundo estudo do NEJM, no plástico e no aço inox, por exemplo, esse período poderia ser de até três dias).
Fica evidente, portanto, que como pôde ser observado em outros países, o afastamento social é de fato uma medida eficaz em reduzir a velocidade de transmissão da infecção e, consequentemente, mitigar a saturação do sistema de saúde. Assim. minimiza-se o caos social que certamente traria tantos ou mais danos para a economia do país quanto o confinamento, só que este colocando mais vidas em risco. Não há dúvida que a medida é dura e se torna ainda pior porque gera um desconforto individual, objetivo e imediato em nome de um benefício coletivo, potencial e futuro. Porém, infelizmente, ela é necessária.
Quanto ao chamado lockdown vertical, ou seja, isolamento exclusivo do grupo de maior risco de evolução ruim e consequentemente de maior probabilidade de necessitar de internação, considero a discussão infrutífera, pelo simples fato de não ser exequível, ao menos em nosso país. Pensemos sobre a viabilidade de tal medida, essencialmente nas grandes comunidades brasileiras. Será que a maior parte dos nossos idosos tem a possibilidade de habitar sozinhos em uma residência? Não! Seriam nossos governantes capazes de resolver esse problema em curto prazo? Certamente, também não!
Ou seja, vamos dar tempo ao tempo e permitir que o sistema de saúde melhore a sua estrutura com a criação de novos leitos, aquisição de respiradores e de equipamentos de proteção individual (EPIs), minimizando o risco dos profissionais de saúde e o consequente afastamento dos mesmos. Esse tempo também pode ser fundamental para que os dados de grandes estudos possam ser consolidados e publicados e, quem sabe, uma ou mais drogas possam ter sua eficácia comprovada. E desse gancho, partimos pra segunda grande polêmica: a cloroquina.
É indiscutível, do ponto de vista cientifico, a fragilidade dos estudos até então publicados sobre a eficácia da cloroquina. As falhas metodológicas vão desde N (quantidade de pacientes envolvidos no estudo) pequenos até a relevância do desfecho avaliado, passando pela ausência de randomização, cegagem e de um grupo controle.
Um “estudo” brasileiro recém-divulgado chegou ao cúmulo de nem mesmo testar os doentes, atribuindo o diagnóstico de COVID-19 a uma possível síndrome gripal determinada por telemedicina, o que de antemão já me soa paradoxal. Afinal, síndrome é um conjunto de sinais e sintomas pertinentes a diversas doenças ou etiologias e, até onde eu saiba, não é possível avaliar sinais (dados do exame físico) por telemedicina (não sou contra ela, mas no contexto de um estudo como esse para mim não cabe). Sem falar em diversos outros vieses verificados.
Pois bem, o argumento usado por alguns de seus defensores é que, em meio a uma pandemia, não há tempo hábil para estudos controlados. E, se existe alguma eficácia da droga, mesmo que in vitro e duvidosa in vivo, mas diante do potencial de gravidade e letalidade da doença, não valeria tentar? Não seria “dar uma chance”? Bem, a ciência certamente teria várias justificativas para responder com um rotundo “não” a essa pergunta, porém, de maneira bem objetiva, podemos recorrer mais uma vez aos números.
Pensem bem! Existe alguma lógica, do ponto de vista de saúde coletiva e de política pública de saúde, em recomendar para os 80% de contaminados assintomáticos (esses em sua enorme maioria nem saberemos que foram contaminados) o uso de determinada droga que não teve até então a sua eficácia comprovada em nenhum grande estudo de qualidade? Não!
E nos sintomáticos? Se 95% deles terão uma evolução benigna, faz algum sentido usar uma medicação, repito, ainda sem eficácia clínica comprovada? Pra mim, também não! Mas e no grupo de risco (maiores de 60 anos)? Sabemos que, quando sintomáticos, indivíduos desse grupo estão mais sujeitos a uma evolução desfavorável. Ao mesmo tempo, é o grupo com maior probabilidade de sofrer com efeitos adversos da cloroquina. E aí, como fica?!
Vamos lá! Os efeitos adversos da cloroquina são amplamente conhecidos, afinal a droga é usada no Brasil há muitos anos, tanto no tratamento da malária quanto do lúpus e da artrite reumatoide. A diferença é que nesses casos o uso é prolongado, por vezes ad aeternum e aí sobrevêm efeitos adversos como a retinopatia. Contudo, os protocolos atuais recomendam o uso da cloroquina na coronavirose por 5 dias, ou, no máximo, por 10 dias em algumas séries.
Assim sendo, teríamos como grandes riscos a hepatotoxicidade e principalmente a cardiotoxicidade, com alargamento do intervalo QT no eletrocardiograma e potencial desenvolvimento de arritmias malignas. Ainda mais quando há associação com a azitromicina, também recomendada nesses casos e também associada ao alargamento do QT.
Conversando com reumatologistas e infectologistas com ampla experiência com o uso da droga, verificamos que essas ocorrências são raras. Além disso, são passíveis de monitoramento, principalmente no contexto de uma internação hospitalar. Dessa forma, apesar de um aparente bom grau de segurança, o que mais me incomoda em relação à panaceia da cloroquina, além da politização de um tema científico e que, portanto, não deveria ser politizado nem “fulanizado”, é a absoluta ausência, até o momento em que escrevo, de estudos científicos relevantes que suportem esse entusiasmo todo.
Considero aceitável, no cenário de incertezas que estamos vivendo, que seu uso em pacientes mais graves, especialmente naqueles hospitalizados, seja considerado, principalmente após avaliação individualizada e decisão compartilhada entre médico e paciente/família. Entretanto, sem jamais atribuir à medicação o status de “salvadora”.
No mais, gostaria de deixar registrado que como gestor, apesar do relativo baixo custo da droga, jamais desviaria recursos que podem ser aplicados em medidas comprovadamente eficazes no combate a epidemia, como a ampliação de leitos hospitalares, compra de ventiladores mecânicos, testes diagnósticos e EPIs para aquisição em grande escala de qualquer droga de eficácia por ora duvidosa. Fomentaria, sim, a ciência e o mais rápido desenvolvimento e publicação de estudos controlados capazes de confirmar de forma robusta a eficácia de alguma das diversas terapias que vêm sendo propostas.
Por fim, esclareço que torço muito pela cloroquina! Droga de uso difundido, amplamente disponível, de baixa toxicidade, com efeitos adversos raros e conhecidos, de fácil administração e posologia, baixo custo e capacidade de produção nacional. Tudo isso seria de fundamental importância para que uma enorme quantidade de pessoas viesse a ter acesso à medicação, algo essencial pra que possamos respeitar os princípios que legitimam o nosso sistema único de saúde: universalidade, integralidade e a equidade.
Enfim, que papai do céu ilumine os cientistas e a nós profissionais de saúde nesse momento tão difícil, mas que vamos superar!
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