Nós não enxergamos as situações mais simples, exceto se a vivenciarmos.
O fato de conviver com a dor alheia é, sobretudo, um aprendizado diário. Quando mais jovens, nós não captamos os problemas daqueles que nos cercam, vivemos nossa vida baseada em preocupações imediatas, em busca de resoluções instantâneas e, assim, perdemos a oportunidade de olhar e refletir sobre onde nós estamos nesse processo de aprendizagem contínuo que é a vida.
Há um abismo muito grande entre vivenciar e imaginar. Quando eu imagino que aquela pessoa está sofrendo, que aquele problema é importante, eu não consigo dimensionar, verdadeiramente, o que mais está envolvido nesse processo. E as relações do sujeito e o seu problema? E a mãe do sujeito que tem o problema? O que o espera além de tudo isso?
Porém, quando eu passo a vivenciar esse sujeito e os seus problemas, tudo se torna mais intenso, as mínimas mudanças impactam, as expressões ficam gravadas em sua mente, quase como se tivessem esculpido caprichosamente aquela imagem de sofrimento, para que você jamais esqueça, que você vivenciou...não apenas imaginou.
Falo isso, pois admito que cada um tem seus problemas e várias formas de lidar com eles. Imagine que tudo vira uma tempestade em copo d’água quando o único recipiente que você vivenciou tinha 200mL. Agora junte todas essas vivências e acumule em um mar de experiências... agora, talvez, você consiga olhar mais longe, analisar de forma mais coerente.
Há pouco tempo vivenciei extremos. Como surpresa boa atendi uma senhora no ambulatório e assim que li seu nome no prontuário pensei: será que é ela? Sim, era ela. Sua história me marcou muito no terceiro mês do internato, quando a atendemos por intercorrência no hospital e ela entrou com um quadro grave de insuficiência cardíaca de alto débito, hemoglobina de 2,5, torporosa, não conseguia manter contato visual comigo. Aprendi muito com ela, investigamos, ela foi diagnosticada, encaminhada e para minha surpresa, naquele dia do ambulatório, estava diante de uma outra mulher: brincante, alegre, dizendo que estava quase tudo ótimo. Ainda restavam algumas sequelas de uma deficiência de Vitamina B12 secundária à anemia perniciosa, tardiamente diagnosticada, porém era outra mulher diante de mim.
O extremo veio dois dias depois, ao receber um paciente que também me marcou muito no mesmo mês, cujo manejo foi extremamente difícil, mas que houve uma melhora tão significativa até a alta, que eu cheguei um dia em casa maravilhado e totalmente surpreso, pensando:
– Meu Deus, o que eu vivenciei com esse paciente foi a medicina em toda sua arte, toda sua essência, a dose de ciência com a medida de arte, ou vice-versa. Assim foi, teve alta, após muita luta, intercorrências, quimioterapia, radioterapia, sondagens...
Dois dias após eu ter atendido a dona senhora, fico sabendo que o paciente ao qual me referia há pouco havia internado novamente, com recidiva da doença. Era esperado, de fato, nunca me enganei, embora eu tenha tentado esquecer essa possibilidade nos últimos meses. Frustrante, mas exigente, pois é nesse momento que “o cuidar sempre” prevalece sobre “o curar às vezes”.
Vivenciar essas experiências me fizeram crescer muito no últimos anos, mudaram minha forma de enxergar os meus problemas e o das outras pessoas. Não é demagogia, é reflexão. As dores estão por aí, espalhadas aos milhares, aos milhões. Não precisa ser médico, enfermeiro, fisioterapeuta ou profissional da saúde para aprender a lidar com a dor dos outros, embora eu reconheça que somos privilegiados por termos nessa área a nossa vida, e deveríamos sim nos entregar como gostaríamos que se entregassem aos nossos familiares. Reconheço que, para um engenheiro ou um arquiteto, às vezes é muito mais difícil enxergar a dor do outro, pois normalmente eles lidam com as dores pessoais de seus entes queridos, daqueles que conhecem ou mesmo com a própria dor, porém lidar com a dor de desconhecidos, acessar suas inseguranças mais íntimas, trabalhar com suas incertezas e seu contexto é algo verdadeiramente engrandecedor.
No mesmo dia, ao final do turno, estou indo para casa e vejo uma criança ser carregada pela mãe, em uso de órtese em membros inferiores (uma aparente marcha em tesoura denunciava uma possível "paralisia cerebral"), ele se esforçava naqueles passos fortes e severos para acompanhar a mãe e a mesma parecia que queria extrair do seu filho toda aquela força que ela sabe ser necessária para encarar um mundo pela frente, diante de todas as limitações.
- Fiquei a pensar: como existem lutas e batalhas sendo travadas em cada esquina, em cada olhar, em cada gota de suor, de uma criança a uma senhora, todos, absolutamente todos estão compartilhando suas dores conosco dia a dia. Por que muitas vezes não enxergamos? Não queria me prolongar tanto quando comecei a digitar despretensiosamente esse texto, mas eu precisava compartilhar o que é a oportunidade de ser mudado dia após dia, nos mínimos detalhes, em cada gota de suor e de sofrimento que tentamos amenizar. Que possamos refletir sobre nossos problemas sempre, sobre o contexto em que estamos inseridos, sobre a dor do próximo, sobre a oportunidade de estar vivo e que isso na verdade é um presente, que infelizmente, e me dói muito dizer isso, não é um presente disponível para todos.
Sigo tentando aprender com tantos heróis dia após dia, a cada despertador.