Passados mais de trinta anos da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), impressiona o quão arraigada está na nossa cultura a imagem imediatista da abordagem curativista das doenças. No campo da Saúde Pública / Saúde Coletiva o exercício cotidiano dos sanitaristas reside na tentativa de implementar o paradigma novo da abordagem preventiva. Paradigma, que sabemos, não é tão novo assim e muito menos questionável, em tese.
É fato que está sedimentado na sabedoria popular o provérbio "É melhor prevenir do que remediar". Porém, quando se trata de doença, o que queremos mesmo é um lugar, de preferência suntuoso e cheio de equipamentos de última geração, para nos receber e nos "devolver" a tal saúde perdida. Considerando isto, no caso do Brasil, foi relativamente fácil ao segmento empresarial pressionar o segmento político no sentido de alimentar a ideia de que a melhor estratégia para enfrentar a pandemia do Novo Coronavírus (SARS-CoV-2) é garantir o funcionamento pleno do segmento econômico. E, quanto ao povo, é suficiente demonstrar que está tudo sob controle, pois existem vagas suficientes nas UTI's.
Assim foi feito e, ultimamente, passamos a verificar uma corrida desenfreada de Estados e Municípios objetivando oferecer vagas em enfermaria e UTI para receber as pessoas que sabidamente adoecerão, uma vez que o passo seguinte seria a flexibilização do isolamento social. Para o povo a solução perfeita porque, além de poder buscar o necessário sustento à sua sobrevivência, sairiam do confinamento doentio e passariam a frequentar lojas, praias e bares. Como dizem, teriam a vida de volta!
Como sabemos, faz aproximadamente doze meses que o mundo passou a ter conhecimento que na China estava em curso uma nova virose com potencial pandêmico e em três meses a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhecia que o surto chinês havia evoluído para epidemia e agora já se tratava de uma pandemia. Atualmente é possível constatar que por onde SARS-CoV-2 passou o comportamento dos governantes foi decisivo para o desfecho da onda viral, ou seja, nos países onde houve sintonia fina entre a política e a ciência os danos foram atenuados sobremaneira. Alguns países, entretanto, optaram politicamente por negar a epidemia, descredenciar a OMS, ocultar informações epidemiológicas à população e quando decidiram rever o rumo os prejuízos em termos de perdas de vidas humanas já eram assustadores.
Foi, também, no "outro lado do mundo" que se verificaram os melhores exemplos de manejo da pandemia e esses países se tornaram referências mundiais para aqueles que decidiram trilhar o melhor caminho. Já no Brasil os exemplos do chefe do executivo da nação foram e ainda são os piores possíveis! O Presidente da República simplesmente assumiu de público o seu desejo que a população se expusesse ao vírus, sob a alegação de que mesmo com o isolamento social o contágio seria inevitável e os danos econômicos seriam profundos. A partir dessa postura do governo central toda a sorte de dificuldade foi estabelecida no manejo da virose nos diversos Estados: as medidas de suporte social privativas do governo federal às unidades federadas, aos pequenos empresários e aos trabalhadores aconteceram de forma extremamente lenta pairando até mesmo dúvidas se o retardo não foi deliberado objetivando desestimular qualquer planejamento de isolamento social.
No meio do fogo cruzado entre governo federal, governos estaduais e governos municipais os poderes judiciário e legislativo federal realizam intermediações tentando atenuar os danos aos pequenos empresários e trabalhadores que se encontra sem renda, sem garantia de emprego sem a adequada proteção social do poder público. Ante ao cenário restou ao trabalhador implorar pela garantia de uma vaga na UTI porque permanecer em isolamento social não era mais viável. A constatação de que a população não estava mais em condições de realizar o isolamento social e tudo o que queria era uma vaga na UTI soou como uma música nos ouvidos de governos e empresários. Não demorou e passamos a ter uma corrida na instalação de leitos e os consequentes protocolos de abertura dos serviços que se configura, na prática, abandono do isolamento social e instalação da estratégia de "Imunidade de Rebanho".
De maneira geral acredito que a população tem ciência que, no caso da contaminação pelo Novo Coronavírus, a suposta garantia de vaga na UTI não é garantia de sobrevivência! O que está por trás desse desejo é apenas a manifestação do desespero de saber que, ao ser obrigada a abandonar o isolamento social, poder morrer em casa, sem AR.
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