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Boa noite, Punpun e onde a pediatria e a psiquiatria se encontram

Boa noite, Punpun  e onde a pediatria e a psiquiatria se encontram
Henri Hajime Sato
set. 1 - 11 min de leitura
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 Atenção: essa obra é extremamente pesada psicologicamente, evitem ver essa obra sob estados mentais alterados sem acompanhamento.  

Falar de Evangelion é relativamente fácil. A obra é digestiva, tem personagens por mais odiados que sejam, conseguimos uma simpatia inconsciente e ainda o tema "mecha" (tradução= porrada com robôs gigantes) tornam as coisas até divertidas. 

Agora falar de outras obras estilo anime-mangá de profundidade  é interessante, mas dá uma certa “azia” por ser muito crua.

Às vezes aquele tipo de obra que gente que acha que Lars von Trier é revolucionário por pegar pesado no terror psicológico (na verdade as obras dele na minha opinião é psiquiatria/psicanálise para idiotas). 

E eu acho que muitos mangás, HQs e quadrinhos tem mais profundidade e assunto.

E hoje vamos falar de Oyasumi Punpun ou Boa noite Punpun. 

Então prepare a pipoca, o lítio, e o benzo. 

A primeira vez que ouvi falar da obra foi quando eu ouvi a trilha sonora de evangelion 2.22, Tsubasa no kudasai(e descobri duas coisas, primeiro que essa música é tipo aquelas músicas que as professoras de ensino fundamental adaptam para crianças cantarem e nos comentários do youtube você mais lia “não ouça isso lendo boa noite Punpun”). 

E eu como todo bom rebelde não o fiz, mas por ironia do destino a obra foi encadernada no Brasil nesse período e eu resolvi comprar. 

Ah e a música era uma música que o coral de crianças da escola cantava.

A obra em si é altamente premiada("Melhor Edição dos Estados Unidos de Material Estrangeiro—Ásia" no prêmio Eisner, o Oscar das HQs) retrata o lado da percepção de uma criança até sua idade adulta, com direito a todos os assuntos mais pesados se tratando de psiquiatria adulta e principalmente infantil. 

Punpun Onodera é uma criança que poderíamos descrever até o começo do primeiro volume como uma criança “normal”, um pouco hiperativa, com toda aquela história de desenvolvimento neuropsicomotor e tudo mais nos eixos. 

Até aí seria somente aquelas obras que dizem sobre o “cotidiano” que não são ruins visto que sucesso de Hayao Miyazaki, criador dos studios Ghibli, não bebe dessa fonte, ele criou essa fonte, nada nela, engarrafa e vende. 

Isso até quando ele descobre sua primeira “paixonite”, a menina Aiko e ele conversa diretamente com ela que diz “olha, o mundo vai acabar”

Então ele decide em seu estado infantil de onipotência de querer ser o macho alfa que ao menos vai postergar isso e ficar ao lado de Aiko como um cientista espacial. E daí que a estética vai se desenvolvendo onde realmente a obra é considerada interessante. 

A sensação de onipotência da criança/adolescente que o persegue até a tenra idade adulta como qualquer pessoa. Eu chamo de "adultecimento".  

O que me fascina na obra é a capacidade de como enxergar isso na ótica de uma criança. Como as coisas podem ser suaves e inocentes no olhar de uma criança, mas podemos ver que são na verdade são horrores sociais. 

É engraçado no início que Punpun enxergue as coisas de forma hiperbólica e meio exagerada. Como o sentimento de um professor surtando em sua imaginação se contorcendo e gritando ou até mesmo suas fantasias com a Aiko. 

Punpun e seus amigos principalmente na infância não enxergavam o mundo como o real, de acordo com a maioria, eles enxergavam na sua infância uma forma dissociada com a realidade e à medida que eles vão envelhecendo o mundo se torna mais realista e pior(e isso o autor queria mostrar) é que a realidade tende ser mais crua ou até mesmo menos cruel que a percepção infantil para quem está lendo a obra. 

E nesse ponto que a coisa fica pesada de associar com a psiquiatria: é que maioria dos personagens de "Boa noite Punpun" são completamente disfuncionais, ao mesmo tempo que são saudáveis. 

Até nisso faz a reflexão "o que é saúde mental?" 

Ele morou com os pais até os primeiros momentos da maioridade. O pai era alcoólatra e agressivo, a mãe vivia em casos extraconjugais se achando péssima amante, pois era descartada porque era velha e mãe e seu tio, um artista depressivo, pobre e frustrado. 

E a obra mostra que ele não enxergava isso, na verdade era até dissociativo. Tanto que ele "conversava com Deus", como seu tio lhe ensinara para tentar entender o mundo e Deus sempre o deixava mais esclarecido ao passo que deixa quem ler confuso.

Aliás, o que leva a maior particularidade da obra. Enquanto tudo é bem desenhado, os personagens com rostos, desenhos, estética e arte final (o que dá a impressão de sombreamento e ambiente no desenho) bem definidos, Punpun, seu tio e seus pais são desenhados parecidos com pássaros de rabisco. 

Na foto aiko e PunPun criança, mostrando o contraste do desenho 

E visto isso a obra se divide em vários arcos que se entrelaçam de alguma forma com a história de Punpun. 

O crescimento de Punpun, as relações afetivas, sexuais e emocionais com falhas normais e patológicas, cuja culpa não é dele somente e sim de um ciclo social confuso, que acho que o autor quis transmitir o que é abandono, a depressão e a vida sob a ótica da fantasia infantil. 

Aiko também era uma criança que era fora do normal, ela era pertencente a uma seita de fim dos tempos, no melhor estilo Jim Jones. Sua mãe era uma stripper de webcam (um emprego que hoje está muito na moda e até hoje não entendo a razão) e frequentemente a agredia física e moralmente (e em alguns aspectos até atentando contra sua sexualidade quando a mãe não se importava de a filha não estar no mesmo cômodo no “expediente” vestida de colegial) 

Seus amigos de escola ou eram negligenciados pelos pais ou a escola não conseguia chegar nelas porque, de acordo com a minha percepção, o conselheiro estudantil não enxergava nada na criança além do potencial produtivo (o que bate com a nossa sociedade e mais com a japonesa)

“Como você vai ser um membro prestativo para a sociedade com notas tão baixas e desmotivação” 

Note que eu não mencionei que essas crianças foram “ajudadas”, cada um no seu jeito. O que me lembra muito "stand by me".  

Aiko, Pun Pun e seus amigos

Crianças, independentemente da origem, capacidade de cognitiva, condição biológica ou social são livros em branco e, conforme sua história vai sendo escrita, você percebe a qualidade, quantidade de papel, das canetas e os instrumentos disponíveis para a escrita de alguns. 

Seja como for, há fatores constitucionais (genéticos, biológicos) e psicossociais (ambiente de convivência, relações pessoais e ambiente familiar). 

Punpun cresce, o ambiente tende a ser mais frio e o ambiente muda, mas não deixa de ser menos cruel a todos, mesmo com o amadurecimento. 

E no final, a obra te inverte em percepção, nós vemos e queremos presenciar um mundo dissociado e podemos até nos induzir nisso, porque o autor deixa e demonstra justamente como a realidade dessa obra dói (e não é pouco) e como a psicose(no termo de fantasia) é uma fuga da realidade a todos. E isso é usado na capa.

Criança

Ele não sabendo se enxergar como Adolescente

Sua dissociação ao lado que ele queria ser "mal"

E a última capa, que é uma regressão a si e uns spoilers que você tem que ler

Uma coisa que eu gosto na obra e que vai contra alguns defensores de esquina de saúde mental. 

Resiliência às vezes é uma grande mentira e criar isso numa pessoa é tão difícil e mal-feito quanto as indicações feitas pelo mesmo médico. 

Punpun frequentemente se sente sozinho, isolado, todos ao seu redor o abandonam ou usam ele para suas próprias frustrações sexuais e emocionais (vide o que sua mãe, a própria Aiko, e a tia, namorada de seu tio fizeram com ele). E ele não era um herói ou algo assim, ele errava como qualquer ser humano. 

Entrou numa situação de ajudar uma “namorada” a abortar uma criança de um relacionamento anterior, mas fugiu, era grudento por quem se apaixonava e constantemente se agredia, seja emocionalmente ou fisicamente.   

Entrou em depressão extrema se isolando de todos(e sem hipocrisia, a maioria das pessoas, menos essa namorada, não tinha paciência ou importância e essa namorada o usava para também não ser solitária).

Foi abusivo, quis ser mal “de propósito”, se enxergava como um monstro e até mesmo nem conseguia definir sua identidade (seus traços de desenho mostram isso ao decorrer do tema). 

Mas ele era mau? Então lembra da parte que eu disse sobre as crianças serem livros em branco? Ele não era mau de acordo com a história, ele só vivia as circunstâncias e a negligência com a falta de compreensão real de suas necessidades. 

Até mesmo a sua “namorada” com quem ele fica no final vai atrás dos pais de Punpun e descobre sob a ótica de um adulto(diferente como o da criança nos volumes iniciais) como foi sua vida e a primeira coisa que ela faz quando ouve a história toda do pai do protagonista: 

“Tenho de encontrar ele logo, ele precisa urgentemente de ajuda e nunca soube disso” 

De fato, todos os personagens dessa obra precisam e infelizmente de forma realista/psicótica não é chegado a ajuda de forma adequada. Ou muitos la passaram por dificuldades inerentes à “normalidade”.  

Ao Punpun e a algumas personagens é fácil inferir o patológico, mas alguns personagens é difícil discernir do que é uma dificuldade de vida normal ou uma vida muito ferrada.   

Se eu quisesse transmitir uma mensagem com a obra com que aprendi sobre psicologia infantil básica e isso aprendi conversando com o palhaço de um hospital infantil de câncer que eu trabalhei: 

Temos que deixar as crianças serem crianças ao máximo” 

O culto do apocalipse teve o mesmo final do Jim Jones e para ironia do autor, a morte foi retratada de forma ambígua como real e fantasiosa. 

Aiko, tentando fugir com Punpun após ambos terem acidentalmente matado a mãe dela, se suicida com uma dor que psicologicamente era intensa e a presença de Punpun naquela fase de vida dele não a ajudava. 

Punpun tenta se matar furando um olho, mas falha e a tempo(para não dar um tom trágico-clichê à obra, um belo toque) consegue ser resgatado de si, por seus amigos e sua namorada. 

O que mostra a subjetividade da obra, não é um final feliz, mas é confortável e real. E definitivamente é uma daquelas obras que eu indicaria tranquilamente a alguém que quer fazer pediatria e entender a criança de verdade. 

“Porque até mentalmente criança não é adulto pequeno” 

 


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