É fato que a pandemia da COVID 19 permitiu que nós, como sociedade, atribuíssemos um novo valor, um novo significado à ciência e pesquisa. E essa percepção veio de encontro a uma inquietude que venho “matutando” há um bom tempo.
Sou acadêmica de Medicina – e, estou prestes, a ter meu CRM. Minha caminhada difere-se àquela que a grande maioria percorre. Ingressei na faculdade em 2010; percalços, tropeços e angústias fizeram com que postergasse o meu avançar no curso (pit stops estratégicos e de emergência – que, em outra oportunidade, podemos explorar). Contudo, esse caminho pouco usual permitiu que eu chegasse na reta final com uma maturidade, uma visão de mundo intangíveis se tivesse seguido o cronograma padrão do Curso.
Lembro-me muito bem a percepção que tinha acerca das cadeiras básicas da graduação; o quanto as considerava enfadonhas, uma total perda de tempo. A obrigatoriedade do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) me gerava um incômodo tamanho. Minha alegria ao saber que a faculdade para onde transferi não exigia o TCC foi imensa – e, aqui, aproveito para deixar um ponto de interrogação: ciência e pesquisa são sinônimos de ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas)? O que posso afirmar é que se eu tivesse a oportunidade de me aprofundar no universo da ciência sem a necessidade de me ater a normas, estaria produzindo há muito mais tempo...
Bom, voltando ao que motivou esse texto: quem não se lembra do contingenciamento dos recursos destinados à pesquisa? Aprovado no 2º semestre de 2019, sob aplausos da maioria da população – míope ao estereotipar o cientista em um aproveitador da renda destinada à educação, que dedica seu tempo a irrelevantes experimentos... Contudo, o corona veio, desfazendo-se das fantasias impostas à pesquisa, ciência e tecnologia; pois, a ciência está em tudo que nos rodeia (bem dizia Sócrates, o filósofo ok?; e não o jogador de futebol: “a vida sem ciência é uma espécie de morte”).
Os fluxo de recursos financeiros para a pesquisa, coordenado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), define como meta orçamentária, em seu Plano de Ação de Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Nacional (PACTI), o equivalente a 1,5% do PIB (Produto Interno Bruto). Contudo, o máximo alcançado, até hoje, foi 1,2% - indo de encontro ao garantido pelo atual presidente, em sua campanha presidencial, de ampliar essa meta para 3% do PIB; e aos 2% do PIB, definidos, para o quadriênio 2016-2019, na Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (ENCTI).
O que temos hoje é um precário orçamento do MCTIC: dos R$ 4,7 bilhões arrecadados pelo FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia), apenas R$ 600 milhões foram utilizados (contingenciamento dos recursos de incentivo à pesquisa). Com a falta de perspectiva no setor público, nossas esperanças recaem nos ombros da iniciativa privada. O que chamamos de “dinheiro novo” corresponde ao montante não reservado, no orçamento, para enfrentar a pandemia (oriundos de investimentos do setor privado, ou de arrecadações de distintos setores governamentais.
Como vivemos em um mundo globalizado, que tal compararmos o esforço tupiniquim com outras nações?:
Brasil: $ 100 milhões (1,8% PIB)
Estados Unidos da América: $ 6,1 bilhões (4,1% PIB)
Alemanha: $ 2,34 bilhões (6,3% PIB)
Reino Unido: $ 1,7 bilhão (10,8% PIB)
Canadá: $ 970 milhões (11,8% PIB)
Estudos de Levy Economics Institute, em 2017, indicam que o incremento de apenas 1% nos gastos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) gera um crescimento, adicional, no PIB de, pasmem! aproximadamente 9,92%.
Como ampliar a reserva de recursos para o pesquisa no Brasil? Como captar incentivos da iniciativa privada? Em uma das discussões do USP Talks, disponíveis no YouTube, Carlos Henrique de Brito Cruz - engenheiro e físico brasileiro, reitor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) entre os anos de 2002 a 2005; revela o motivo de as empresas brasileiras terem poucos pesquisadores. Simplesmente porque a economia brasileira favorece o crescimento de empresas sem a necessidade de uma contínua criação; não exigindo sua exposição à competitividade de mercado.
Nessa mesma discussão, Brito – juntamente com Glaucius Oliva - coordenador do Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) – elencam duas possíveis estratégias de captação de parceiros: disponibilizar incentivos fiscais às pequenas e microempresas que fomentem a Inovação, Pesquisa e Desenvolvimento; incentivar maior absorção de pesquisadores e pós-graduados nas empresas.
O CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) enfrenta um cenário desalentador no qual os recursos estão cada vez mais escassos, e a comunidade científica se mantém numerosa já que o profissional intelectual ainda não é visto como bem de valor em nossa comunidade – e se enraízam no academicismo.
Como motivar o acadêmico a ingressar nesse universo? As bolsas de estudo para mestrandos e doutorandos não são reajustadas desde 2013 (Mestrado/02 ou 04 anos de dedicação = R$ 1.500/mês; Doutorado/02 anos de extensão = R$ 2.200/mês). É aqui que se mostra necessário um novo mindset da formação médica acadêmica: um modelo de ciência de gestão que se comunica com o ambiente inovador que as empresas exigem. Pedro Englert (CEO da StartSe – escola de negócios com foco em transformar o futuro) ressalta que a inovação mostra-se necessária diante das transformações após momentos de crise. O startup style, afirma Englert, revela-se como um movimento de democratização da inovação – que, alinhando-se ao startup movement, promove uma nova maneira de organizar e engajar times para grandes propósitos, tornando-se células de uma nova economia.
O desafio atual não se limita a encontrar um canal de diálogo permanente entre cientista e o cidadão, com a missão de mostrar a relevância da pesquisa na vida das pessoas; mas, de motivar os jovens a ingressarem no universo da ciência e tecnologia, e perceberem que medicina ultrapassa o desgastado caminho faculdade-residência-consultório.
Chegou o momento de contribuirmos para a conscientização cultural no reconhecimento da pesquisa como material de consumo, um bem cultural e simbólico da realização da qualidade de vida humana.
REFERÊNCIAS:
1) USP Talks. O futuro da ciência no Brasil - Debate. 2020. (51m37s). Disponível em: <https://youtu.be/DMsMsol9rGw>. Acesso em: 15 set. 2020.
2) GUIMARAES, Reinaldo et al . Política de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v. 24, n. 3, p. 881-886, Mar. 2019 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232019000300881&lng=en&nrm=iso>. acesso 14 set.2020. https://doi.org/10.1590/1413-81232018243.34652018
3) Pesquisa em saúde no Brasil. Rev. Saúde Pública, São Paulo , v. 42, n. 4, p. 773-775, Aug. 2008 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102008000400027&lng=en&nrm=iso>. acesso em 15 set.2020. https://doi.org/10.1590/S0034-89102008000400027.
4) A ciência faz muito pelo Brasil, mas quanto o Brasil faz por ela? ; Renata Vilela. Publicado em 03 de abril de 2020. Acesso em 15 set.2020. Disponível em: < https://recontaai.com.br/atualiza-ai/a-ciencia-faz-muito-pelo-brasil-quanto-o-brasil-faz-por-ela/>
5) Ambições no combate à pandemia: faltam recursos para pesquisa; Fabrício Marques. Publicado em 29 de junho de 2020. Acesso em 15 set.2020. Disponível em: < https://www.nexojornal.com.br/externo/2020/06/29/Ambi%C3%A7%C3%B5es-no-combate-%C3%A0-pandemia-faltam-recursos-para-pesquisa>