Discussão: descriminalização do aborto até a 12º semana de gestação
No mês de março houve o Encontro Nacional dos Conselhos de Medicina. Em tal ocasião, e após maioria dos concelhos estaduais, foi redigido um documento que servirá de base para o tema aborto no novo Código Penal Brasileiro , que tramita ainda em caráter de projeto no congresso nacional. As reações vieram de todos, principalmente por se tratar de um tema que é historicamente polêmico.
Por maioria, os conselhos de medicina concordaram que a reforma do Código Penal deve afastar a ilicitude da interrupção da gestação nas seguintes situações:
a) quando “houver risco à vida ou à saúde da gestante”;
b)se “a gravidez resultar de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida”;
c) se for “comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente, em ambos os casos atestado por dois médicos”;
d) se “por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação”. (sendo este ponto que causou a discórdia dentro da classe)
Para elucidar um pouco, trouxemos a posição defendida pelo CFM, veiculada em seu jornal mensal do mês de Abril de 2013; e a da AMB que foi publicada primeiramente no Jornal o Estado de São Paulo, no dia primeiro de Abril de 2013
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Posição do CFM
Presidente [do CFM ] esclarece posicionamento adotado:
A posição do CFM e dos 27 conselhos regionais de medicina (CRMs) acerca da ampliação dos excludentes de ilicitudes penais em caso de interrupção de aborto foi anunciada à imprensa no dia 21 de março pelo presidente Roberto d´Avila. Na ocasião, esclareceu que o CFM não é favor da descriminalização do aborto. “Somos a favor da vida, mas queremos respeitar a autonomia da mulher que, até a 12ª semana, tomou a decisão de praticar a interrupção da gravidez e precisa ter amparo hospitalar. Também defendemos a autonomia do médico, que, nesses casos, deve agir de acordo com a sua consciência. Ninguém é obrigado a fazer algo acerca do qual é contra”, afirmou.
O presidente do CFM esclareceu os motivos que levaram o CFM a estabelecer o limite de 12 semanas e explicou, ainda, que até a sociedade brasileira decidir sobre a descriminalização do aborto “o CFM continuará a julgar os médicos que praticam o ato”.d'Avila reafirmou que
o CFM continuará a defender a vida, mas que a entidade não poderia se omitir diante da realidade brasileira, na qual as mulheres das classes média e alta pagam para fazer abortos com segurança em clínicas clandestinas, enquanto as pobres usam métodos perigosos, que
muitas vezes provocam a morte. “Não nos esqueçamos de que os abortos são a quinta causa de mortes no Brasil. Ao defendermos a exclusão de ilicitude estamos a favor da justiça social e olhando a questão a partir de um problema de saúde pública”, argumentou
Ética, saúde pública e justiça: aspectos considerados pelas entidades
A decisão da maioria dos conselhos de medicina se amparou em vários aspectos. Confira abaixo:
Éticos e bioéticos – Entendeu-se, por maioria, que os atuais limites excludentes da ilicitude do aborto previstos no Código Penal de 1940, devidamente respeitados pelas entidades médicas, são incoerentes com compromissos humanísticos e humanitários, paradoxais à responsabilidade social e aos tratados internacionais subscritos pelo governo brasileiro. Ressalte-se que a rigidez dos princípios não deve ir de encontro às suas finalidades. Neste sentido, deve-se ter em mente que a proteção ao ser humano se destaca como apriorístico objetivo moral e ético. Tais parâmetros não podem ser definidos a contento sem o auxílio dos princípios da autonomia, que enseja reverência à pessoa, por suas opiniões e crenças; da beneficência, no sentido de não causar dano, extremar os benefícios e minimizar os riscos; da não maleficência; e da justiça ou imparcialidade, na distribuição dos riscos e benefícios, primando-se pela equidade.
Epidemiológicos – A prática de abortos não seguros (realizados por pessoas sem treinamento, com o emprego de equipamentos perigosos ou em instituições sem higiene) tem forte impacto sobre a Saúde Pública. No Brasil, o abortamento é importante causa de mortalidade materna, sendo evitável em 92% dos casos. Além disso, as complicações causadas por este tipo de procedimento realizado de forma insegura representam a terceira causa de ocupação dos leitos obstétricos. Em 2001, houve 243 mil internações na rede do SUS por
curetagens pós-abortamento.
Sociais – As estatísticas de morbidade e mortalidade da mulher em decorrência de práticas inseguras na interrupção da gestação são ainda maiores devido à dificuldade de acesso à assistência adequada, especialmente da parcela menos favorecida da população. Esse aspecto agrega a dimensão social ao problema, que lança no limbo importante segmento de mulheres que acabam perdendo a vida ou comprometendo sua saúde por conta de práticas sem o menor cuidado.
Jurídicos – Entende-se que a proposta de alteração do Código Penal estabelecida no PLS 236/12 não irá descriminalizar o aborto. O crime de aborto continuará a existir, apenas serão criadas outras causas excludentes de ilicitude. Portanto, somente nas situações previstas no projeto em tramitação no Congresso a interrupção da gestação não configurará crime. Caso seja aprovado, por exemplo.
Fonte: CFM
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Posição da AMB
Liberação do aborto até 12 semanas não é consenso entre médicos
Florentino Cardoso e Florisval Meinão*
(artigo originalmente publlicado no jornal O Estado de São Paulo, A2, do dia 01/04/13)
A respeito da recente posição do Conselho Federal de Medicina (CFM) favorável à autonomia da mulher para decidir sobre a interrupção da gravidez até a sua 12.ª semana sem necessidade de autorização médica, é fundamental esclarecer que esse não é, sobremaneira, o pensamento de todos os médicos brasileiros. Em nossa visão, a medicina é uma ciência que cuida da vida e a respeita prioritariamente.
Crianças em gestação de até 12 semanas são seres vivos. Portanto, aprovar a autonomia pura e simples da mãe sobre a interrupção da gravidez equivale a concordar com a eliminação de vidas sem maiores justificativas. Essa prática não condiz com os princípios da medicina, na opinião de parcela significativa dos médicos.
Sendo assim, consideramos precipitado o indicativo de uma entidade médica, da forma contundente como foi feito, a respeito de um tema extremamente delicado e polêmico, que deve ser amplamente debatido por toda a sociedade brasileira. Os médicos, como qualquer outro segmento social, obviamente, têm o direito de expressar suas opiniões. No entanto, por não refletir a posição consensual dos profissionais de medicina, a manifestação do CFM pode confundir a opinião pública e até mesmo prejudicar a imagem dos médicos perante a população. A atitude de desconsiderar a diversidade moral e cultural no meio médico, assim como a multiplicidade argumentativa, fere, inclusivamente, o discurso da bioética, plural e aprofundado, em torno do aborto.
Defendemos a interrupção da gravidez nos casos em que há indicação clínica, como anencefalia - malformação que causa a ausência total ou parcial do cérebro - e risco para a saúde e de morte comprovados da gestante. Ao mesmo tempo, outras situações devem ser discutidas e decididas pela sociedade, como ocorreu em relação às gestações ocasionadas por estupro, atualmente passíveis de aborto legalizado.
Interessante trabalho conjunto da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) aponta que 70% das mulheres que abortam no Brasil são escolarizadas, têm entre 20 e 29 anos, têm, no mínimo, um filho e vivem em relação estável. Portanto, esses resultados estão em desacordo com a tese de que a maioria dos procedimentos ilegais para interromper a gestação se refere a mulheres da parcela menos favorecida da população e que não tem acesso à informação.
Por sua vez, embora defenda a autonomia da mulher para realizar o aborto, a organização não governamental Católicas pelo Direito de Decidir encomendou pesquisa ao Ibope que mostrou, entre outros dados, que 59% dos entrevistados discordam da interrupção da gravidez em qualquer caso e 47% discordam da condenação de mulheres que a fazem por problemas financeiros, medo de perder o emprego e abandono do parceiro. Foram ouvidos 2.002 católicos em 140 cidades, no mês de novembro de 2010.
Vale lembrar que a autonomia da mulher sobre seu corpo - expressão citada pelo Conselho Federal de Medicina em sua recente divulgação -, primeiramente possibilita a ela utilizar métodos contraceptivos, o que é difundido em nosso país por meio da oferta de pílulas anticoncepcionais no programa Farmácia Popular e de campanhas de distribuição de preservativos, apenas para citar alguns exemplos. Já a decisão de abortar, ainda que somente até o terceiro mês de gravidez, não envolve apenas a mãe, mas, em especial, a criança. Trata-se do direito à vida.
Também é questionável o estabelecimento de um limite como 12 semanas. Muitos de nós se perguntam qual é a diferença entre um feto de 12 semanas, 13 semanas ou 40 semanas. Outros vão além, inquirindo sobre o que diferencia um bebê em gestação de outro que já nasceu, tendo em vista que todos os nossos sentidos se desenvolvem dentro do útero materno, assim como as nossas primeiras percepções.
O argumento de que a medida - a liberação do aborto em gestações de até 12 semanas - evitaria as graves consequências dos procedimentos clandestinos é insuficiente para justificá-la. Esse é um desafio permeado por diversas determinantes sociais, que precisa ser enfrentado pela sociedade. Não pode, no entanto, ser reduzido à decisão simplista de permitir a eliminação de vidas de maneira irrestrita. O respeito à vida deve sempre nortear esse debate.
De acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil dispõe de 138 serviços de interrupção legal da gravidez e está sendo reforçado o acolhimento, por equipes multidisciplinares, de pacientes que se tenham submetido a práticas inseguras de aborto. Pretende-se avançar, ainda, no planejamento familiar. Medicamentos orais e injetáveis de contracepção e dispositivos intrauterinos (os DIUs) são distribuídos gratuitamente, enquanto o serviço público também oferece laqueadura de trompas e vasectomia nos casos em que são indicados. Ações como essas têm de ser reforçadas continuamente.
No processo de reforma do Código Penal, em trâmite no Congresso Nacional, esperamos que sejam preservados os pontos de vista de todos os médicos brasileiros no que se refere a esse tema. Os parlamentares e juristas que se debruçam sobre a questão devem oferecer oportunidades equânimes para que os profissionais de medicina se expressem em suas diferentes visões.
É importante que o debate tenha participação efetiva de todos os médicos, associações de especialidades médicas e outras entidades representativas, juntamente com os demais setores da sociedade. Só assim poderemos enriquecer as variadas argumentações, levando a uma reflexão madura e pautada nos aspectos científicos, éticos, morais, religiosos, culturais e sociais, como deve ser numa democracia como a nossa.
* Florentino Cardoso é presidente da Associação Médica Brasileira.
* Florisval Meinão é presidente da Associação Paulista de Medicina.
fonte : AMB