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ENSAIO CLÍNICO E SUAS IMPLICAÇÕES: A polêmica do Desinfetante

ENSAIO CLÍNICO E SUAS IMPLICAÇÕES: A polêmica do Desinfetante
Renata Campos Cadidé
mai. 4 - 11 min de leitura
020

 

A POLÊMICA

Em uma coletiva sobre a evolução da crise do coronavírus nos Estados Unidos (EUA), feita na tarde do dia 23 de abril de 2020 , Donald Trump,  em um comentário infeliz (para dizer o mínimo), sugestionou uma possível eficácia no uso de "desinfetante" para tratamento de pacientes com a COVID-19, devido a ação desse tipo de produto no combate químico ao patógeno para prevenir sua disseminação. 

Neste mesmo dia, o Centro de Controle de Envenenamento de Nova York,  registrou vários casos de intoxicação relacionados ao uso desse tipo de substância ou similares. 

Claramente, existe muita negligência relacionada às evidências científicas que permeiam os tratamentos contra o novo coronavírus.  Porém, a maior parte dos "achismos" gira em torno de medicações já deferidas para uso em humanos.

Ao recomendar o uso de produtos químicos, que trazem na própria embalagem classificação de perigo de consumo e contato, o presidente fez uso indevido do poder de influência atribuído ao seu posicionamento social e ainda disseminou uma informação que está longe de ser uma verdade médica.

Neste sentido, entender como se dão as pesquisas pré-clínicas e os ensaios clínicos é de crucial importância para propagar a boa medicina.

COMO TESTAR NOVOS MEDICAMENTOS?

No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), estabelece que para o uso de novos medicamentos na população é necessário o cumprimento de pelo menos 3 etapas: pesquisa pré-clínica, o ensaio clínico e a farmacovigilângia, uma seguida da outra.

No caso da COVID-19, a maior parte dos medicamentos selecionados em testes já passaram por essas etapas, porém direcionadas para outras enfermidades. 

Embora tais medicamentos sejam comprovadamente seguros para uso humano, esses fármacos devem ser novamente testados através de ensaios clínicos, uma vez que estamos lidando com uma outra doença.

Até o presente momento, nenhum medicamento foi definido como tratamento standard para a COVID-19. Alguns dos medicamentos introduzidos em pesquisas clínicas para esse fim englobam o grupo dos antimaláricos, antiprotozoários, antiretrovirais, anticorpos monoclonais, citocinas, dentre outros

Alguns mostraram bons resultados, outros nem tanto. Outros à princípio pareciam promissores e acabaram sendo prejudiciais. E por ai vai...

A maior parte dos paciente que acabam entrando nos ensaios clínicos voltados para o tratamentos do vírus SARS-CoV-2 são pacientes que já passaram pelas condutas de protocolo COVID-19 e ainda permanecem graves ou são incluídos em estudos através de termos de consentimento livres e esclarecidos (TCLE), por opção própria.

Isso porque a boa prática médica exige que se faça medicina baseada em evidências e enquanto isso não for uma verdade replicável ainda estamos "pisando em ovos".

ENSAIO CLÍNICO

Definição

Os ensaios clínicos são considerados investigações originais com desenho de estudo do tipo intervencionista, longitudinal e prospectivo, isto é, são estudos experimentais que trazem o acompanhamento do uso de determinadas substâncias por pacientes, com o intuito de comparar exposições e atribuir uma relação causal depois de certo período de tempo.

 

Metodologia

O modelo de estudo consiste basicamente em dividir os pacientes, em no mínimo, 2 grupos, um grupo "intervenção" , que recebe o tratamento "A" e um grupo controle, que recebe o tratamento "B", sendo que um dos tratamentos pode ser um placebo ou um tratamento padrão, que seria o melhor tratamento disponível no mercado para determinada doença.

O ensaio clínico é a propriamente dita medicina baseada em evidências e para manter o alto grau de confiabilidade tornam-se necessárias a aplicação de algumas condutas buscando evitar os famosos viéses de pesquisa

Uma dessas condutas são as medidas de controle adotadas no estudo.  Neste quesito, o ensaio clínico pode ser do tipo randomizado ou não randomizado

O ensaio randomizado consiste em "aleatorizar" sua amostra, ou seja, sortear os participantes que serão alocados em cada um dos grupos, na tentativa de deixar os grupos mais homogêneos.

Dessa forma busca-se minimizar o viés de seleção, quando a amostra do estudo não é representativa da população, viés de confusão, quando algumas variáveis que interferem nos desfechos clínicos não estão igualmente distribuídas nos grupos, e viés de intervenção, quando o pesquisador busca melhor pareamento de variáveis e fatores e diminuindo análises tendenciosas.

Já o ensaio não randomizado aproveita a conveniência da naturalidade populacional para remeter um efeito causal,  por isso em algumas bibliografias pode ser considerado um "quase-experimento", pois não permite controlar os fatores e variáveis que podem ter ocorrido junto à intervenção escolhida, trazendo uma dúvida em relação ao resultado final.

Outra conduta muito importante é o mascaramento, que oculta o tipo de intervenção que se aplica com o intuito de evitar o viés de aferição. Esse pode ser empregado de 3 maneiras:

  • Mascaramento Cego: oculta-se o tipo de intervenção apenas dos pacientes;
  • Mascaramento Duplo-Cego: oculta-se o tipo de intervenção dos pacientes e dos médicos que fazem o seguimento;
  • Mascaramento Triplo-Cego: oculta-se o tipo de intervenção dos pacientes, dos médicos e dos pesquisadores.

Nem sempre o mascaramento ocorre exatamente dessa forma. Algumas vezes o ensaio duplo cego deve englobar paciente e pesquisador pois o médico precisa saber o que o paciente está ingerindo para poder providenciar o melhor cuidado, priorizando a segurança e o bem-estar do paciente. 

A ausência de mascaramento pode influenciar diretamente o resultado do estudo, principalmente no que tange o "efeito placebo", quando o mesmo faz parte do estudo.

Todo esse aparato se faz necessário para a aplicação das medidas de efeito através de fórmulas estatísticas possibilitando, assim, a interpretação dos resultados de pesquisa.

Expressando Resultados

Para validar uma hipótese diagnóstica é indispensável o uso da bioestatística. Na matemática 1+1=2, na medicina já pode variar, por isso estar pautado na estatística confere credibilidade ao resultado encontrado.

As medidas de efeito, também chamadas medidas de associação, nada mais são que fórmulas que quantificam o quanto o NOVO tratamento ou a NOVA proposta intervém numa doença em relação ao placebo ou ao tratamento convencional.

Para o ensaio clínico elas estão centradas nas medidas risco (Risco relativo/Redução Absoluta de Risco) e NNT (número necessário ao tratamento).  Obtê-las auxilia na previsão tanto da eficácia como também da segurança dos fármacos.

Para exemplificá-los usarei essa matriz 2x2.

  • A: Representa o grupo que usou o novo fármaco e teve piora do quadro clínico ou óbito por uma doença.  
  • B: Representa o grupo que usou o novo fármaco e teve melhora ou cura do quadro clínico por uma doença.  
  • C: Representa o grupo que usou o placebo ou passou pela terapia convencional e teve piora do quadro clínico ou óbito por uma doença.   
  • D: Representa o grupo que usou o placebo ou passou pela terapia convencional  e teve melhora ou cura do quadro clínico por uma doença. 

O risco relativo (RR) permite inferir se o NOVO tratamento é capaz de reduzir quadros de piora ou morte por uma doença. Para calculá-lo podemos usar a seguinte fórmula:
O resultado pode variar de 0-1 ou de 0-100%. Quando o resultado for igual a 1 ou 100% significa que o risco de piora ou morte é igual para quem usou o NOVO tratamento e para aqueles que usaram placebo ou tratamento convencional.  Se o resultado for menor do 1 ou 100% significa que esse risco é menor no grupo que usou o NOVO tratamento do que para aqueles que usaram placebo ou tratamento convencional. E se o resultado for maior que 1 ou 100%  significa o contrário, que esse risco é maior no grupo que usou o NOVO tratamento do que para aqueles que usaram placebo ou tratamento convencional.

O RR < 1 é um indício de segurança farmacológica. O NOVO tratamento não causou maiores danos ao grupo exposto a ele. 

Pode-se ainda calcular a eficácia do NOVO fármaco, através da fórmula: [1- RR] x 100, que representa a redução relativa do risco de piora ou óbito com o uso do novo tratamento.

A Redução Absoluta de Risco (RAR) permite inferir o quanto o NOVO tratamento é capaz de reduzir quadros de piora ou morte por uma doença. Para calculá-lo podemos usar a seguinte fórmula:

O NNT expressa o número de pacientes que precisa ser tratado para prevenir a piora ou óbito por determinada doença.  Podemos encontrá-lo através da fórmula:

STEP-BY-STEP

Após passar pela Pesquisa pré-clínica (testes in vitro e in vivo laboratorial), o ensaio clínico deve passar por mais 3 fases de verificação:


Existem duas possibilidade após esse tempo.

Para comercialização de um NOVO fármaco deve-se enviar relatórios para Anvisa, comprovando eficácia e segurança do medicamento, essa estando de acordo liberará o registro de mercado. Então será publicada uma resolução específica no Diário Oficial da União.

No caso de pesquisas que não têm essa finalidade, como de estudos acadêmicos, não é necessário o parecer da Anvisa, porém, é exijida aprovação de Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). No entanto, se a pesquisa clínica apresentar boa atuação do medicamento na doença de estudo, o medicamento pode ser registrado na Anvisa e receber a nova indicação em bula.

 

E os ensaios durante a Pandemia?

O ensaio clínico é um tipo de estudo burocrático. Além das implicações éticas e de metodologia, ainda temos a duração da pesquisa como uma barreira para estabelecer resultados fidedignos e replicáveis num curto período de tempo que a Pandemia COVID-19 carece.

Por isso, a Anvisa emitiu a Nota Técnica 14/2020 que traz orientações a patrocinadores, centros de pesquisa e investigadores envolvidos na condução de ensaios clínicos e estudos de bioequivalência que abordam o novo coronavírus, buscando amenizar conflitos éticos e impulsionar a produção científica. 

Nos EUA os Fast track são os  estudos farmacológicos experimentais conduzidos num curto período de tempo, autorizados para doenças graves ou potencialmente fatais e são esse que tem sido realizados desde os primeiros casos de COVID-19, considerando a importância do rápido compartilhamento de dados durante a pandemia.

O sistema Fast Track possibilita a publicação após a avaliação de um editor, enquanto o processo de revisão por pares fica em standby. E, essa parte exige atenção, NÃO É UM PROCESSO DE SUBMISSÃO DE REFERÊNCIA, a qualidade do estudo fica sujeita à desconfiança, e esse tem sido um dos motivos da disseminação de publicações tão rápida quando a própria disseminação do SARS-CoV-2.

As pesquisas são planejadas e demoram à ser divulgadas com a intenção de garantir a qualidade dos resultados encontrados. Há problemas de diversas ordens que devem ser pensados antes de tomar como verdades os resultados presentes nos artigos nessa época de baixa compenetração. 

Então: NÃO ACEITE TOMAR DESINFETANTE.

 


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Referências

Hochman, Bernardo, Nahas, Fabio Xerfan, Oliveira Filho, Renato Santos de, & Ferreira, Lydia Masako. (2005). Desenhos de pesquisa. Acta Cirurgica Brasileira, 20(Suppl. 2), 2-9. 

Coutinho, Evandro Silva Freire, & Cunha, Geraldo Marcelo da. (2005). Conceitos básicos de epidemiologia e estatística para a leitura de ensaios clínicos controlados. Brazilian Journal of Psychiatry, 27(2), 146-151. 

Guo, Y. R., Cao, Q. D., Hong, Z. S., Tan, Y. Y., Chen, S. D., Jin, H. J., Tan, K. S., Wang, D. Y., & Yan, Y. (2020). The origin, transmission and clinical therapies on coronavirus disease 2019 (COVID-19) outbreak - an update on the status. Military Medical Research, 7(1), 11.

Reis, Fernando Baldy dos, Lopes, Andréa Diniz, Faloppa, Flávio, & Ciconelli, Rozana Mesquita. (2008). A importância da qualidade dos estudos para a busca da melhor evidência. Revista Brasileira de Ortopedia, 43(6), 209-216.


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