Publicado no Journal of Child Psychology and Psychiatry, um dos estudos mais abrangentes sobre autismo e neuroimagem trouxe evidências importantes sobre o desenvolvimento cerebral de crianças autistas com e sem deficiência intelectual (DI). A pesquisa investigou as associações entre o quociente de inteligência (QI), a espessura cortical e a gravidade dos sintomas do autismo em uma amostra de crianças com idade média de 5,2 anos, incluindo participantes com QI variando de 19 a 133.
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é frequentemente acompanhado por variações significativas de QI, sendo a deficiência intelectual presente em cerca de 38% dos casos. No entanto, estudos neuroimagem costumam excluir indivíduos com DI devido à complexidade em obter imagens de alta qualidade nesses pacientes. Como resultado, pouco se sabe sobre como a espessura cortical, uma métrica anatômica relevante para funções cognitivas e comportamentais, se relaciona com o QI e os sintomas do autismo em toda a faixa de habilidades intelectuais.
Neste estudo, os pesquisadores buscaram responder três perguntas principais:
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Como a espessura cortical se relaciona com o QI em crianças autistas e não autistas (com desenvolvimento típico)?
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Existem diferenças estruturais no cérebro entre crianças autistas com e sem DI?
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Há sobreposição nas áreas do cérebro relacionadas ao QI e à gravidade dos sintomas do autismo?
O estudo utilizou ressonância magnética para medir a espessura cortical de crianças com e sem TEA. As análises compararam associações entre espessura cortical e QI, além de investigar se as regiões associadas ao QI também se correlacionavam com os sintomas do autismo, mensurados pelo Autism Diagnostic Observation Schedule (ADOS).
📝Principais Descobertas
1. Associação entre QI e Espessura Cortical em Crianças Autistas e Desenvolvimento típico.
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Crianças autistas e crianças com desenvolvimento típico mostraram uma associação negativa entre QI e espessura da córtex cingulado posterior direito: quanto maior o QI, mais fina essa região.
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Essa associação foi mais forte no grupo com desenvolviemento típico, sugerindo que os padrões estruturais que sustentam a inteligência diferem em crianças com autismo.
2. Diferenças entre Crianças Autistas com e sem Deficiência Intelectual
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Crianças autistas com DI apresentaram córtex mais espesso em regiões do lobo temporal (incluindo giros temporal médio e superior e córtex entorrinal), comparadas às sem DI.
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Nas crianças autistas, o QI se correlacionou negativamente com a espessura cortical nessas regiões, padrão não observado nas crianças com desenvolvimento típico.
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Esses achados reforçam a hipótese de que maior espessura cortical pode estar associada à presença de DI em vários transtornos do neurodesenvolvimento — fenômeno também observado em síndromes como Down, Williams e X Frágil.
3. Sobreposição entre Sintomas do Autismo e QI no Córtex Cerebral
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Os pesquisadores encontraram considerável sobreposição espacial entre as regiões do cérebro cujas espessuras estavam associadas ao QI e à gravidade dos sintomas do autismo.
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Essa descoberta sugere uma interdependência neurobiológica entre inteligência e características centrais do autismo, como déficits de comunicação social e comportamentos repetitivos.
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Genomas também apontam para genes compartilhados entre TEA e atraso global do desenvolvimento, reforçando essa interconexão.
4. Regiões do Cérebro Envolvidas no QI em Crianças Autistas
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As associações mais significativas em crianças autistas foram encontradas na córtex entorrinal, giro temporal, polo temporal e fusiforme direito — áreas relacionadas à memória declarativa e reconhecimento social, mas menos ligadas tradicionalmente à inteligência em populações típicas.
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Em contraste, estudos com crianças com desenvolvimento típico apontam para associações com regiões frontais, como o córtex pré-frontal e cingulado anterior.
Essa diferença pode indicar que crianças autistas utilizam diferentes sistemas neurais para sustentar suas habilidades cognitivas, possivelmente como uma forma de compensação.
🟦 Na figura abaixo extraída do conteúdo original, é possível visualizar que em crianças autistas, as mesmas regiões do cérebro que estão relacionadas à variação do QI também estão associadas à gravidade dos sintomas do autismo, revelando uma sobreposição significativa de substratos neurais entre cognição e características do espectro autista.
Esquerda (ASD FSIQ): Correlações entre espessura cortical e QI total.
Direita (ASD ADOS CSS): Correlações entre espessura cortical e gravidade dos sintomas do autismo
Implicações Clínicas
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Intervenções personalizadas: A identificação de padrões neurais distintos pode levar ao desenvolvimento de terapias mais específicas para crianças com autismo e DI.
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Diagnóstico mais preciso: Diferenciar alterações associadas ao autismo das associadas à DI pode melhorar o diagnóstico e a estimativa de necessidades funcionais.
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Importância de incluir DI em estudos: A exclusão recorrente de autistas com DI limita a generalização de achados científicos. Este estudo preenche uma lacuna fundamental.
Limitações do Estudo
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A análise foi transversal, ou seja, feita em um único ponto do tempo. Estudos longitudinais serão essenciais para entender como essas diferenças estruturais evoluem.
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A amostra de desenvolvimento típico tinha QI médio mais alto, o que pode limitar a comparação direta entre grupos.
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Não foram incluídas medidas de funcionamento adaptativo, que são parte essencial do diagnóstico de desenvolvimento típico.
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O estudo utilizou o QI total, mas futuras pesquisas devem considerar diferenças entre QI verbal e não verbal, especialmente relevantes no autismo.
Este é um dos primeiros estudos a analisar diretamente diferenças cerebrais entre crianças autistas com e sem deficiência intelectual. Os achados reforçam que o cérebro de crianças com autismo apresenta trajetórias de desenvolvimento únicas, especialmente quando há DI associada.
Além disso, mostram que o QI e a severidade dos sintomas do autismo compartilham bases neurais, o que pode ter implicações diagnósticas e terapêuticas relevantes. A continuidade dessa linha de pesquisa poderá contribuir de forma decisiva para a individualização de tratamentos e intervenções no autismo.
Referência:
Andrews DS, Dakopolos AJ, Lee JK, Heath B, Cordero D, Solomon M, Amaral DG, Nordahl CW. Cortical Thickness Differences in Autistic Children With and Without Intellectual Disability. Autism Res. 2025 Mar;18(3):486-497. doi: 10.1002/aur.3313. Epub 2025 Jan 30. PMID: 39887572; PMCID: PMC11928918.