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A Medicina na história: das sangrias à ciência

A Medicina na história: das sangrias à ciência
Emerson Wolaniuk
mai. 23 - 9 min de leitura
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A Medicina é uma ciência muito importante para a humanidade, e isso é indiscutível, todo mundo sabe. O que poucas pessoas sabem é como chegamos a ela da maneira com que a conhecemos hoje. Vindo da obscuridade da Idade Média até a luz da era da informação, a arte de cuidar das pessoas mudou muito.

Em 2012, o New England Journal of Medicine, em comemoração aos 200 anos de sua primeira edição, trouxe um relato histórico muito interessante a respeito da evolução da terapêutica ao longo desse tempo. Nas próximas linhas, vou contar a vocês um pouco do que aconteceu nesses dois séculos.

O primeiro de todos os artigos publicados no New England, em 1812, foi um relato de Warren - um dos fundadores da Universidade de Harvard - a respeito de sua terapia para angina pectoris. O quadro clínico descrito é familiar a qualquer um de nós, mas a sua terapêutica aplicada era estranhamente bizarra. Começava com sangrias, ia até a aplicação tópica de éter no tórax, laxativos e agentes cáusticos na região do esterno que queimavam a pele.

Embora muitas práticas médicas ao longo do século XIX soem macabras para nós, é importante entender que essas técnicas de certa forma funcionavam, pois o conceito de eficácia terapêutica também era diferente naquela época.

A teoria de que a saúde do homem era o perfeito equilíbrio dos quatro humores (sangue, fleuma, bile amarela e bile negra) era amplamente aceita por ambos: médicos e pacientes. A expectativa a respeito da terapia girava em torno de que seus efeitos deveriam ser tão fortes de acordo também com a força das reações colaterais que provocavam e isso equilibraria, então, os humores do corpo.

A medicina heróica

Essa medicina praticada por Warren é descrita hoje como medicina heroica, a que emprega intervenções dramáticas que levariam a um estado de equilibro humoral e saúde. Quando mais nociva a doença, mais pungente e heroica era a intervenção. Um tempo depois, a escola de Boston começou a mostrar-se um tanto quanto cética em relação à eficácia dessas técnicas, e uma nova corrente de pensamento foi tomando forma ao longo da primeira metade do século XIX.

Talvez o principal endosso veio do outro lado do oceano, quando Pierre Louis resolveu comparar a evolução de pacientes tratados para pneumonia quanto à realização de sangria, no Charité Hospital de Paris, e verificou que a técnica não mostrava superioridade nenhuma. Foi o chamado "método numérico" de Pierre Louis.

O ceticismo terapêutico 

Dessa maneira, iniciou-se um período chamado de ceticismo terapêutico, em que se duvidava das técnicas consolidadas durante os anos e elas foram perdendo credibilidade. Começou-se a acreditar mais no poder do corpo de se regenerar sem que fossem necessárias intervenções.

Nesse ínterim, a medicina sofria grande concorrência de outras profissões que visavam tratar da saúde das pessoas - homeopatas, hidropatas, naturopatas, excêntricos etc. Havia a necessidade de repensar as práticas médicas para que a ciência evoluísse e retomasse sua notoriedade. A máxima que retrata essa fase foi dita pelo Dr. Oliver Wendell em 1860:

"Se toda a matéria medica, como é usada hoje, fosse jogada no fundo do mar, seria o melhor para toda a humanidade. E o pior para todos os peixes."

Porém, o drama envolvendo essa fase da história da medicina era que, embora o ceticismo terapêutico fosse a emergência de uma nova ciência, não poderia-se simplesmente deixar as práticas antigas de lado de uma hora para a outra. Mesmo que não se acreditasse que a sangria fosse uma alternativa eficaz para o tratamento de uma pneumonia, por exemplo, um médico não poderia simplesmente assistir a um doente definhar à sua frente sem fazer nada.

Novos pontos de vista

Na segunda metade do século XIX - com o advento da patologia, fisiologia e bacteriologia - começou a se pensar nas doenças como entidades específicas e não mais como idiossincrasias de cada pessoa. As doenças começaram a ser vistas como vindas de uma causa e manifestada por síndromes específicas.

Um pouco antes disso, em 1846, William Morton demostrou a anestesia com éter no Hospital Geral de Massachussets, uma das primeiras grandes descobertas que mudaram a prática da medicina. Porém, não completamente para o bem. Antes da descoberta de princípios assépticos e da técnica cirúrgica conhecida hoje, os resultados das cirurgias eram péssimos e muitas pessoas morriam de sepse.

No centenário do New England Journal of Medicine, em 1912, os cirurgiões elaboraram as técnicas assépticas e a medicina cirúrgica começou a tomar a forma que conhecemos hoje. No mesmo ano, a medicina clínica avançou significativamente para a época com a descoberta da terapia com Salvasan para sífilis, vinda do laboratório de Paul Ehrlich, em Berlin. Era o início da quimioterapia antibiótica.

O Salvasan marcou o início da terapia focada nas particularidades da doença, considerando o Treponema pallidum como a causa comum para os quadros de sífilis e deixando para trás a terapia elaborada de acordo com "idiossincrasias" de cada paciente.

O Salvasan também foi conceitual porque demonstrou posteriormente a falha da medicina reducionista. A sífilis não era apenas uma coleção de sintomas, mas sim um problema social, um estigma. Um autor da época - não citado no artigo consultado - inclusive questionou a 'nova onda' de se tratar doenças e não pessoas:

"Não deveriam os estudantes de medicina também serem ensinados a promover o alívio da dor, a confortar aqueles que sofrem e dar suporte àqueles que caminham no vale das sombras?"

O progresso farmacêutico

Nessa época, progresso farmacêutico prosperava exponencialmente, entre 1940 e 1970, juntamente a outras revoluções na medicina como a psicoanálise e a cirurgia cardíaca. Mais de 4.500 drogas entraram no mercado nos EUA nos anos 50: antibióticos, antidiabéticos, anti-hipertensivos, antipsicóticos, antidepressivos, e drogas para baixar os níveis de colesterol.

A cada dólar gasto em fármacos em 1961, 70 centavos eram em drogas que não existiam a dez anos atrás. Foi quando começou-se a questionar a influência da indústria farmacêutica quanto a eficácia das drogas oferecidas. Essa é a mesma época em que a talidomida foi utilizada como sedativo e antiemético e gerou suas primeiras vítimas em todo o mundo.

Foi então que o senador Estes Kefaver, em parceria com a Foods and Drugs Administration formalmente criou as fases 1, 2 e 3 dos estudos clínicos demonstrando eficácia terapêutica.

Nessa mesma época, o Dr. Thomas McKeown publicou uma análise a respeito da descoberta da estreptomicina no combate à tuberculose e argumentou que na terpêutica moderna as drogas eram necessárias, mas não seriam suficientes ainda para mudar a saúde mundial.

Essa melhora só seria atingida com saúde pública de qualidade, mudanças na nutrição e comportamento das populações, uma lição que deve ainda ser lembrada enquanto estamos buscamos eliminar a epidemia de malária, tuberculose e HIV no século XXI.

Ainda temos muito a mudar

Hoje, a internet entra para a medicina trazendo múltiplos estudos clínicos randomizados em tempo real e a um clique; temos técnicas metodológicas bem estabelecidas e aplicáveis em busca do constante refinamento da nossa ciência. Aparelhos de diagnóstico por imagem, medicina nuclear, medicina baseada em evidências, terapias moleculares e técnicas cirúrgicas sofisticadas fazem parte da nossa realidade hoje.

Porém, para o bem e para o progresso da nossa ciência, precisamos conhecer a história de nossa evolução enquanto profissionais ao longo dos séculos e entender que ainda temos muito a mudar e atuar para melhorar a saúde das pessoas de maneira efetiva.

A sangria para angina pectoris deu lugar ao stent, mas sabemos que todo esse avanço ainda não previne que pessoas morram de doença coronariana. A medicina não pode ser vista como uma ciência reducionista e, até que isso seja realidade, há muito o que ser feito.

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