A paciente X, mulher, obesa, 72 anos, vem ao seu consultório com uma queixa de dor lombar há uma semana, mas relata que já teve episódios semelhantes. Você, muito atarefado e com vários outros pacientes na fila, não a examina e faz uma anamnese muito rapidamente. Prescreve um anti-inflamatório não hormonal e pede para ela voltar a procurar o serviço de saúde caso os sintomas persistam. X sai do consultório feliz pois acredita ter encontrado a solução para a sua dor. No entanto, ela esqueceu de mencionar que sofre há muitos anos de “queimação no estômago”, já tendo tido episódios de úlcera péptica, e, após alguns dias com medicação, começa a sentir muita dor na região gástrica e passa a vomitar sangue, ficando muito ansiosa e preocupada.
Tal episódio, embora recheado de erros grotescos, não é incomum na nossa realidade. Muitas vezes, não é uma dor nas costas, mas uma dor de cabeça, queixa digestiva, dor no peito. Além de medicamentos, é muito comum os pacientes também saírem das consultas com requisições para exames, invasivos ou não, deveras desnecessários.
Marco Bobbio, médico cardiologista italiano e secretário-geral do movimento Slow Medicine, se dedica, no livro intitulado “Medicina demais: o uso excessivo pode ser nocivo à saúde”, a convencer seu leitor de que a medicina praticada atualmente pode não somente não ajudar o paciente, mas também causar mal. Ao reler este livro e me propor a escrever sobre ele aqui na Academia Médica, me vi diante de um grande desafio, pois, embora curto, o livro carrega em suas páginas lições que jamais conseguiria passar aqui em tão curto espaço. Portanto, trouxe alguns trechos que acho que podem aguçar a sua curiosidade para que você também o leia.
“A medicina de hoje parte do pressuposto de que todas as doenças se originam de uma alteração biológica. O nosso bem-estar, entretanto, depende também de muitos outros fatores que não podem ser investigados por meio de exames de laboratório e nem tratados com medicamentos ou intervenções cirúrgicas: o trabalho, as relações interpessoais, as condições socioeconômicas, o ambiente em que vivemos, as emoções, os sentimentos, as esperanças. Frequentemente, essas são as causas primárias do mal-estar. Mesmo assim, muitas pessoas são vítimas da predominante lógica organicista e vão ao médico por qualquer desconforto, em busca de explicações e remédios. Dessa forma, colocam um cabresto no pescoço, fazendo-se prescrever exames provavelmente desnecessários e desencadeando uma cascata de análises e tratamentos que, na maior parte dos casos, não resolvem o problema e aumentam a ansiedade”.
Bobbio também toca no tema da Medicina Legal: “Para se defender de possíveis denúncias, inúmeros médicos exercem, de forma mais ou menos consciente, o que se chama de medicina defensiva: prescrever exames não para investigar um diagnóstico, mas para se prevenir de eventuais desforras judicias”.
Sobre a prescrição indiscriminada de exames, o autor cita “ [...] Um raciocínio raramente ensinado na universidade e frequentemente esquecido pelo médico prevê que, antes de solicitar um exame, ele se pergunte: ‘Quando estiver na posse do resultado dos exames, mudarei meu juízo diagnóstico e comportamento terapêutico?’ Se a resposta for negativa, o exame não deveria ser prescrito”. Ele prossegue: “O fato de ter à disposição uma lista quase ilimitada de exames de laboratório, radiológicos, cintilográficos e ecográficos difundiu o costume de prescreve-los contemporaneamente, em vez de em sequência. [...] Além disso, servir-se inadequadamente de exames faz o paciente perder a percepção do próprio corpo e dos sintomas para torná-lo dependente de números, imagens e relatórios. Vivemos em uma sociedade de consumo, cuja lógica afeta também os números de prescrições”. O autor também critica a realização indiscriminada de exames de check up e rastreamentos sem indicação.
Com relação à prescrição de medicamentos, Marco Bobbio comenta: “Em geral, considera-se que intervir seja sempre melhor, sobretudo quando a decisão se fundamenta em resultados de uma pesquisa clínica em que foi comprovada a eficácia do tratamento. Esse é o princípio que está por trás da medicina baseada em evidências. Se uma terapia demostra reduzir o número de internações, de óbitos, será prescrita a todos os pacientes que têm aquela doença. Esse é o paradigma de uma visão reducionista e científica da medicina. Não se levam em conta, porém, alguns aspectos: quase metade das pesquisas em resultados favoráveis a um tratamento é contestada ou desmentida por uma pesquisa posterior. [...] Até uma década atrás, os diretores de revistas científicas privilegiavam a publicação de pesquisas em que era comprovada a eficácia de um novo exame ou tratamento (positive result bias)”. O autor também condena o fato de que, muitas vezes, nem é oferecida ao paciente a possibilidade de “não tratar”, e discorre longamente sobre o impacto econômico das indústrias farmacêutica, de suplementos e de próteses e equipamentos médicos.
“Nossa sociedade é orientada pelo crescimento perene, para o consumo infinito de recursos, para a rápida obsolescência dos produtos adquiridos [...] na corrida pela inovação, pela comercialização, pelo lucro, a divulgação de equipamentos diagnósticos, técnicas cirúrgicas e próteses ocorre antes da realização de testes adequados, o que, consequentemente, gera a prescrição de exames e tratamentos sem que se conheçam quais as melhorias e efeitos indesejados que provocam em relação aos anteriores, quantos falsos positivos e falsos negativos são criados, quais pacientes poderão obter maior benefício [...]".
Os protocolos terapêuticos e as diretrizes são bons quando adotados como base para estabelecer se o tratamento é apropriado para um caso específico, mas podem criar efeitos negativos e inesperados quando aplicados a todos de forma padronizada e uniforme. [...] Em muitos casos, a espera vigilante não apresenta riscos e evita intervenções desnecessárias, o não tratar é tão eficaz quanto o tratamento. São essas as novas dificuldades e responsabilidades que os médicos conscienciosos e competentes precisam saber enfrentar com cada paciente”. Este parágrafo me fez refletir muito sobre o momento atual que vivemos na pandemia da COVID-19, no qual, com a ânsia de tratar precocemente seus pacientes ou até mesmo com supostas medidas profiláticas, muitos profissionais prescreveram medicações sem comprovação científica no combate ao vírus.
Termino este breve texto com um trecho escrito pelo Dr. Dario Birolini no prefácio do livro: “A relação médico-paciente, fulcro essencial da medicina “do passado”, está prestes a morrer. Nos dias de hoje, o paciente impaciente consulta o Dr. Google, faz seu diagnóstico e procura o médico apenas para que ele solicite exames (quanto mais avançados, melhor...) para confirmar as hipóteses diagnósticas e para que prescreva medicamentos (quanto mais novos, melhor...). O médico, por sua vez, muitas vezes vítima de uma formação profissional insuficiente e pressionado por condições de trabalho precárias, torna-se também vítima desses impactos. Não raramente, dedica-se a uma especialidade (quanto mais restrita, melhor...), “trata” de sintomas, de achados de exames, quando não de “concomitâncias” que nada têm a ver com os problemas que afetam o paciente”.
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Referências
Bobbio, Marco. Medicina demais: o uso excessivo pode ser nocivo à saúde. Ed. Manole, Barueri, SP. 208 p. 2020.