Atendendo no Pronto-Atendimento da cidade, exausta e com fome, entra o vigésimo paciente:
-Bom dia, seu D.! Sou Alice, a nova estagiária da UFMG. No que eu posso te ajudar?
Ele me olha, catatônico... Não responde. O irmão continua a conversa:
-Ó doutora, ele é assim, de falar pouco mesmo. Ele sumiu há 33 anos, sem dar notícia, somos só nós dois. Localizaram ele numa fazenda em uma cidade próxima e trouxeram de volta. Parece que ele ficou viajando esses anos todos, morando de favor e trabalhando, mas ninguém sabe direito o que aconteceu nessa época. O psiquiatra disse que ele tem uns problemas na cabeça, que já devia ter desde novo.
-Quais problemas? Quais remédios ele toma?
-Sei não, só sei que é da cabeça. Ele vê coisa, ouve voz, fala que quer ir embora. Ontem ele fugiu de novo, aí busquei ele e trouxe pra cá.
-E hoje procurou a UPA por quê? Tá sentindo alguma coisa?
-Fala com ela, home. Que que cê tem. Ele tá variando das ideias de novo. Aí botou essa faixa na cabeça.
-Essa faixa é por quê? Tá doendo?
O paciente não responde mas aponta um dedo em direção ao hemitórax esquerdo.
-É o peito que tá doendo? Tem algum problema do coração?
Ele faz que não com a cabeça. Pergunto sobre as características de angina. O paciente nega todas.
-E essa dor é como? Apertando?
Ele faz que sim com a cabeça.
-É angústia? Tá difícil aí?
Pela primeira vez ele me olha nos olhos. Faz que sim com a cabeça, como se eu estivesse "chegando perto".
-O senhor tá com vontade de chorar?
Ele faz que sim e desata em um choro sofrido, ininterrupto.
O irmão olha preocupado:
-Eu tenho pra mim que até entendo ele. Tão tratando só da cabeça, mas tem que tratar do coração... Como que chama aquele trem? É depressão? A gente é sofrido demais. Nossa mãe morreu no parto... Aí ele acha que a culpa é dele. Meu pai achava a mesma coisa e batia demais nele. Passou a vida apanhando. Eu sou revoltado também com tudo que a gente já passou na roça, mas até aguento morar aqui. Mas ele, parece que não dá conta...
-Se eu entendi, o seu irmão está com uma dor tão grande que nem consegue colocar em palavras... É isso, Seu D.?
Ele para o choro e faz que sim com a cabeça.
-Vou encaminhar pro psiquiatra, pra ele mexer de novo nos medicamentos. E o que vocês acham de fazer terapia? Conhecem?
- Sim... Até já marquei pra ele aqui, mas não sei se ele vai não...
-Seu D., eu sei que tá muito difícil. Que tá doendo demais, levar esse peso aí de um lado para o outro... Mas ir embora não faz ele passar, faz?
Ele acena que não com a cabeça...
-Então o senhor deixa a gente te ajudar? É difícil, mas tem jeito do senhor sair disso aí. E não vai ser sozinho não! Tem eu, seu irmão, a ajuda da terapia, a ajuda do médico... Tem muita gente que te ama e que quer te ver bem. Deixa a gente te ajudar?
Ele faz que sim com a cabeça.
Falo pro irmão que ali na UPA é difícil continuar a conversa. Mas que na próxima semana estarei no posto de saúde próximo a casa deles. Lá teremos mais tempo para conversar.
Estendo a mão para despedir. Ele segura com os dedos trêmulos.
- Não desiste não. O senhor é muito forte. Já caminhou tanto... Merece sossegar em um cantinho seu, com paz no coração. O senhor vai me ver na semana que vem? Posso confiar?
-Ele me lança um sorriso de meia boca tímido. Acena que sim. Mas pelo olhar dizia muito mais: que se sentia compreendido.
Essa consulta me tocou tanto e tão fundo. Quantas dores passam por nós sem a gente perceber? Quantas dores recebem outros nomes e ficam sem o diagnóstico principal?
Dor de alma...
Tem nome, tem endereço, tem cura. Mas só se a gente parar pra ouvir. Só se a gente estender as mãos e não soltar. Só se a gente permitir que nosso coração também doa um pouquinho e sinta o sofrimento do outro.
Sigo grata a Deus por todos os encontros!
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Medicina em Zona Rural - O que a dor esconde
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