São nas conversas prosaicas com os amigos que encontramos no outro, tanto a afirmação, quanto a negação do que pensamos. Conhecer-se a partir do outro, é um processo terapêutico de reflexão contínuo, em que não há analista e analisado. São 4 orelhas bem atentas e duas bocas falantes. Por algum processo particular, tenho o costume de converter a admiração em sala de aula, em amizade.
Hiran, foi meu professor e atualmente é um amigo confabulador nos cafés da minha cidade. Sociólogo, leitor inveterado, sobretudo um polímata. Além da incrível capacidade de confeccionar conceitos virginais, um amigo por excelência. Dez anos de idade nos separam e uma xícara de café, pontualmente, nos aproxima. Um profissional de excelência na sua área e um flertante voraz com a literatura.
Áureo (@literaturaviral), também foi meu professor, nossa linguagem retoma às cartas escritas, só que desta vez em formato áudio-digital. Em 2021, enviamos lotes de áudios reciprocamente e quando possível estabelecemos a correspondência. Não tecerei aqui elogios a sua formação acadêmica para não aparentar ser uma adulação da minha parte, todavia, também carrego uma grande admiração por ele. Esse catarinense, trata-se pessoalmente, de uma personalização da interdisciplinaridade, para além da sua formação em literatura, ele pode transitar entre as ciências da saúde e humanas tal qual um anfíbio entre mar e terra. Dentre suas melhores assertivas estão a crítica do que é ser um intelectual:
“Não é a titulação ou a superespecialização que forma um intelectual, mas a capacidade do indivíduo de formar conhecimento com o que o mundo nos apresenta. Se não aceitarmos que precisamos ser flexíveis diante dele, qualquer estrutura será abalada, seja porque é frágil demais, seja porque é robusta demais. As sequoias talvez sofram com aquecimento global, entretanto, talvez os bambus não sintam tanto, pois para além da robustez, esses carregam a flexibilidade.”
Digo isso, por uma interface que existem entre esses dois amigos, mesmo que eles não se conheçam. Continuamente o debate sobre como os médicos são "tudólogos" confluem nossas prosas. A tudologia é uma pós-graduação feita por muitos, mas nesse texto direcionado aos médicos, que palestram, pela manhã, sobre a beleza da obra de Dostoiévski e percepções sobre teoria literária, na mesma certeza que ensinam como auscultar bulhas cardíacas. A tarde, debatem modelos econômicos e a derrocada do neoliberalismo. Ao fim do dia, contra-argumentam e destituem toda teoria marxista do século XIX.
É proseando com esses amigos que percebo como o desrespeito da medicina com outras áreas do conhecimento é antigo. Faz algumas décadas que medicina “descobriu” a literatura e a arte como formas de terapêutica institucionalizada para os pacientes. Ora, qualquer estudante de letras já não percebia o benefício que a literatura poderia trazer para a saúde mental? Uma pena, só depois do carimbo de validação da medicina é que essa área do conhecimento ganhou cidadania. Digo isso, para não entrar no mérito das milenares práticas de meditação.
Outrora ouvi de um docente que medicina não é lugar para fazer panfletagem política. Era claro para mim a confusão conceitual dele entre política partidária e um debate político da realidade salutar no Brasil. A certeza que ele carregava na sua fala era risível, no entanto, são de bons e maus exemplos que construímos nossas posturas pessoais e profissionais. Dessa modo, não que eu tenha sido ótimo aluno em sociologia, mas lembro-me de como o homem foi percebido como um animal político, dessa forma, toda ação é essencialmente política, a medicina não escapa disso.
Desde já como apreciador da interdisciplinaridade, argumento que nunca houve problema algum em ler, estudar e se afeiçoar por outras áreas. O diálogo criado é sobre a transparência em exibir-se especialista em todas as áreas, inclusive nas que não é graduado. Porque da mesma forma que vejo painéis em congressos de médicos abordando literatura, a partir de palestrantes médicos, aguardo o dia que os literatos irão ministrar cursos de semiologia. Aliás, basta saber ler o livro, não é mesmo? É só literatura.