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Nanotecnologia: as armas mágicas contra o câncer

Nanotecnologia: as armas mágicas contra o câncer
Eduardo Costa
jan. 20 - 14 min de leitura
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Arthur C. Clark, o mestre da ficção científica, declarou certa vez que "Any sufficiently advanced technology is indistinguishable from magic."  Ou seja, para um leigo, é impossível separar mágica de tecnologia avançada.  Quando entrei em contato, pela primeira vez, com nanotecnologia, várias palavras passaram-me pela cabeça: magia, ficção científica, fantasia! Quando vi uma estudante da lendária Bauman University usando nanotecnologia para construir um anticorpo contra o câncer, pensei em mágica, mas não a mágica de Harry Potter. O que me ocorreu era que a jovem russa era um desses mágicos de palco, alguém como Houdini. Ela estava apenas me enganando, algum trote aplicado pelos estudantes aos visitantes estrangeiros. Porém, um professor assistente, que estava servindo de guia, confirmou que aquilo era real.

Levei muito tempo para aceitar que, ao redor do mundo, homens e mulheres estão construindo minúsculas máquinas para combater o câncer, espionar os micróbios ou pilotar helicópteros do tamanho de insetos. Talvez você não tenha entendido bem quando eu disse minúsculas! Para dimensionar alguns desses dispositivos de que falei é conveniente usar uma unidade chamada nanômetro. Vamos tentar adquirir uma noção do que é um nanômetro.

  • Na figura que ilustra a abertura desse texto, você pode ver um nanorobot construído pela pesquisadora Anielle Christine para reconhecer células de câncer. Como você pode ver, o nanobot tem uma lanterna de seleneto de cadmium, que pode ser acessa com um laser. Da lanterna, estende-se um braço, que termina em um punho constituído por um único átomo de níquel. Uma garra de cancer-specific Fab antibody acopla a lanterna a células de câncer, marcando-as com luz para que o cirurgião as remova com precisão e mínimo dano ao paciente. Vamos imaginar que o nanobot fosse do tamanho de uma bola de gude. Então, uma bola de futebol seria do tamanho da Lua.

  • Se você assiste à série iZombie, deve lembrar-se da cena, onde Ravi Chakrabarti afirma que o zombie vírus é 100 vezes menor do que um vírus típico. Ora, o vírus HIV tem 120 nanômetros. Isso significa que o nanobot de Christine, com 1.2 nanômetros, é aproximadamente do mesmo tamanho que o iZombie vírus.

A lanterna que Christine e outros pesquisadores no mundo usam para iluminar o câncer é chamado de quantum dots. As quantum dots são construídas com menos de 50 átomos. As modernas televisões usam quantum dots para obter cores muito sintonizadas e vivas. Você pode ver o exemplo da Samsung, clicando aqui.

Mas para que as quantum dots iluminem a células de câncer durante uma cirurgia, é necessário que elas se liguem seletivamente ao tecido maligno. Como conseguir isso? Uma primeira ideia é encontrar um anticorpo específico para o câncer em questão e conjugar esse anticorpo com uma quantum dot. Mas como obter esse anticorpo? Uma equipe liderada por professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Luiz Goulart descobriu um anticorpo específico de um certo tipo de câncer no seio, que foi usado por Christine e outros membros da equipe para testar a ideia. O leitor ou leitora que quiser saber mais sobre o assunto pode ler um dos muitos artigos de Anielle Christine sobre quantum dots em imagens de câncer, um dos primeiros é "Biological analysis and imaging applications of CdSe/CdSxSe1-x/CdS core-shell magic-sized quantum",  ( Nanomedicine. 2016 Jul;12(5):1421-30. doi: 10.1016/j.nano.2016.01.001. Epub 2016 Mar 3).

 

The Immortal Life of Henrietta Lacks

Recentemente, nosso grupo, que se chama Victor Della-Vos Research Network, publicou um artigo na Health Informatics and Medical Systems no qual utilizamos quantum dots para fazer imagens de câncer. Para testar o sistema, usamos amostras de HeLa cells.

Para quem não sabe, Herinetta Lacks morreu de câncer cervical em 4 de outubro de 1951. Entretanto, no dia 8 de fevereiro do mesmo ano, recolheram amostras das células com câncer. Dizem que a cirurgia foi realizada sem o conhecimento ou consentimento de Henrietta Lacks.  De qualquer forma, George Otto Gey descobriu que essas células podiam ser mantidas vivas indefinidamente. Então, ele isolou uma célula específica e desenvolveu uma linha que é mantida até hoje. Cientistas do mundo inteiro podem conseguir amostras dessa linha. George Otto Gey morreu de câncer de pâncreas em 1970.

Em 2017, a HBO lançou um filme chamado "The Immortal Life of Henrietta Lacks", estrelado por  Oprah Winfrey, Sylvia Grace Crim, Rocky Carroll e Renee Elise Goldsberry, que faz o papel de Henrietta Lacks. O filme é baseado no livro de mesmo nome, escrito por Rebecca Skloot.  No Brasil, o livro recebeu o título de "A Vida Imortal de Herietta Lacks", Companhia das Letras, 2011. O termo "imortal life" vem do fato das células de câncer replicarem indefinidamente, sem perca da capacidade de reprodução.

De qualquer forma, o leitor pode ver a imagem de luminescência dos quantum dots na figura abaixo: 

A moderna tecnologia ajuda a medicina em duas frentes. A primeira é na cirurgia, em que robôs e radiologia intervencionista tornam várias cirurgias menos traumáticas. A segunda frente é a nanotecnologia e física dos materiais, que permitem interagir com o sistema imunológico para aumentar a eficiência do combate ao câncer e a outras doenças.

A nanotecnologia ajuda a cirurgia robótica ao criar cancer specific staining, que permite ao cirurgião identificar o tecido maligno, poupando a anatomia saudável. Isso é especialmente importante em cirurgias do cérebro, nas quais a eliminação de tecido saudável pode causal sequelas graves. Existe uma proteína chamada TM-601 que liga-se a gliomas, mas não a parenchymas normais do cérebro. A propósito, para evitar confusão, costumo usar a ortografia do latim científico e do grego; assim, escrevo "parenchyma", em vez de parênquima. Continuando, a TM-601 é vendida lyophilisada em um vial que pode ser reconstituído em 0.1 mL de água.  O preço é 269 dólares.

Custo e recursos

Quando mostro nossos laboratórios, ou visito com outros brasileiros laboratórios em outros países, perguntas sobre financiamento surgem sempre:

  • Quanto custa esse equipamento? 
  • O governo dá dinheiro para comprar isso?

A médica Adilya Ravgatovna Kotovskaya, que vocês devem conhecer apenas como Ada Kotovskaya, deve ser uma das pessoas que mais desenvolveu a tecnologia médica na história. Praticamente todos os equipamentos, que encontramos em uma UTI ou em uma estação de telemedicina, foram criados por Ada Kotovskaya e colaboradores. Entretanto, ela não tinha nem alojamento quando foi contratada no OKB-1. Estou dizendo que Ada não podia comprar equipamentos da Siemens, da Toshiba ou da GE. Ela tinha de construir tudo. Até as folhas de alumínio necessárias para as cápsulas de sustentação da vida tinham de ser fabricadas a partir de bauxita. E havia a premência de tempo. Como a União Soviética queria demonstrar ao mundo a superioridade de seu sistema político, Ada Kotovskaya recebia ordens para demonstrações tecnológicas com menos de 1 mês de prazo. 

Um dos casos mais icônicos foi da cachorrinha Kudryavka. O primeiro ministro  Khrushchev pediu uma demonstração de superioridade científica com um prazo de um mês,  a tempo de comemorar o aniversário da revolução russa. Nesse tempo, Ada construiu um sistema de suporte à vida completo, com gerador de oxigênio, um dispositivo para absorver dióxido de carbono, além de monitores de coração, respiração e pressão arterial. Mostramos abaixo uma foto de Adilya Kotovskaya preparando Yuri Gagarin para a primeira viagem ao espaço.

Essa história é para mostrar que povos detentores de alta tecnologia começaram sem tecnologia nenhuma. Muitas vezes, os médicos, engenheiros e cientistas trabalhavam com pouquíssimos recursos. Gehrard Domagk, Daniel Bovet, Robert Koch montaram seus primeiros laboratórios a partir de utensílios domésticos. Aliás, a primeira mulher de Koch sugeriu usar agar-agar para cultura de bactéria. E os primeiros ratos de laboratório foram os pets de Gertrude Koch, filha de Robert Koch, que maldade.

A situação do Brasil, na minha avaliação, é a seguinte: quando surgem tecnologias médicas novas, como The Da Vinci Surgical Robot, de Catherine Mohr, o Robodoc, de William Bargar ou Photoselective Vaporization of the Prostate ,de Said Malek, alguns poucos médicos fazem o treinamento e começam a realizar o procedimento. Entretanto, raramente os médicos brasileiros tomam a iniciativa de pesquisar automação, nanotecnologia e desenvolvimento de drogas. Já que falamos em Catherine Mohr, assistam essa palestra que ela deu na série TED Talks:

 

Peço ao leitor que preste atenção no vídeo a partir dos 14 minutos. Catherine Mohr diz que o cirurgião deve usar as mãos de novas maneiras, mas também usar os olhos de novas maneiras. Mostra, então, um cancer specific staining que guia o médico na remoção do tecido doente.

Voltando ao desenvolvimento de novas tecnologias no Brasil, eu tenho a impressão de que os brasileiros raramente tomam iniciativas tecnológicas. Entretanto, essa ousadia tecnológica é necessária para nosso desenvolvimento e para possibilitar o tratamento médico em situações dramáticas, ou situações de border line, como dizem os americanos.

Na copa do mundo de 2018, os croatas chamaram atenção por chegar às finais e por sua bela presidente, que fala português fluentemente. Os médicos sabem também que pesquisadoras croatas desenvolveram um dos antibióticos mais eficazes.  Gabrijela Kobrehel, Gorjana Radobolja-Lazarevski, e Zrinka Tamburašev descobriram a azithromycin, em 1980.

Aqui vem o problema de financiamento. Se quisermos comprar equipamentos caros, como o The Da Vinci Surgical Robot, possivelmente não conseguiremos dinheiro. É difícil até mesmo conseguir dinheiro para comprar um equipamento como o NanoLive 3D Cell Explorer. Mas para fazer pesquisas básicas de diagnósticos, desenvolver drogas sintéticas contra o câncer, novos antibióticos e antivirais, o governo brasileiro, em geral, fornece os recursos mínimos necessários. Instituições estrangeiras de fomento também raramente negam recursos para pesquisadores minimamente competentes em nanotecnologia, microfluídica e robótica. Os grupos com que tenho contato não me parecem ter dificuldades em obter recursos. Vou analisar alguns casos.

Na Universidade Federal de Uberlândia, temos o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia TeraNano, liderado pelo professor Luiz Goulart. O instituto parece-me receber recursos suficientes para dezenas de trabalhos em nanobiotecnologia. Vários pesquisadores ligados direta ou indiretamente a esse instituto recebem dinheiro também de instituições estrangeiras, como dos Estados Unidos, Canadá, Coreia, França e China. Assim, os médicos brasileiros não precisam limitar-se a usar tecnologia aprovada nos Estados Unidos. É possível criar, no Brasil, nanotecnologias para cirurgias robóticas, exames patológicos, diagnósticos e até theranostics, que é a combinação, no mesmo nanorobot, da terapia e dos nanosensores que farão o diagnósticos. Clique aqui para acessar o site do INCT-TeraNano.

Em um próximo artigo escreverei mais sobre diagnóstico e desenvolvimento de tecnologia médica no Brasil. Entretanto, não poderia deixar de citar dois trabalhos complementares de nanotecnologia em diagnóstico. José Roberto Siqueira Junior, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) desenvolveu um sensor de efeito de campo capaz de detectar e dosar substâncias químicas, como glicose, ureia e proteínas associadas a vírus e bactérias. Para analisar o dispositivo proposto por José Siqueira precisamos de entender o que é um transistor. Os computadores, os smartphones e todos os dispositivos que existem em um hospital são construídos com transistores minúsculos. Um de meus estudantes, Guilherme Fernandes, a meu pedido, tirou fotos de um grupo de hemácias ao lado de um transistor, para que vocês tenham ideia da ordem de grandeza.

O circuito integrado que está ao lado das hemácias nem é dos mais minúsculos. Há dispositivos eletrônicos 1 milhão de vezes menores do que o mostrado na figura. As quantum dots que Anielle e Guilherme construíram são de fato menores do que um vírus zumbi, se vírus zumbi existisse. Agora que você já sabe o que é, vamos ver para que serve um transistor.

Um transistor pode ser uma chave ou um amplificador. Ele tem três terminais, o gate, a source e o drain. Um pequeno sinal elétrico no gate é amplificado, produzindo um grande sinal entre a source e o drain. Nos computadores, o transistor é usado como chave: conforme a tensão no gate, o transistor pode deixar passar corrente ou interromper a corrente elétrica, exatamente como o interruptor de luz de sua casa. Então, uma ideia muito simples para construir um equipamento que consegue reconhecer bactérias, vírus e proteína seria substituir o gate por anticorpos. Até aqui, tudo bem, a ideia parece de fácil realização. Aliás, já está sendo utilizada pelo mundo afora. Faça uma procura sobre BioFET na Internet e encontrará dezenas de artigos. Acontece que para você construir um BioFET você precisa de uma clean room, palavra que em inglês significa sala limpa.

Para construir um BioFET, você precisa de uma clean room 10 mil vezes mais limpa do que uma sala cirúrgica. No Brasil, existem algumas clean rooms, mas não sei se são tão limpas assim. Em todo caso, José Roberto Siqueira construiu o biosensor na Alemanha, em uma clean room da Fachhochschule Aachen. Na Alemanha, porém, Siqueira construiu apenas a parte dispositivo que exigia clean room. O resto ele fez no Brasil.

Em um artigo posterior, fornecerei mais detalhes sobre a construção desses nanorobots de theranostics. Por enquanto, vou adiantar apenas uma coisa a mais. Um biofet como aquele construído por José Siqueira permite detetar uma proteína que identifica um microorganismo pathógeno, bactéria ou vírus. Um cancer specific staining, como as quantum dots de Anielle ou os mostrados por Catherine Mohr, liga-se a proteínas das células de câncer. A pergunta é: como descobrir essas proteínas identificadoras de doenças, de modo que possamos produzir cancer specific staining ou biofets?

Descobrir tell tale proteins para fazer diagnóstico ou fabricar vacinas é um problema difícil. Anderson Santos tem uma ideia de como fazer isso. Na internet, há vários sites que fornecem genomas de bactérias e vírus. Existem até sites com genomas de câncer. O meu favorito é esse aqui: http://biobike.csbc.vcu.edu/

Em um próximo artigo, discutirei como podemos examinar o genoma de uma bactéria para encontrar uma proteína que a identifique.


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