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O médico que nem medicina sabia

O médico que nem medicina sabia
Medicina em Crônicas - Elomar R. Moura
mai. 29 - 4 min de leitura
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Era o entardecer de um novo outono, faziam exatos vinte graus celsius, um sofá de couro sintético azul-marinho em formato L e uma mesa retangular, eram o cenário do reencontro entre Nelson e Antônio, velhos colegas da faculdade de medicina.

Ambos terminaram a graduação ao mesmo tempo. Antônio não obtivera um boletim brilhante, admitamos que era um bom estudante, todavia, de notas medianas, não que houvesse passado por apertos para prosseguir o curso, mas nunca fora um destaque. Contrariamente ao Nelson, astuto, ordeiro, afirmava com orgulho que houvera lido pelo menos uma vez todos os tratados que encontrou no curso de medicina, desde a anatomia, até medicina intensiva. Notas impecáveis, portador de um boletim que brilhava por si só, até mesmo no escuro.

Antônio sugeriu um vinho para conduzir a noite de prosa, o amigo disse que preferia um chope, pois, vinho o causava mal-estar e uma forte ressaca no dia seguinte e afirmou: vinho apenas para amansar o espírito em dias difíceis!

Fazia mais de uma década que não se encontravam. Enquanto dizia que havia uma lista de espera para novos pacientes em seu consultório, Nelson perguntou como andava o consultório do colega, fluxo de pacientes, onde mora atualmente. Em verdade, mais parecia uma consulta da receita federal a vida financeira do outro.

Antônio disse que tinha pacientes em suficiente para custear sua vida, morava em um três quartos em que cresceu desde a infância, acostumou-se com a mansidão. Nelson entediado pela vida pacata do amigo, começou a contar de casos que viveu nas emergências de hospitais ao longo de 30 anos de profissão.

No último plantão recebeu uma criança de 7 anos, com febre alta, pequenas vesículas em mãos, pés e boca que se rompiam ao passar dos dias. Um paciente intrigante, nenhum dos colegas plantonistas sabia caracterizar aquele quadro. Assim, triunfante, o gabola do Nelson internou a criança, pois, suspeitou de uma sepse de rápida progressão e logo preparou os pais para o pior, disse gabando-se do seu olhar acurado.

Durante horas a fio Antônio ouviu a histórias do colega de faculdade com um silêncio digno de um psicanalista. Quando já estavam levemente embriagados questionou o bonachão do Nelson.
— Meu caro amigo, para além do trabalho, qual o último livro que você leu?
— Então Antônio, atualmente prefiro me atualizar pelos artigos de revistas, periódicos internacionais...
— Não, não. Qual o último livro que você leu? Uma boa narrativa, romance, etc.
— Ando procurando algo mais prático, me entende? Procurando investir meu tempo com leituras mais relevantes, já estou velho, cheguei em um momento da vida em que essas historinhas melodramáticas são indiferentes.
— Como andam sua esposa e filhos, Nelson?
— O casamento não é mais o mesmo, fazemos 23 anos juntos esse mês, ela não mais capaz de me dar todo suporte que preciso, creio que você me entende. Meus filhos não me compreendem, jovens demais para entender o que falo, apenas nos suportamos diariamente.

Antônio entrelaçou os dedos das mãos e apoiando os cotovelos na mesa desferiu:
— Pelo visto você anda procurando investir seu tempo em coisas mais relevantes.
Nelson baixou a cabeça e coçou a sobrancelha com o polegar da mão esquerda.
Um silêncio vergonhoso instalou-se.

Vagarosamente, Antônio decidiu ir embora e deixar aquela conversa enfadonha. Levantou-se, e em silêncio e foi em direção a saída do restaurante, sem nem sequer pagar o seu chope.
Caminhou initerruptamente e no derradeiro momento, virou-se ao colega e disse:
— Ah! Aquela criança só tinha uma infecção por Coksackie vírus, autolimitada. Estamos no outono, quem sabe seja uma boa hora para investir seu valioso tempo no estudo de vírus sazonais. Já que nem os livros ou sua família são merecedores dessa honraria.

Antônio encarou por uma última vez o colega de profissão e com fastio deixou o local.

Agora, sozinho, Nelson percebera que até mesmo seu conhecimento de medicina era falho e que ficara circunscrito àquele único assunto ao longo de toda uma vida.

Desolado, olhou para o balcão do restaurante, levantou o dedo e murmurou:
— Garçom, uma garrafa de vinho do porto, por favor.


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