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O Polvo Mimético

O Polvo Mimético
Cultural AEMED
nov. 24 - 19 min de leitura
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Thaumoctopus mimicus é uma espécie de polvo que habita os oceanos do Indo-pacífico. Camaleões, insetos, pássaros e mesmo mamíferos são conhecidos por usarem  estratégias de camuflagem, seja para se assemelharem com outros animais ou mesmo com ambiente em que vivem. Através de diferentes estratégias, seres com capacidades miméticas tornam-se incrivelmente mais aptos em suas tarefas de caçar, dormir, acasalar ou mesmo fugir. Desde a época do início da exploração marinha, é conhecido pela ciência que os polvos, mais que qualquer outro ser vivo, são os exímios ilusionistas da natureza. Porém, apenas em 1998 que o polvo mimético foi descrito por cientistas, após relatos fantasiosos de pescadores locais.

É comum a alguns moluscos a capacidade de confundir-se com o ambiente, produzindo – através de uma pele surpreendentemente adaptável – quase todas as cores possíveis do oceano, o que inclui pequenas alterações dérmicas que os permitem elevar minúsculos segmentos da pele e imitar a textura de pedras, algas ou areia. T. mimicus, como seus parentes, também é capaz de mudanças de cor e textura. Isso somente já o colocaria em um nível elevado de domínio do ilusionismo animal. Todavia, essa não é a sua habilidade mais surpreendente. Diferente que quaisquer outras espécies catalogadas, o T. mimicus é capaz de mudar seu comportamento, num complexo mimetismo social marinho.

Na natureza, os padrões de interações e de hábitos são restritamente defindos, permitindo poucas variações de atitudes. Raramente você viu um elefante fazer qualquer coisa muito diferente do que outro elefante. Um água-viva nada como uma água viva, nunca como um tubarão-martelo. Lobos caçam em bandos. Aves migram juntas. Em parte por possuírem atributos físicos limitados mas majoritariamente por um imperativo insitintivo comportamental que produz o “caráter animal”, o que é bastante restrito. T. mimicus não só é capaz de se locomover como uma água-viva, pondo sua cabeça centralizada e os tentáculos para trás, copiando-a, mas também imita um peixe-leão, uma serpente do mar, uma alga-marinha e outros 15 tipos diferentes de seres vivos. Com sua forma corporal extremamente volúvel, ele retrai, estica, infla seus 8 apêndices, expande a cabeça e subtrai ou acrescenta tentáculos para trás do corpo de modo a que os “ampute” e se reinvente em seu corpo gelatinoso.

No momento que assume a forma física do imitado, inicia a mudança de comportamento. Como se tivesse sido criado por pais de outra espécie, adquire todas as características de “personalidade” do animal. Flutando, parado, como uma água-viva. Rebolando o corpo enquanto nada para frente, como quando os tubarões nadam para caçar. Camuflando-se em meio a cardumes de peixes, sem ser percebido. Dificilmente, se você tiver a oportunidade de ver um, irá reconhece-lo, pois é provável que olhos pouco treinados o confundam com qualquer um dos 15 diferentes animais marinhos que encena.  Um verdadeiro ator dos mares, com capacidades abstrativas comparáveis somente ao grau de sofisticação atingidos pela raça humana. Em verdade, será ainda mais enriquecedor se você o ver em ação do que tentar descrever suas incriveis habilidades aqui. Particularmente, um detalhe ainda a ser confirmado, é uma pequena diferença entre o sexo do animal. Machos e fêmeas possuem os atributos descritos acima, no entanto, as fêmeas dominam o padrão mudança de comportamento com melhor destreza enquanto os machos a mudança de cor. Nessa história, você verá com sua própria imaginação como vive o incrível polvo-mimético. Desvencilhe-se de alguns conhecimentos pré-formados e atente-se à descrição metodológica do exemplar mais facinante já encontrado do T. mimicus. Com cerca de 1,70 m, carinhosamente apelidada de Fê.

Fê.

Simpática, empática porém introvertida. 22 anos. Futura médica. Maria Fernanda participava de três ligas diferentes, sendo uma como vice-presidente. Monitora de anatomia e imunologia. Estágio letivo das 18:00 as 23:00. Lendo 2 livros que serão usados no próximo semestre. No tempo livre conseguiu engajar-se em um projeto de pesquisa sobre a saúde mental dos estudantes promovido pelo professor de 2º ano. Demorou um pouco pra entrar na Medicina. Não fora culpa dela. Realmente partiu alguns metros atrás da linha de largada. Com dedicação extrema e competência conquistada, levou menos tempo do que levaria qualquer outro em sua condição. Anotava, xerocava, grifava, sublinhava e devorava qualquer lista de exercício que o cursinho mandava. 6º lugar entre os aprovados. “Nada de genialidade, sabe? Eu só fiz o que tinha que fazer e me orgulho de ter conseguido”. Sua dedicação gerou frutos também nas primeiras fases. Sem recuperações. Apenas elogios. Tudo isso é claro, foi antes. O agora? Agora Maria Fernanda matou a aula de gastrologia e está sentada tomando sorvete de chocolate, sentada despreocupadamente sobre a 19 ª edição do Harrison. Novinho! Existem dois cães rolando na grama em frente ao banco onde está sentada, distantes, de raças diferentes. Um morde o outro – fraquinho – rolam, rosnam e brincam despreocupados. Isso é o suficiente aos seus olhos e a única tarefa cabível de ser executata por sua mente estafa. Ela vai voltar pra aula hoje? “Não sei”. E amanhã, vai na reunião da liga? “Não faço ideia”. Apenas uma coisa importa: “Será que o cachorrinho branco vai conseguir pegar o marrom?”

De como o T. mimicus adiquire suas habilidades adaptativas.

Protuberância occiptal externa, clivo, maléolo, platisma. Trapézio, trapezóide, capitato e hamato. Forame estilomastoídeo. O nervo trigêmio divide-se em 3 ramos: oftálmico, maxilar e mandibular...

“Meu Deus... Ele não pode estar falando sério que tem que saber isso pra semana que vem. Todas essas palavras novas.” Ele estava, como qualquer outro professor, sempre querem que seus alunos memorizem o máximo no mínimo de tempo. Sem más intenções. Maria Fernanda, sentada na cadeira sem encosto do anatômico duvidava de si. Seus colegas, que ainda nem sabia os nomes, estavam também apavorados, exaustos e olhando para o chão. No término da aula, com as defesas desarmadas, pediu conselho ao professor. Era tudo tão novo. E é tanto!

– Mando uma lista de exercícios toda a semana. Tem monitor de segunda a quinta e, para e-mail da turma, passo alguns videos extra sobre o tema. Capítulo 1 e 2 estão disponíveis no xerox até o final da tarde. Geralmente são 3. Esse início é que é mais leve. Precisa de mais alguma coisa, querida? Claro que não. Boa sorte nessas primeiras semanas!

Era muito, sim. Mas ao menos tinha um norte agora. “Não existe vento favorável para barco sem direção”. Ela estava ali. Onde queria e lutou para. Em resposta as suas dúvidas e ansiedades, olhou para dentro de si procurando respotas. Quem era ela ali? Por que era? Seria capaz? Seria suficiente? Como faria? Infelizmente, por não encontrar eco para suas perguntas ou mesmo por ter pressa demais para esperar que as respostas retornassem do abismo de si, voltou-se para fora em busca dessas respostas. Nesse momento nasce T. mimicus, o polvo mimético. Observe:

“Como será que os outros vão estudar? Pego pelo livro? Pego pelos slides? Internet? Ai meu Deus! Eu já tenho tarefa pra semana toda”. As vezes o cansaço batia, claro, e o desinteresse parecia a dominar. “Desistindo na primeira fase talvez não seja tão ruim.” Contudo, Fê não desistia fácil, logo sacudia a cabeça e dizia para si mesmo:

– Para com isso Maria Fernanda! Recomponha-se e bora fazer o que tem pra fazer.

 De fato ela fez. Fez também com bioquímica, genética, citologia e suporte básico à vida. I.A.: 9,25. Toda tarefa era devorada.”Cara, como é bom ter conseguido ter feito tudo e passar por esse semestre”. Claro, isso consumia tempo. Todo o tempo que tinha. Fins de semana, feriados, intervalos de aula, professor que faltava. Qualquer oportunidade foi aproveitada. E uma sensação de distanciamento parecia crescer, sem sua autorização. Um afastamento daquilo que poderia chamar de Eu mesma. Como seus olhos, antes as lentes da sua vida e que recordavam seus dias, agora tivessem deixado de gravar suas ações. Era uma câmera fixada fora de si que ficava responsável por registrar sua rotina. Não mais seus olhos. Estava se tornando uma espectadora de si. Mas, “por Deus! Eu fiz tudo o que tinha que fazer!”

Do porquê T. mimicus fora descrito somente há poucos anos e como essa magnífica espécie será extinta, em breve, caso nada mude.

Primeira parte

Dois tipos de perspectivas cresceram junto com Fê. A de seus olhos e a dos olhos de outras pessoas. 1ª e 3ª pessoa. Maria Fernanda havia se tornado uma aluna exemplar. Suas notas eram garantidoras de seu futuro. Seu currículo invejável. Ás vistas dos outros, Fê havia se tornado um exemplo. A melhor de seus pares. Aos dela mesmo, havia fracassado.

Sentada no banco em que tomava sorvete, invejava os dois cachorrinhos que brincavam. Eram filhotes. Os dois sabiam o que devia ser feito na brincadeira, naturalmente. Quando morder, quando correr, quando perseguir e quando descansar. Instintivamente! Ninguém havia ensinado aquilo a eles. E mesmo assim era deles! Não houve necessidade de mostrar como brincar. Isso cresceu sozinho nos dois e hoje brincavam sem pensar, curtindo cada momento. “Eu sou só uma farsa! Uma maldita certinha que fez tudo o que os outros queriam, toda a porcaria da vida até o 3º ano da medicina”. Nesse momento, um dos filhotes, o branquinho, apareceu em sua frente a apoiou suas patas nas pernas de Fê, sujando sua calça jeans branca de terra. Ela não se importou. Acariciou a cabeça do cãozinho que em resposta fechou os olhos, abanando o rabo freneticamente. Até aquele momento, a dúvida seria se aguentaria fazer tudo o que a faculdade exigia. Agora que tinha seu sim, outra pergunta martelava sua cabeça. “Deveria aguentar?”. Aproveitando que o cachorrinho estava na sua frente e era pequeno, segurou-o pelo corpo olhando diretamente nos olhos. “O que eu faço cachorrinho?” Sem resposta, Maria Fernanda chorou um pouco, sozinha.

Segunda parte

T mimicus, como relatado no incício da história, tem habilIdades miméticas referente a pelo menos 15 seres vivos que compartilham seu habitat. Não há problema per si nessa variabilidade de papéis que desempenha. Entretanto, o peso de um indivíduo é extremamente indiferente ao todo quando a natureza resolve se impor. Não se sabe ao certo o porquê, mas nas últimas décadas, a uma espécie invasora de peixe tropical tem se visto um boom demográfico de proporções preocupantes. E justamente é essa uma das quinze espécies que T. mimicus sabe imitar. Em verdade, fora um dos últimos papéis a serem adicionados ao catálogo desse ator dos mares. Trata-se de um pequeno cavalo marinho, parecido em tamanho com nosso amigo octópode, que encontrou favoráveis condições a sua procriação, alimentação, e relativamente poucos predadores. O problema gerado a T. mimicus não é de ordem competitiva, seja pela busca de alimento, abrigo ou qualquer outra coisa. A dificuldade encontra-se na complexa arquitetura do cavalo-marinho. Imitá-lo, em forma e comportamento, é extremamente trabalhoso e exaustivo ao nosso amigo polvo. Aposto que está com dificuldade de imaginar como um polvo pode parecer com um cavalo marinho? Pois é, se pensar é dificíl, imagine fazer! Como diz o próprio nome, todos os polvos tem 8 tentáculos, e, embora possam usar atalhos provenientes do fluxo de água, o processo de locomoção é essencialmente ativo. Ele precisa de todos os apoios, todas as oito patas. A sua relação com a espécie invasora vem daí. O cansaço exaustivo de fazer de um polvo um cavalo-marinho e ter que se locomover em um apoio só tem feito o número de polvos dessa espécie diminuir drasticamente. Por que ele insiste? Não existem outros 14 animais para se imitar ou mesmo ser ele mesmo? Simplesmente ser polvo? O que acontece é que o maior predador de T. mimicus, uma espécie de rêmora, não parece apreciar a carne cavalar. Não é venenosa, porém desgostosa. Outro atributo possível que a natureza dispõe aos seus integrantes: enganar para sobreviver. T. mimicus, antes da chegada da espécie invasora, tinha um número modesto de representantes, porém, autosustentável. Agora que aprendera a mimetizar o desgosto de seu predador, mantém essa conduta constante. Quase 24 por dia, ou pelo menos enquanto está a “mar aberto”, ele deixa de usar seus 8 tentáculos, obrigando a apoiar-se em um só. Cansaço esse que tem feito exaurir seus outros atributos diários da vida de polvo. Em resumo, T. mimicus era um viciado! Poderia mas não queria abandonar o vício.

Do futuro: Uma esperança à espécie T. mimicus.

            Havia caído. E como subiu tão alto, caiu muito. Estava no chão e sabia disso. Engraçado como as nossas prioridades mudam tão rápido. No dia anterior havia uma lista com doze tarefas a serem realizadas e mundo a conquistar. Hoje, nem sabia se continuaria na faculdade. Num dia você quer ser famoso, no outro viver em paz é só o que se precisa. Como pode? Por maior que seja o equilíbrio que se atinge na vida, você sempre pode cair com tudo!

            Um terceiro cão se juntou na brincadeira. Nitidamente, de longe, já se via o seu defeito. Não tinha uma perna. Um cachorro de 3 patas. Sem muitas delongas, se animou a brincar com os outros dois. Os cachorros, como crianças, não ligaram muito para o defeito. Digo, eles não recusaram a entrada do novato à traquinagem. Mas, coitado. Por mais que tentasse, não conseguia acompanhar os mesmos movimentos e estrepulias. Embora não houvesse a recusa dos companheiros, ele sempre caía. Tropeçava. Rolava quando queria pular. Às vezes, um dos cachorros pulava com as duas patas dianteiras e se apoiava no cachorrinho manco e ele caia, por não ter como suportar o peso. Sem maldades, era algo normal entre os cães. Ele só não sabia.  A cena dava um pouco de pena, claro. O que devia pensar disso? Era como ver um retardado feliz. Seria ele triste por ser um retardo mental e não saber o que a gente sabe, esse mundo de inteligência e possibilidades ou, pra nosso desespero, teria ele conseguido o que todos nós queremos: a felicidade. O cãozinho era assim. Deficiente e feliz. Inevitavelmente caia, pois não tinha o apoio extra. Contraditoriamente, era feliz.

            Um vento forte sopra. Um silêncio, parecendo até proposital, aparece e domina o lugar. Daqueles que nos obrigam a refletir. Estava na hora de voltar. De sair dali. Pra onde ainda não sabia. Voltar pras mesma coisas, pro mesmo jeito, não dava. Só um tolo faz as mesmas coisas esperando um resultado diferente. Algo havia pra se mudar. E, “Cara”, ela era dependente de mais de uma coisa só. A faculdade. O curso. A universidade. Lados de uma coisa só. Fazia bem feito sim! Mas era uma coisa só. Mas o quê? Não sabia. Precisava saber? Maria Fernanda, Fê, conquistou muito. Não queria abrir mão de tudo. Mudar de curso e virar Hippie. Todavia, continuar do jeito que estava também não dava. A cena dos três cachorros, com um deles só com três pernas, permanecia.

            Sem saber como fazer, mas com a vontade de fazer diferente, Fê levantou do banco. Não sabia ainda o que faria enquanto caminhava de volta. A cena do cachorrinho manco, porém, permanecia. E mesmo sem saber como faria, o que faria, um pensamento havia se estabelecido em sua cabeça: Quem só tem as próprias pernas, cai com tudo quando leva uma rasteira da vida.

Epílogo: uma avaliação ambiental de T. mimicus.

            Recentes análises do território habitado pelo polvo mostram um panorama encorajador. Após um queda nos registros do número de indivíduos da espécie T. mimicus, um pequeno levante na curva populacional parece emergir. Análises de espécimes encontradas confirmaram o trágico destino de uma massa imensa de polvos mortos. Ao que parece, tornou-se insustentável a eles manterem um padrão de comportamento tão distinto, tão trabalhoso. Talvez 90% dos representantes tenham se extinguido, colocando a espécie em risco. Todavia, com a natureza sempre faz, um novo achado surpreendeu os cientistas. Alguns exemplares dentro das imensas redes de polvos capturados mortos foram encontrados ainda com vida. Em posterior análise, pode-se verificar que a espécie é ligeiramente diferente da catálogada antes.

Pouca coisa fisicamente, um ou outro padrão de manchas diferentes nos tentáculos e uma cabeça um pouco maior. O fato mais promissor, em verdade, foi verificado quando essa nova sub-espécie foi colocada em tanques de simulação de vida marinha com outros animais. Águas-vivas, tubarões martelos, serpentes e, claro, o cavalo marinho. Surpreendentemente, os polvos coletados dessa nova variante do T. mimicus não apresentavam, em primeira análise, quaisquer traços de mimetismo com o a espécie invasora que quase dizimou o Thaumoctopus mimicus. E até agora, passados cerca de duas semanas de vida no ambiente marinho artificial, os polvos continuam sem mostrar o padrão exaustivo de imitação. Rêmoras, predadoras naturais, também foram colocadas nos enormes tanques. Entretanto, isso não fora suficiente, ainda não se sabe o porquê, para que os novos octópodes imitassem essa espécie invasora de cavalo-marinho. Simplesmente não aconteceu. O fato animou os biólogos e demais ambientalistas. Parece que, como sempre, a natureza achou um jeito de se adaptar.

Eric Andrius Coelho Duarte

Acadêmico do 3º ano de Medicina da UNISUL-Pedra Branca


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