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Os reflexos da Espiritualidade e Religiosidade na Qualidade de Vida e Assistência de Saúde

Os reflexos da Espiritualidade e Religiosidade na Qualidade de Vida e Assistência de Saúde
Augusto Cézar Apolinário dos Santos
mai. 15 - 11 min de leitura
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Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o conceito de saúde extrapola a ideia de ausência de doença. Ele busca entender o ser humano na profundidade de sua existência, na tentativa de compreendê-lo por meio de suas necessidades biológicas, psicológicas, sociais e espirituais. Ao profissional de saúde, enxergar o indivíduo nesse modelo bio-psico-socio-espiritual para a oferta de uma assistência integral à saúde, torna-se um desafio frente à dinamicidade do processo saúde-doença e das particularidades individuais. Fato é que a forma com que o indivíduo interage consigo mesmo, com o meio e com os outros impacta direta e/ou indiretamente em seu status de saúde.

Negligenciada por muitos e importante para vários, a Espiritualidade, contemplada no amplo conceito de saúde, ganhou espaço nas publicações científicas, congressos e diálogos interprofissionais. Em 2019, a Sociedade Brasileira de Cardiologia emitiu uma atualização de suas diretrizes com foco na relação entre espiritualidade e doenças cardiovasculares, configurando um grande avanço na medicina brasileira à medida que orienta a abordagem espiritual e mitiga as dúvidas dos profissionais na recomendação e grau de evidência das práticas em Espiritualidade e Saúde.

Em 2020, a Sociedade Brasileira de Pediatria também emitiu uma diretriz sobre Espiritualidade nos Cuidados Paliativos Pediátricos orientando o olhar espiritual de acordo com o contexto familiar, a fim de promover menor morbidade e maior qualidade de vida. No Brasil, houve uma reforma curricular com a implantação de disciplinas extracurriculares e/ou curriculares, com foco na espiritualidade e saúde, além de atuação de ligas acadêmicas o que alavancou a abordagem da temática dentro na formação profissional.

Definições de espiritualidade, religiosidade e religião

É nessa tentativa de um olhar holístico sobre o paciente que atentar-se às vivências espirituais e religiosas torna-se um objetivo na prevenção, promoção e recuperação da saúde. A espiritualidade pode ser definida sob diferentes óticas. Há autores que a consideram como a busca de contato com o transcendente ou ser superior, outros a entendem como um conjunto de valores e significados. O que importa é que, ao analisar as diferentes definições, chega-se à conclusão de que seculares e religiosos podem se beneficiar de abordagens espirituais, uma vez que a espiritualidade é algo inerente a todo ser humano que busca atribuir sentidos e valores às suas vivências ou encontrar respostas para seus questionamentos interiores.

Há quem pense que somente aquele que possui uma religião seja alguém espiritualizado. De fato, pessoas religiosas geralmente são as que possuem maiores escores de espiritualidade. Porém, a religião é apenas um instrumento que serve ao ser humano para se alcançar a espiritualidade. Nesse âmbito, o que mais se aproxima a ela é a religiosidade, que é a vivência da religião. Ou seja, é a prática diária e contínua em busca desse sentido maior, inerente a todos. Existe ainda o que se chama de religiosidade intrínseca e religiosidade extrínseca, sendo a primeira aquela em que a fé adquire significado ímpar na vida do que a pratica, vivendo-a de forma consciente e madura; ao contrário da segunda, que fica na superficialidade das ações e não consegue praticar aquilo que se aprende na religião e, por isso, beneficia-se menos ou não se beneficia dessa ação.

Frente às diversas práticas religiosas, na literatura, a que mais se destaca em frequência é a oração. Porém, ciente de que a espiritualidade ultrapassa questões religiosas, várias são as atitudes que expressam a espiritualidade do ser. É preciso sempre lembrar dos conceitos para que não se crie preconceitos que dificultem a contemplação e o olhar diagnóstico que o profissional médico detém sobre o indivíduo, buscando identificar os mais variados sofrimentos para que a assistência de saúde seja de fato efetiva e resolutiva para o paciente.

A espiritualidade e seus mecanismos de ação 

Dentre os mecanismos de ação da espiritualidade no corpo humano, pode-se citar os efeitos psicológicos e biomoleculares. No campo da psicologia, a espiritualidade/religiosidade (E/R) atua como medida de enfrentamento, chamada de coping, que pode ser tanto positivo, quanto negativo - à medida que os sentimentos promovidos e as ações decorridas desse enfrentamento são benéficos ou não ao indivíduo e/ou à sociedade. Com relação às alterações biomoleculares, traduzidas em otimização das vias psiconeuroimunológicas, cita-se a redução de células imunológicas, dos níveis cortisol, de proteína C-reativa, de interleucinas e outros, proporcionando uma melhor resposta endócrino-metabólica frente aos fatores estressantes, além de aumento na quantidade de neurotransmissores.

A espiritualidade promove, na maioria das vezes, efeitos como comportamentos saudáveis, apoio social, sentimento de bem-estar, esperança, otimismo, felicidade, propósito, significado, melhores ajustes a tratamentos, melhor função imunológica e maior percepção de qualidade de vida. Assim como menores índices de transtornos emocionais, transtorno do estresse pós-traumático, síndrome de Burnout, depressão, suicídio, ansiedade, sentimento de angústia, menos abuso de substâncias nocivas à saúde e menores taxas de morbimortalidade.

A maioria das publicações que relacionam E/R a qualidade de vida apresenta associações positivas, enquanto poucos estudos apresentam relações negativas ou mistas, podendo ser justificado pelas diferenças dos perfis das populações estudadas. Nesse cenário, pessoas afro-americanas, americanas nativas e latinas parecem se beneficiar mais das abordagens espirituais. Além disso, estudos evidenciam que a maioria dos pacientes desejam compartilhar com seus prestadores de serviço de saúde fatos sobre sua vida, incluindo sua espiritualidade.

Religiosidade, espiritualidade e saúde mental

Visto a diferença entre espiritualidade, religiosidade e religião, muitos estudos buscam evidenciar os níveis de E/R relacionados a maior ou menor qualidade de vida e saúde mental. Desse modo, pessoas que relatam alta espiritualidade e alta religiosidade apresentam os melhores escores, enquanto pessoas com alta religiosidade e baixa espiritualidade apresentam escores semelhantes. Por outro lado, pessoas com alta espiritualidade e baixa religiosidade parecem sofrer mais de ansiedade, e pessoas com baixa espiritualidade e baixa religiosidade apresentam os piores escores para qualidade de vida e saúde mental. Tal observação se constata em diferentes populações de pacientes estudados, ou seja, pacientes com diferentes diagnósticos. Ademais, frequentar templos religiosos é associado a maior reformulação cognitiva e apoio social, o que promove benefícios em vários campos da vida. Sendo assim, chama-se a atenção para a presença da comunidade religiosa na gestão das emoções e promoção de qualidade de vida.

Como dito no início deste artigo, é desafiador ao profissional de saúde contemplar a abordagem espiritual na assistência de saúde. Porém todo ser humano pode usufruir dessa abordagem, pois mesmo que o paciente apresente coping negativo ou uma religiosidade extrínseca, sempre haverá algo que é valoroso à sua existência e que pode ser explorado como uma medida alternativa complementar na tentativa de somar aos fatores salutogênicos na promoção de saúde. Note que as terapias convencionais não devem ser substituídas pela abordagem espiritual, mas essa pode ser complementar na assistência.

O papel do médico na abordagem espiritual

Como o médico pode fazer a abordagem espiritual? Estima-se que a coleta de informações sobre a espiritualidade do paciente deva ser algo natural, em momento e ambiente oportuno, podendo o profissional se servir de alguns questionários para orientar-se nessa busca de informações sobre o universo do paciente. Além disso, conhecer mais sobre seu paciente, ao explorar sua espiritualidade, aumenta as chances de um relacionamento médico-paciente positivo, com melhor prognóstico e melhores chances de adesão terapêutica. Porém, sabe-se também que muitos fatores contribuem para que essa abordagem seja negligenciada, como a falta de conhecimento sobre E/R, a precariedade de tempo e logística dos serviços de saúde e a formação ainda muito focada em procedimentos técnicos, imprimindo no profissional um sentimento de insegurança e receio ao abordar questões abstratas.

No atual cenário pandêmico de Covid-19, a pressão psicológica e o estresse frente às incertezas, medo do risco de contaminação, desemprego, perda de entes queridos e isolamento social desencadearam consequências negativas na saúde mental. Nesse contexto, muito pode ser observado a respeito do uso da espiritualidade no enfrentamento das adversidades. As práticas espirituais, ainda que algumas vivenciadas de maneira atípica pelos impactos da pandemia, servem de amparo e promovem a melhora da saúde mental através do despertar dos sentimentos de esperança, otimismo, ressignificação e apoio. Ademais, frente ao SARS-CoV-2, com medidas terapêuticas em estudo, o impacto da vacinação ainda não tão eficaz e quadros graves da doença com desfecho fatal, a oferta de um cuidado humanizado com olhar ampliado sobre o indivíduo fez-se ainda mais necessária. Nesse sentido, o cuidado integral contemplando a atenção espiritual é de grande valia na tentativa de reduzir os agentes estressores e possibilitar uma melhor recuperação da saúde e maiores chances de cura, o que também é evidenciado em tantas outras doenças.

Para que a sociedade possa usufruir de uma atenção integral à saúde, em que os profissionais consigam corresponder às diversas necessidades de seus pacientes, é necessário que estes, além de técnicos no saber médico, saibam também perceber as necessidades espirituais de seus pacientes. Sendo assim, faz-se válido ressaltar que por trás de toda patologia, existe alguém que deve ser enxergado como um todo. Por vezes, cabe ao prestador de serviços de saúde a sensibilidade de identificar, dentro das possibilidades, aspectos além dos protocolos e técnicas prescritas que podem ser utilizados para o bem-estar daquele que carece de cuidados. É preciso sempre lembrar que cada indivíduo traz dentro de si algo de bom que deve ser utilizado em prol de sua própria promoção e recuperação da saúde.

Assim, no campo da E/R, é fundamental ao profissional de saúde: a atenção às várias necessidades de seus pacientes; a prática da empatia e do saber ouvir; o respeito frente as diferenças ideológicas; o posicionamento de nunca imprimir aos seus pacientes suas próprias crenças e convicções religiosas; e, se possível, contar com o apoio de uma equipe multiprofissional, incluindo o líder religioso do paciente. Em suma, como dito por Carl Gustav Jung, “conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana seja apenas outra alma humana”.


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