Quando decidi fazer residência de patologia, na época que fiz pós em medicina do trabalho, perguntei a um perito(que tem prestígio da área) e me deu aula o que ele achava. O mesmo respondeu:
-Excelente escolha, agora faça uma pergunta a você “o que é doença?”
Uma pergunta tão simples como complexa na área da saúde, acabei passando na residência de patologia em um centro de referência internacional no Brasil(e desisti por motivos que comento nos próximos artigos) e até hoje nenhum dos meus ex- “preceptores” que se exibem com 4 steps , mestrado, doutorado conseguiram me responder de maneira satisfatória.
Maioria deles e dos R+ responderam
“Doença é ausência de saúde”
Uma resposta digna de pleonasmo e de esquiva como “o gelo é frio porque o fogo é quente”.
Não entrarei no histórico dos conceitos dos elementos de hipócrates, as teorias místicas, a teoria dos miasmas, ou as considerações de epidemiologia de John Snow. Caso contrário, escrevo um livro e isso na faculdade de medicina deveria ser manjado.
A ausência de saúde é subjetiva, por exemplo, existem estudos dizendo que pacientes com traço falciforme têm maior tendência de serem resistentes à malária do que pessoas sem o traço.
“Na Amazônia, com endemia de malária essa pessoa poderia ser considerada doente? Ou ela tem um fator de saúde que a faz sobreviver mais que uma pessoa sem o traço?
E em São Paulo, essa mesma sua genética é doença em virtudes dos riscos de propagação de um gene considerado doente?”
Aliás, gosto essa consideração porque isso destruiu o conceito de eugenia.
"a varíola bovina em seres humanos (usada como conceito pioneiro de vacinação) é uma doença na frente da varíola humana?"
Até em tempos de pandemia podemos pensar até na vacinação.
“Priorizamos vacinar uma pessoa com uma doença de base para induzir a imunidade da covid, logo a doença de base dela que justifica a vacina, então ela socialmente tem uma doença ou fator que leva ao protetivo para a covid(que é o acesso a vacinação) do que a população em geral? ou ambos?”
É um argumento com traços de absurdo, mas é a mesma situação que os meus ex-colegas com 4 steps entraram acima.
Pensar no conceito de doença explora conceitos mais antigos que a própria medicina ocidental.
O que em conceitos mais positivistas e legais no Brasil pode-se concluir:
“Doença é aquilo que pode levar a incapacitação ou morte”
Outro conceito que levamos aos mesmos conceitos subjetivos acima. Iniciamos um leque de perguntas com todas em respostas mais polêmicas:
“Então o trabalho de risco(como ser médico) é doença?”
“Se invariavelmente morremos e existe o conceito de morte por causas naturais, viver é uma doença?”
“Existir é uma grande doença?”
“Cuidados paliativos começam com a neonatologia e a obstetrícia do feto?”
“Todos exames assintomáticos alterados invariavelmente levam à doença?”
"Se a ausência de doença é prolongar a vida, por que temos o conceito de distanásia e mistanásia?”
“Um Habsburgo ou descendente da rainha Vitória seriam considerados incapazes de governar mesmo com inúmeras doenças genéticas consanguíneas?”
Muitos filósofos, médicos e ditos especialistas em bioética tem muitas respostas se baseando em vivências pessoais, em outros filósofos e até observações espirituais. Todos eles na minha opinião com respostas que não existem certos ou errados, são circunstanciais.
Por exemplo: Câncer, infecções, autoimunidade e alterações metabólicas matam. Isso é fato constatado, certo? Nas nossas circunstâncias em sua maioria sim. Então e a imunoterapia? Ou os estados onco-hematológicos alterados que induzimos com medicações para tratar outros estados onco-hematológicos? Ou pasmem até mesmo algumas infecções virais e bacterianas que fazem imunidade cruzada com alguns tipos de neoplasia.
Civilizações consideravam algumas deformidades induzidas ou não como um ser divino, isso para eles não era ser doente.
Outras até uma gestação gemelar, uma situação comum em nosso meio, era considerada uma doença em que uma das crianças deveria ser enterrada viva.
Existem psicanalistas, artistas e médicos que mudaram conceitos da saúde que biógrafos médicos acreditam que os mesmos sofriam de depressão, transtorno bipolar e, pasmem, até esquizofrenia.
Inclusive para contradizer até que a situação acima seja questionada. Como um clássico chamado “Os loucos egrégios” discute. Van Gogh era um gênio por que era doente mental ou a doença mental era um fator que atrapalhava seu gênio criativo?
É circunstancial. Inclusive doenças mentais na psiquiatria.
Aliás, até mesmo medicações como a mirtazapina, um antidepressivo muito usado na geriatria, que tem efeito colateral de causar aumento de apetite. Para um depressivo sem anorexia com essa medicação, induzimos uma doença com efeito colateral? Se sim então e o paciente que tem anorexia? Ou mais, um paciente que não se deu bem com nenhum antidepressivo e só se deu bem com esse?
Por enquanto eu mantenho a resposta desse mesmo professor a qualquer pergunta difícil que eu fazia:
“Eu não sei, se achar eu te aviso, se você achar me fala, se tiver uma hipótese razoável vemos juntos, mas comece lendo os aforismo de hipócrates”
Ironicamente, eu já havia lido esse livro quando me formei e ele é perito e na rixa velada entre alguns peritos e alguns patologistas o perito levou essa.
Ps: se você acha após tudo isso que esse conceito não é medicina e sim filosofia de boteco(sim, eu ouvi isso), acho que você ignorou quase toda a construção da sua profissão as custas de ser um prescritor de dipirona(que vai apanhar para sobreviver a Inteligência artificial daqui uns anos), um operário que a linha de produção é abrir gente, um leitor de lâmina(que vai ser substituído por um computador em 10 anos) ou uma calculadora semivalorizada(o aparelho de ressonância/ sistema de prontuário eletrônico e os ganhos de gestão em saúde ganham mais que você provavelmente).
Ps2: discuto mais esse conceito de inteligência artificial no meu artigo sobre a indústria 4.0 na medicina que você pode conferir aqui