O asfalto escuro orientava o caminho citadino de Américo ao trabalho, mais a frente à praça, arborizada, com o típico branco fosco dos rodapés junto ao com o tom acinzentado, fruto das pedras portuguesas que arquitetam o chão da praça, ornavam a paisagem da Unidade Básica de Saúde.
6:53. Pontual, Américo chegou à unidade de saúde, cumprimentou a fila de usuários que já se formava em frente ao portão e enquanto isso, já ouvia o tilintar de um chaveiro que se aproximava da porta, era Fábio, o zelador da unidade que abriu a porta e disse prontamente: Doutor, bom dia, sua sala já está pronta.
Américo sempre foi alguém muito benquisto por todos, um profissional valoroso acima de tudo, desde os colegas de trabalho, secretários, zeladores, assistentes e pacientes, todos tinham carinho pelo médico. Um sonho particular realizado. Sua sala era branca como os rodapés da praça, com uma mesa fórmica, além de uma cadeira de aglomerado de madeira que compunha o cenário cotidiano. A tecnologia passava longe daquele lugar, entretanto, a boa medicina do cotidiano não é feita com robôs, é feita sim com atenção ao rubor, olhos nos olhos da dor e a arte da escutatória. Provavelmente, o ápice da tecnologia estava no ar condicionado que refrescava a sala.
Por volta das onze horas, a fome já dava seus sinais, o médico houvera se alimentado por volta das cinco e meia, natural que isso acontecesse. Duas batidas firmes na porta, logo ela se entreabria e Márcia, sua colega trabalho, informava a necessidade de visitar Seu Nelson, um paciente que estava acamado devido a problemas cardiovasculares decorrentes da hipertensão e do tabagismo inveterado. Nelson era cuidado pelo médico desde que houvera iniciado o trabalho no local, era um paciente especial.
Américo foi a pé, atravessou as ruas de paralelepípedos do bairro e de longe ouvia urros e muita gemência que medrava da casa de Nelson, as dores da fisioterapia não eram só dele, mas da rua inteira. Nosso médico bateu palmas na porta e percebeu que o portão da garagem já estava sem o cadeado, aguardando sua chegada.
Nelson era um pequeno comerciante que devido aos problemas adquiridos só mantivera os movimentos do pescoço e cabeça.
Os olhos do paciente brilhavam de lágrimas, a dor dos exercícios era nítida. Américo o cumprimentou calorosamente. A esposa de Nelson estava de fora do quarto observando a fisioterapia, trêmula com a cena. O médico tentou acalmá-la, tratava-se de uma família muito querida e que o tratamento ainda se estenderia por alguns anos e seria necessária muita resiliência. A esposa logo em seguida foi aos prantos.
Américo conversou uma última vez com o paciente e medicou-o. A equipe de fisioterapia tentava consolar a esposa de Nelson. Enquanto isso o médico conversava com uma das fisioterapeutas.
“Como anda a evolução dele?” — indagou o médico
“Talvez ainda possa voltar a andar, depende da adaptação dele e o poder da sua neuroplasticidade.” — afirmou com pesar a fisioterapeuta
“Entendo… Há algo que podemos fazer para ajudar a esposa dele? Não é a primeira vez que a vejo inconsolável.”
“Em verdade, ela chora por outros motivos que ...” — titubeou a fisioterapeuta com o olhar desviado do médico.
“É algo que preciso saber? Ele é meu paciente, muito querido e que afirmei estar ao lado dele ao longo de todo o tratamento independentemente do que aconteça.”
“Doutor… é pelo seu apreço a ele que fica difícil comentar. Digo que a relação do casal nunca foi das mais harmoniosas, a pele dela carrega as histórias, agora sem conseguir marcar novos momentos na pele da esposa, Nelson, ainda assim continua a destratá-la.”
Américo foi nocauteado.
Sentiu-se como se tivesse sido atropelado, sua visão embaçou e sentiu-se sem equilíbrio momentaneamente. Estranhamente, despediu-se rapidamente de todos da casa e apressou o passo sob os paralelepípedos. Já era por volta do meio-dia, um calor argelino bombardeava a cabeça de Américo, embaçava sua visão, fazia escorrer suor da sua testa, além de provocar o sobressalto das suas veias na face. Trôpego conseguiu chegar em sua sala, retirou o jaleco sufocante e sentou-se esbaforido.
O coração batia forte ao ponto de sentir todo o corpo tremer. Embruteceu-se e ruborizado tinha vontade de tirar satisfações com o paciente depois do que ouvira, queria também intervir de alguma forma. Não admitia que ele poderia estar ajudando alguém daquela estirpe.
Desabotoou a camisa que também o sufocava, agora, sentado de maneira esparramada na cadeira tentava retomar fôlego.
Começou a falar repetidamente a si mesmo: Sou médico, não juiz!
Repetiu uma, duas, quantas vezes foi necessário. Tentava reprimir aquela angústia a qualquer custo. Estava em dúvida se poderia comentar o ocorrido com alguém, mas a inquietude já era proprietária do seu espírito.
Os questionamentos eram crescentes, indagou-se durante minutos a fio. Dentre eles, o mais doloroso era: como irei visitar Nelson e olhos nos olhos, não o julgar?
Respirou profundamente e lembrou o que sempre afirmava de peito aberto a todos os colegas devido a sua admiração ao renomado médico Antônio Dráuzio Varella: Sou um varellista! Sou um varellista!
Américo precisou pela primeira vez agir como um varellista, olhou para suas mãos e afirmou de forma contumaz:
— Sou médico, não juiz! É uma questão de ética.