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Sentindo a morte com os olhos fechados

Sentindo a morte com os olhos fechados
Leonardo Cardoso
ago. 20 - 3 min de leitura
0110

No dia em iniciei minha vida acadêmica dentro da medicina, fui levado por professores até o laboratório de anatomia. Antes de entrarmos, recebemos algumas instruções sobre como funcionaria o semestre. Muitos me diziam que era uma das matérias mais difíceis de todo o curso. Passado o momento de conversa, fomos vendados e guiados até o laboratório.

Percebi quando entramos pelo cheiro diferente. Não podia ver nada. Estava sem meus olhos. Fui colocado na frente de três bancadas. Na primeira haviam peças anatômicas de plástico. Tentávamos adivinhar a que parte do corpo pertencia. Tarefa difícil quando se usava apenas as mãos. Na segunda bancada havia uma perna de boi ou vaca. Uma mistura de texturas. O duro do osso contrastava com o mole da pele e da carne. Na terceira bancada...

Sabia que estava diante de um cadáver. O cheiro do produto usado para sua conservação confirmava a suspeita. Sempre me disseram que os cadáveres tinham cheiro de formol. Esse tinha cheiro de amoeba – uma marca de massinha com a qual brinquei em minha infância.

Com os olhos vendados passei a mão por aquele corpo. Pés, pernas, abdome, braços, cabeça. Era um homem. Tinha barba. O abdome estava aberto. Foi possível tocar suas vísceras. Sempre desejei conhecer o corpo humano por dentro. Ver como era cada órgão; seu funcionamento. Nunca imaginei que meu primeiro encontro com ele seria dessa forma.

Passado alguns minutos, fomos orientados a tirar as vendas. Os professores explicaram que o objetivo da atividade tinha sido para que compreendêssemos desde o primeiro dia o que sente um pai e uma mãe ao entregar em nossas mãos um filho. A palavra era CONFIANÇA. Quando recebemos alguém para tratar, as pessoas que o cercam estão confiando em nós de olhos fechados. Daí a importância de sempre fazermos o nosso melhor.

Olhei para o cadáver. Não sabia seu nome, idade, profissão. Apenas que chegou até a faculdade como “Zé”. Para muitos era só um corpo que serviria ao nosso estudo. Para mim um corpo, sim, mas um corpo que teve uma vida. Vida essa que teve pai, mãe, amigos, amou, foi amada, sorriu, chorou... Comecei a pensar o quão triste devem ter sido seus últimos dias. Sozinho, abandonado. Foi destinado a servir a ciência. Pode ter sido um bandido, um ladrão, um malfeitor. Pode ter sido um pai de família, um filho querido, um amigo para todas as horas. Existem coisas que jamais saberemos em toda a vida. Sabia apenas de uma coisa: estava diante da morte. Meu primeiro contato com ela depois de ter entrado na faculdade. Muitos não possuem a dimensão disso. Ao redor do cadáver riem, fazem piada, contam causos diários. Não demonstram nenhum respeito pela vida que um dia habitou aquele corpo, quando na verdade deveriam ser artesãos que penetrariam na mais bela obra de arte.

Jamais esquecerei a tarde em que conheci o Zé e aprendi a lição de que a vida nada vale se não for vivida com amor, paixão e intensidade.

 

E você? Teve alguma experiência inesquecível durante a faculdade? Conta para a gente!


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