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Sentindo a morte com os olhos fechados

Sentindo a morte com os olhos fechados
Leonardo Cardoso
fev. 6 - 3 min de leitura
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No dia em iniciei minha vida acadêmica dentro da medicina fui levado por professores até o laboratório de anatomia. Antes de entrarmos recebemos algumas instruções de como funcionaria o semestre. Muitos me diziam que era uma das matérias mais difíceis de todo o curso. Passado o primeiro momento de conversa, fomos vendados e guiados até o laboratório.

Percebi quando entramos pelo cheiro diferente. Não podia ver nada. Estava sem meus olhos. Fui colocado na frente de três bancadas. Na primeira haviam peças anatômicas de plástico ou resina. Tentávamos adivinhar a que parte do corpo pertencia. Tarefa difícil quando se usavam apenas as mãos. Na segunda bancada havia uma perna de boi ou vaca. Uma mistura de texturas. O duro do osso contrastava com o mole da pele e da carne. Na terceira bancada...

Sabia que estava diante de um corpo humano. O cheiro do produto usado para sua conservação confirmava a suspeita. Sempre me disseram que os cadáveres tinham cheiro de formol. Esse tinha cheiro de amoeba. Uma massinha de modelar com a qual brinquei em minha infância.

Com os olhos vendados passei a mão por aquele corpo. Pés, pernas, abdome, braços, cabeça. Era um homem. Tinha barba. O abdome estava aberto. Foi possível tocar suas vísceras. Sempre desejei conhecer o corpo humano por dentro. Ver como era cada órgão. Seu formato e funcionamento. Nunca imaginei que meu primeiro encontro com ele seria dessa forma.

Passados alguns minutos fomos orientados a tirar as vendas. Os professores explicaram que o objetivo da atividade tinha sido para que compreendêssemos desde o primeiro dia o que sente um pai e uma mãe ao entregar em nossas mãos seu filho, por exemplo. A palavra era confiança. Quando recebemos alguém para tratar as pessoas que o cercam estão confiando em nós de olhos fechados. Daí a importância de não nos contentarmos com o bom quando o melhor é possível.

Olhei para o cadáver. Não sabia seu nome, idade, profissão. Apenas que chegou até a faculdade como “Zé”. Para muitos apenas um corpo que serviria ao nosso estudo. Para mim um corpo, sim. Mas, um corpo que teve uma vida. Vida essa que teve pai, mãe, amigos, amou, foi amado, sorriu, chorou...

Comecei a pensar o quão triste devem ter sido seus últimos dias. Sozinho, abandonado. Foi destinado a servir a ciência. Pode ter sido um bandido, um ladrão, um malfeitor. Pode ter sido um pai de família, um filho querido, um amigo para todas as horas. Existem coisas que jamais saberemos em toda a vida. Sabia apenas de uma coisa: estava diante da morte. Era meu primeiro contato com ela depois de ter entrado na faculdade.

Muitos não possuem a dimensão disso. Ao redor do cadáver riem, fazem piada, contam causos diários. Não demonstram nenhum respeito pela vida que um dia habitou aquele corpo, quando na verdade deveriam ser artesãos que penetrariam na mais bela obra de arte.

Jamais esquecerei aquela tarde em que conheci Zé e aprendi que a vida nada vale se não for vivida de forma intensa.

E você? Qual experiência que te marcou no início da sua graduação? Conte aqui nos comentários. 


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