Não parece que o mundo onde vamos desembarcar depois da pandemia seja o mesmo do qual saímos. O vírus originado no interior da China abalou o planeta e colocou a população em quarentena. Desde onze de março, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou estado de pandemia do novo coronavírus, a vida humana mudou radicalmente.
Enfrentamos uma das maiores crises da história recente da contemporaneidade, e enquanto a humanidade espera uma vacina contra a doença, começamos a experimentar um "novo normal" - que de normal parece não ter nada-. Claramente, a pandemia está remodelando a forma como nos relacionamos com o mundo, com os outros e com nós mesmos.
Por estarmos no meio da fase aguda da crise, ainda é muito difícil apurar qual a probabilidade de cada uma das atuais mudanças de comportamento para estimar qual delas persistirá. Porém, com base no panorama atual, em experiências anteriores, levando em consideração a perspectiva histórica e analisando quais dessas mudanças de costumes têm mais facilidade para serem adotadas para a fase do novo normal, já podemos, por enquanto, ver algumas mudanças pontuais em diversos setores, como por exemplo:
O novo normal no ambiente urbano: mudança de comportamento
A quarentena e o tempo que as pessoas têm passado em casa estão levantando a reflexões tanto sobre prioridades relacionadas a gastos com itens de baixa necessidade, como com o tempo despendido no deslocamento para a realização de atividades.
As pessoas devem passar a ficar mais tempo dentro de casa e serem mais criteriosas na escolha de suas opções ao saírem. Além disso, as casas tendem a ser maiores e melhor aproveitadas, pois como as pessoas ficarão mais tempo nelas, tanto por suas escolhas quanto pela prática de "home office", as moradias devem ser valorizadas.
De acordo com o psicanalista e escritor Celso Gutfreind, em entrevista ao Physalis:
"Fui convidado para um exercício fascinante e impossível: prever como as pessoas vão sair da pandemia de COVID-19, do ponto de vista psicológico e interpessoal. No quesito empatia, por exemplo.
O humor será fundamental. Contar com ele representa saúde mental, segundo poetas e psicanalistas. Então, sonhei com uma bola de cristal, mas não tive fé para adquiri-la. Continuo sem saber o que será. Para complicar, o meu trabalho vive entre o presente e o passado, limitando-se ao conhecimento deste para transformar aquele."
Também pontuou:
"Como sairemos emocionalmente desta pandemia? Depende do olhar e do passado. Depende do quanto fomos olhados. Aqueles que entraram suficientemente acolhidos poderão sair melhor, de empatia e no resto. Quanto aos demais, tendem a repetir velhos hábitos. Lamento pensar assim, sem humor, mas um psicólogo também oferece o confronto com a realidade.
É como um trauma. Seus efeitos não costumam vir na primeira violência. Esta deixa uma marca silenciosa, que entrará em ebulição somente no próximo choque. O mesmo pode valer para a aprendizagem com a experiência. Aprende quem já pôde aprender. Ouve a empatia quem, um dia, contou com ela. Olha o próximo quem foi olhado, num tempo distante. E não seria pouco se saíssemos desta situação com o sentimento de que é fundamental investir na saúde materno-infantil, com políticas que promovam o vínculo e o olhar. Então, não haveria trauma com as crises, mas uma nova chance para sair delas com mais saúde.
Mas também é preciso que a psicologia construa algumas ilusões, no trabalho com a realidade. Que seja possível aguardar surpresas, já no final desta adversidade e não da próxima. Cultivar a esperança de que joias de filmes, livros e da vida surgem quando um novo encontro resgata almas entorpecidas e recoloca o farol no seu lugar. Então, o final da escuridão poderá surpreender com o recomeço de olhares quase extintos."
Busca do que é essencial e âmbito sociocultural
Vivemos um retiro global involuntário no qual estamos analisando nosso contexto de vida. Parece que há um caminho mais prático em direção ao que realmente importa. Acabamos abrindo mão daquilo que carregamos que não faz sentido e o que fica é o que está conectado a nossa essência. Assim, conseguimos nos adaptar melhor a novas realidades. No mundo pós-pandemia, tendemos a buscar o que é essencial.
Do ponto de vista sociocultural, é possível observar uma valorização na compra de produtos locais e dos estabelecimentos do bairro, a redução do trânsito e a racionalização do ato de sair de casa. Nesta mesma linha temos a valorização da família, uma maior ênfase na higiene pessoal necessária para se manter saudável e também uma possível aceitação da atualização de padrões de privacidade para acompanhamento do isolamento e do monitoramento do contágio.
Outrossim, de acordo com o filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé, em entrevista recente à XP Investimentos:
"A humanidade anseia por um altíssimo controle da vida: aviões, celulares, longevidade, vacinas, engenharias, tecnologias de gestão, e a epidemia trás uma variável: contingência. A incerteza invadiu a nossa vida, e nossa sociedade contemporânea lida muito mal com a incerteza, fazendo com que soframos mais com essa invasão da pandemia."
Além disso, questionado se com a pandemia as pessoas tenderão a ficar mais religiosas, pontuou em suas mídias sociais:
"A sociologia da religião mostra há muito tempo que em momentos de perda (como perdas de patrimônio, casamentos desfeitos, perdas de filhos e de negócios ) as pessoas se tornam mais religiosas ou elas voltam a praticar a religião familiar na qual elas tinham se afastado. Então, nota-se que o o vínculo entre perdas e conversão religiosa é razoavelmente demonstrado em pesquisas de comportamento e sociologia da religião, pois a religião normalmente é um ambiente onde você encontra algum sentido e também apoio."
Ademais, expressou sua opinião acerca das possíveis mudanças na humanidade:
"A humanidade já passou por inúmeras guerras, inúmeras pragas. Em relação à ideia de que a humanidade vá mudar por causa da pandemia, a história sustenta o argumento contrário: não vai mudar seu comportamento por isso. Não vai mudar porque não mudou em outros momentos. Os exemplos históricos nos mostram isso.
No entanto, a gente sempre tende a mudar, quando há grandes crises, no ponto de vista técnico. A gente aprende muito. Acredito que terão mudanças no plano comportamental, como por exemplo, a possibilidade de que as pessoas passem a lavar as mãos com mais cuidado, e que durante um tempo elas tenham mais cuidado de encostar em maçanetas de porta."
Também alegou sua opinião sobre a auto-concepção de fragilidade humana:
"É possível que as pessoas tenham a experiência de descentramento ontológico, ou seja, você percebe que a humanidade não é o centro do mundo. Somos super frágeis, e isso nos dá uma chance de percebermos que somos meros mortais. Porém, eu acho que isso não continue para sempre, inclusive porque esquecer que somos meros mortais no dia-a-dia é parte da herança evolucionária humana. Se a gente lembrasse disso constantemente, talvez fôssemos uma espécie não operacional. Talvez a gente fosse uma espécie mais melancólica do que já é."
Por fim, comentou sobre possíveis e singulares modificações:
"Tenho a impressão de que teremos muita aprendizagem. Famílias que vão se reencontrar, casamentos podem se fortalecer ou acabar, pessoas repensando sua vida profissional. O longo isolamento, sim, pode causar grandes transformações, entre elas, a percepção de que não tem internet que aguente tanta gente pendurada nela ao mesmo tempo. Contudo, mudanças no sentido da humanidade passar a lembrar que somos meros mortais, não. A gente sabe disso o tempo inteiro."
A crise de saúde pública é definida por alguns pesquisadores como um "reset", uma espécie de um divisor de águas capaz de provocar mudanças profundas no comportamento das pessoas. “Uma crise como essa pode mudar valores”, diz Pete Lunn, chefe da unidade de pesquisa comportamental da Trinity College Dublin, em entrevista ao Newsday.
“As crises obrigam as comunidades a se unirem e trabalharem mais como equipes, seja nos bairros, entre funcionários de empresas, seja o que for. E isso pode afetar os valores daqueles que vivem nesse período, assim como ocorre com as gerações que viveram guerras”.
Portanto, haja vista a assertiva, acredito que a pandemia da COVID-19, sob as relações humanas, em específico, provoca e provocará mudanças, mas não ao ponto de transformar colossalmente a humanidade.
Referências:
1- Análise dos negócios e relações pós COVID-19 - Gabriel Lima: https://www.proxxima.com.br/home/proxxima/how-to/2020/05/12/uma-analise-dos-negocios-e-relacoes-pos-covid-19.html
2- Relações pessoais pós-coronavírus: as mudanças virão dependendo de como encararmos o trauma: https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2020/04/relacoes-pessoais-pos-coronavirus-as-mudancas-virao-dependendo-de-como-encararmos-o-trauma-ck9d7gxn60059017n54q8fr0v.html
3- Entrevista - Luiz Felipe Pondé - 22/04/2020: