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Uma vida indigna de ser vivida?

Uma vida indigna de ser vivida?
Hélio Angotti Neto
dez. 31 - 9 min de leitura
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Observo, preocupado, diversas vozes famosas na bioética, e até na mídia, que pregam idéias perigosíssimas com suaves palavras. Na Bioética há diversos movimentos ganhando espaço dentro da Academia e trazendo discussões de grande relevância. Porém, muitas vezes, a discussão ocorre longe do escrutínio público, deixando a população inerme contra as mais amalucadas propostas.[1]

Um dos movimentos que ganha força lenta e inexoravelmente é o Transumanismo, que busca promover um ser humano aprimorado por meio da genética e da tecnologia. Só esse ponto já seria muito controverso por ser quase uma utopia escatológica (do termo grego Eskathón, relacionado ao fim dos tempos), capaz de mudar a estrutura essencial do ser humano em meio a um contexto eticamente insuportável de imprevisibilidade.

Mas ainda fica pior quando os proponentes de tal visão de futuro afirmam que o ser humano não está preparado em termos morais para ser fisicamente aperfeiçoado. Precisa antes ser moralmente aperfeiçoado pela manipulação artificial de seu caráter e de sua mente. Junto com essa defesa da lavagem cerebral por uma poderosa tecnocracia entra o discurso de que todos deveriam ser mais vigiados e suas liberdades deveriam ser mais bem controladas pelo Estado. Um pesadelo digno dos momentos mais tenebrosos da imaginação de um George Orwell ou e um Aldous Huxley.[2]

 

Outra linha de pensamento curiosa e claramente relativista é o utilitarismo do famoso bioeticista de Princeton, Peter Singer, que liga o valor da vida humana à sua qualidade, declarando que algumas pessoas vivem vidas indignas e que deveriam morrer, defendendo o direito dos animais e, desde 2001, defendendo o bestialismo.

A Bioética tem sido o palco das idéias mais estapafúrdias possíveis, incluindo muitas vezes o feminismo radical, releituras anacrônicas do leninismo e misturas inusitadas de tecnologia com ficção científica darwinista. Mas a Bioética, de certa forma, é o palco certo para a discussão livre de idéias; o que me assusta às vezes é o desconhecimento geral da população acerca do que pesquisadores e professores discutem, e o fato de que tais discussões pautarão grandes projetos de engenharia social.

Um movimento que ganha cada vez mais força é o de liberação da eutanásia.

O livro de Daryl Charles, sobre a Lei Natural, trata diretamente de como a manipulação verbal, tão rotineiramente utilizada nos círculos acadêmicos, esconde realidades perigosas. O título é “Retrieving the Natural Law”, e sua leitura é um alerta importantíssimo.[3] Trata também dos antecedentes históricos da liberação da eutanásia e da tragédia que isso causou.

Hoje em dia escutamos, com certa frequência, que muitas pessoas sofrem terrivelmente e que suas vidas são indignas de serem vividas. Muitos, inclusive, acreditam que melhor seria morrer. Fala-se do golpe de misericórdia, do direito de morrer, do direito de escolher o alívio das dores (como se não houvesse tantas formas de aliviar a dor) e do sofrimento insuportável que deveria permitir a opção pela eutanásia e pelo suicídio assistido.

No entanto, tais idéias são antigas. Ainda no século XIX, médicos alemães encabeçaram uma discussão sobre aprimoramento racial e sobre aqueles cuja vida não era digna o suficiente. Eram os lebensunwertes Leben, aqueles cujas vidas não mereciam ser vividas. A linguagem utilizada incluía “morrer com dignidade”, “liberação compassiva” e “preferência por uma saída misericordiosa”.

O que o mundo teve o desgosto de assistir ao olhar os crimes dos médicos do regime nazista foi só uma consequência final de debates acadêmicos e idéias médicas daqueles que haviam se afastado demais do ideal hipocrático e cristão da medicina.

Antes de nomes como Adolf Hitler, Joseph Goebbels, Hermann Göring, Heinrich Himmler e Albert Speer, existiram médicos que foram pioneiros na grande mudança da concepção do valor que a vida humana tinha.  Assim como o moderno Peter Singer, no passado diziam que a vida humana tinha um valor proporcional à sua qualidade. Já em 1890 se questionava a medicina compromissada com a defesa da vida, com a beneficência e com a não maleficência. Falava-se no “direito de morrer” e na “vida indigna de ser vivida”. Era necessária uma nova medicina!

Ernst Haeckel, importante biólogo, autor e darwinista social, defendia a eutanásia como algo misericordioso que poderia poupar preciosos recursos. O caminho para o nacional socialismo de Hitler estava culturalmente pronto décadas antes da guerra.[4]

Como Viktor Frankl, em seu magnífico livro Em Busca de Sentido[5], já denuncia, famosos vencedores do prêmio Nobel foram responsáveis pelas idéias e ações que tornaram possíveis as horrendas câmaras de gás e os fornos humanos nos campos de concentração. Antes mesmo da Primeira Guerra Mundial a Eutanásia já era defendida pelo sociólogo Adolf Jost e pelo químico ganhador do prêmio Nobel, Wilhelm Ostwald. Em seu livro de 1895 (O Direito de Morrer), Jost já ligava a eutanásia à compaixão e ao alívio do sofrimento.[6]

Desse ponto em diante veio a necessidade de se fazer a eutanásia e permitir o suicídio assistido. E o resto da história, muitos já sabem. O que era direito virou de fato obrigação e resultou no pavoroso morticínio de milhões de pessoas.

Daryl Charles, autor do excelente livro sobre a Lei Natural, usa uma expressão forte para descrever essa manipulação verbal: prostituição verbal para justificação do mal social. Concordo plenamente, como fica evidente em meu livro sobre a manipulação verbal para chamar o assassinato de crianças de abortamento pós-nascimento.[7]

Alguém pode afirmar que as coisas não vão ladeira abaixo como ocorreu no passado. Que tudo será diferente. Mas não é isso o que alguns relatos pessoais e acadêmicos demonstram. Ao que indicam, após a aceitação e a liberação da eutanásia, cada vez fica mais fácil e mais presente a morte administrada por médicos. E cada vez mais os médicos sentem-se pressionados a matar.[8]

Mas nem tudo são espinhos. Há escolas de Bioética que reconhecem o valor da vida humana e que fogem dessa manipulação torpe do discurso humano. Ainda há aqueles que entendem o valor do legado cultural da medicina hipocrática e cristã. E não é necessário ser cristão ou até mesmo teísta para reconhecer o instinto moral que nos alerta sobre o valor da vida humana e a necessidade de protegê-la.

No dia em que nós, médicos, tivermos a autoridade para matar, uma grande transformação social novamente ocorrerá em nossa sociedade. Não seremos mais os benevolentes doutores que curam e aliviam; seremos os misericordiosos executores. Deixaremos de ver cada vida humana como algo sagrado, precioso e único para ver a vida humana submissa ao valor econômico ou à capacidade de desfrutar prazer.

Questões éticas como a eutanásia, o aborto, a clonagem, a eugenia e o suicídio assistido vão muito além de detalhes técnicos, científicos e médicos. São questões que nos definem enquanto civilização, e que pautarão todo o nosso futuro, nossa sobrevivência e nosso legado.

 

  • [1] Como a ridícula tentativa da gestão anterior do Conselho Federal de Medicina de enviar ao Congresso Brasileiro uma versão tupiniquim do Protocolo Groningen.
  • [2] PERSSON, Ingmar; SAVULESCU, Julian. Unfit for the Future: The Need for Moral Enhancement. Oxford: Oxford University Press, 2012, 143p.
  • [3] CHARLES, J. Daryl. Retrieving the Natural Law. Michigan, Cambridge: William B. Eerdmans Publishing Company, 2008.
  • [4] SCHMUL, Walter. Rassenhygiene, Nationalsozialismus, Euthanasie. Von der Verhütung zur Vernichtung ‘lebensunwerten Lebens’ 1890-1945. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1987.
  • [5] FRANKL, Viktor. Em Busca de Sentido. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.
  • [6] JOST, Adolf. Das Recht auf den Tod: Sociale studie. Göttingen: Dietrich’sche Verlagsbuchhandlung, 1895.
  • [7] ANGOTTI NETO, Hélio. A Morte da Medicina. Campinas: VIDE Editorial, 2014.
  • [8] KOOPMAN, Jacob JE; BOER, Theo A. Turning Points in the Conception and Regulation of Physician-Assisted Dying in the Netherlands. The American Journal of Medicine, in press, 2016.

 

Prof. Dr. Hélio Angotti Neto é Colunista do Academia Médica, Coordenador do Curso de Medicina do UNESC, Diretor da Mirabilia Medicinæ (Revista internacional em Humanidades Médicas), Membro da Comissão de Ensino Médico do CRM-ES, Visiting Scholar da Global Bioethics Education Initiative do Center for Bioethics and Human Dignity, Membro do Comitê de Ética em Pesquisa do UNESC e criador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina (SEFAM).

Lattes: http://lattes.cnpq.br/6394379738440524
SEFAM: www.medicinaefilosofia.blogspot.com.br
Mirabilia Medicinæ: http://www.revistamirabilia.com/medicinae


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