Prólogo
Início de 2020. Novo ano de faculdade. Ânimo, ansiedade, sede de conhecimento.
Novas disciplinas. Espera por mudança das aulas.
Início das aulas.
Horas e mais horas em sala de aula. Passividade. Escutar sem absorver.
Transição.
Covid-19. Isolamento. Da sala de aula para o EAD. Mudança na metodologia de ensino? Não.
Horas de conteúdo "vomitado". "Vocês estão em casa. Logo, têm tempo". Oi?
Inúmeros trabalhos. Trabalhos desmedidos.
Prova? Impossível. "Não sei configurar um temporizador pra vocês".
Frustração. Professores altamente especializados que se esqueceram de olhar em volta. Culpados? Não!
O modelo de ensino é que é falho. Pior, uma falha perpetuada.
Não sabemos ensinar
O ensino superior conquista cada vez menos o interesse de jovens recém-saídos da escola. Áreas como as ciências exatas, sobretudo cursos voltados para tecnologia, têm sofrido intensamente com isso. Podemos achar estranho, considerando o aumento da demanda por mão de obra high-tech; mas essa movimentação é mais que compreensível.
Entre outros fatores, a alta disponibilidade de informação na internet supre, dependendo da profissão e da área de atuação, quase a totalidade da demanda por conhecimento técnico e científico. Jogue um termo no Google e receba "toneladas" de links e artigos científicos de pesquisadores prestigiados.
Pra que fazer faculdade se tenho cursos gratuitos de Harvard e MIT disponíveis na internet?
Nesse contexto, a medicina é uma exceção. Não se constroem médicos e médicas por meio de um curso on-line.
Ainda bem.
Mas não podemos nos manter isolados na nossa ilha (ou forte, dado que não gostamos de "invasores") e perpetuar um modelo de ensino falho desde a sua concepção.
Como temos ensinado hoje?
Hoje, no Brasil, as escolas de medicina adotam, em maior ou menor escala, duas metodologias de ensino: a metodologia tradicional e o aprendizado baseado em problemas (problem-based learning, ou PBL).
Metodologia tradicional
A metodologia tradicional é a com maior abrangência nas faculdades de medicina do Brasil, sobretudo considerando as nossas universidades públicas (com algumas poucas exceções). Esse método de ensino é aquele que a grande maioria de nós, creio eu, tivemos contato durante a passagem pelo ensino fundamental e médio, ou seja, que tem o seguinte formato: "um docente A tem um limite de tempo pré-determinado para ensinar um conteúdo B para um número C de pessoas da mesma idade reunidas periodicamente em um mesmo espaço físico".
O papel do aluno nesse método é totalmente passivo, uma vez que ele é responsável apenas por (tentar) assimilar todo o conteúdo transmitido por um professor. O discente, geralmente, não explora na prática a grande maioria do conteúdo ensinado.
Logo, deixar a sala de aula depois de horas sentado ouvindo um docente falar e sem ter retido qualquer informação é algo possível nesse modelo e que eu, como acadêmico de medicina de uma escola alicerçada sobre tal metodologia, convivo diariamente. Inclusive, tão frequentemente que já estou acostumado a estudar sozinho em ambiente separado um conteúdo que está sendo "ensinado" simultaneamente por um professor em sala de aula.
Problem-based learning (PBL)
A outra metodologia utilizada, o PBL, foi introduzida no ensino de Ciências da Saúde em 1969 na McMaster University do Canadá [1].
Ao contrário da forma tradicional, o PBL coloca o aluno no centro do processo de aprendizado, tirando-o da passividade e colocando-o como sujeito ativo. Assim, o professor transforma-se em guia ou mentor, colocando problemas que devem ser discutidos e solucionados pelos grupos de alunos a partir da busca ativa por informações.
Claro que, em alguns momentos de dificuldade, cabe ao professor explicar devidamente conteúdos que, sozinhos, os alunos não teriam capacidade de compreender na sua totalidade.
Logo, os discentes aprendem ao longo do processo de resolução de problemas e não se tornam "reféns da sala de aula". No fim, espera-se que todos os alunos tenham obtido cargas teórica e prática suficientes para resolverem problemas do mundo real.
Coloquemos os pés no chão
Independentemente da metodologia adotada nas escolas de medicina do país, o modelo de ensino, na minha visão, é falho como um todo.
O PBL, por melhor descrito na teoria que o propõe, não consegue apresentar, na prática, todos os possíveis cenários com os quais os futuros médicos e médicas deverão lidar. Aliás, isso é naturalmente impossível. Nem mesmo os profissionais que atuam há décadas conseguem determinar que "viram de tudo"; sempre há casos novos e diferentes.
Já o modelo tradicional, foco principal da minha crítica por eu lidar diretamente com ele no meu cotidiano, foi moldado por sociedades em estágios de evolução distintos do que vivenciamos hoje e, infelizmente, não apresenta capacidade de adaptação veloz e eficiente requerida pelas características que o mundo apresenta aos alunos de hoje.
A sociedade, os discentes, as tecnologias e a disponibilidade de informação não são mais as mesmas de séculos atrás. Os cátedras (como detentores únicos do conhecimento) foram extintos e substituídos pelo conhecimento distribuído.
Por que, então, insistimos em utilizar um modelo antigo para ensinar o novo?
Paternalismo danoso
A principal causa de toda a falha do ensino médico atual, independentemente da metodologia utilizada, do meu ponto de vista, é o paternalismo educacional. Esse é o motivo pelo qual resolvi trazer essa discussão aqui, na Academia, e que me inspirou a compartilhar um momento vivido por mim recentemente no prólogo dessa publicação.
Esse paternalismo ao qual me refiro consiste em práticas que impedem o desenvolvimento ativo, individual e crítico dos alunos ao privá-los do benefício de errar.
Errar é visto como algo negativo e os alunos sempre são punidos quando erram, em maior ou menor escala.
A universidade estabelece um cronograma padrão que vale para todos os alunos justificando ser benéfico para todos da mesma forma - como se todos fôssemos robôs que aprendem na mesma velocidade e por meio do mesmo processo de pensamento. Quando não nos adequamos a ele e erramos somos punidos.
As aulas, por sua vez, têm excesso de informação. Frequentemente os docentes justificam isso com a seguinte desculpa: "isso é importante de aprender". Será mesmo? Será que decorar vias metabólicas inteiras ou todas as áreas de Brodmann para qual cada fibra nervosa vai é realmente importante quando se tem tanta informação disponível para consulta nas palmas das mãos?
Vale mais a pena investir na compreensão e na retenção do conteúdo a qualquer custo (inclusive, colocando em risco a saúde mental e física de alunos e professores) ou no processo intrínseco de aprendizado?
O que podemos aprender com a História?
Analisando essa situação, não consigo evitar pensar em exemplos históricos. Na Grécia Antiga, o método socrático produziu gênios multidisciplinares. Os que queriam aprender, aprendiam muito; e sobre várias coisas.
Platão foi filósofo e matemático. Aristóteles, além de filósofo, estudou sobre física, política, biologia, linguística e economia, entre muitas outras coisas.
Por que sofremos tanto, então, em aprender sobre uma única área do conhecimento? Hoje, com a disponibilidade de informação e o desenvolvimento humano, não deveria ser mais fácil aprender?
Claro que a quantidade de conhecimento produzido desde a Grécia Antiga é enorme e dizer que todos temos capacidade para aprender tudo sobre a medicina ou qualquer outra área do conhecimento seria uma bobagem de tamanho imensurável.
Porém, o que esses dois exemplos de pessoas brilhantes têm em comum e o que podem nos ensinar?
Primeiro, o que eles têm é comum é evidente. Numa época com ausência de livros em abundância e internet, Platão e Aristóteles se desenvolveram com ajuda de um professor que, apesar de fundamental, não determinou o que era ou não importante para eles estudarem.
Aristóteles teve Platão como guia e este, por sua vez, teve Sócrates como mentor.
Esses dois alunos foram instigados a estudarem e a se aprofundarem no que gostavam e julgavam pertinente. Além disso, o erro (a "contradição", denominada por Sócrates) fazia parte da maiêutica. Aliás, era a partir justamente da contradição que todo o conhecimento era "purificado" e "parido", segundo a metodologia socrática (maiêutica deriva justamente do termo grego maieutike, que significa "arte de partejar").
Note que, em comparação com o que temos hoje, houve uma inversão da lógica do processo educativo. E isso tem nos custado muito caro...
Considerando agora o que podemos aprender com esses casos, há várias coisas. Mas se eu pudesse indicar apenas uma, eu recomendaria que mudássemos nossa visão sobre o erro, nos afastando do paternalismo educacional vigente nas escolas de medicina do Brasil.
O erro é sempre fonte de aprendizado. Nenhuma criança aprende a andar sem cair e, no nosso caso, nossos "tombos" devem ser sempre antecipados para que não erremos com o pai, a mãe ou os filhos de outro ser humano.
A universidade deveria, antes de qualquer coisa e antes de qualquer tentativa de implementação de metodologias de ensino, ser um espaço para errarmos, e errarmos o quanto for necessário.
Afinal, Sócrates mudou o mundo ao nos ensinar o valor da contradição e hoje sofremos justamente por invertermos essa lógica: valorizamos processos e pessoas paternalistas que nos dizem apenas como acertar, seja atendendo a expectativa de ficarmos sentados ouvindo discentes falarem por 2 horas (ou muito mais) ou decorando páginas e mais páginas de livros-texto para não sermos punidos com notas baixas que podem manchar nossos históricos escolares.
É um absurdo que alunos de uma graduação tão extensa como é a medicina (sem contar programas de residência que, dependendo da especialidade, demandam o tempo de uma outra graduação) e que deveria prepará-los para lidar com as fraquezas mais fundamentais dos seres humanos se tornem reféns de normatizações que dizem respeito à forma e ao conteúdo que devem aprender.
Nós não somos bobos. Queremos e precisamos cair. Solte as nossas mãos, Ensino brasileiro.
Referência
[1] M. D. C. Borges, S. G. F. Chachá, S. M. Quintana, L. C. C. de Freitas, and M. de L. V. Rodrigues, “Aprendizado baseado em problemas,” Medicina. (Ribeirão Preto. Online), vol. 47, no. 3, p. 301, Nov. 2014, doi: 10.11606/issn.2176-7262.v47i3p301-307.
Quer escrever?
Publique seu artigo na Academia Médica e faça parte de uma comunidade crescente de mais de 160 mil médicos, acadêmicos, pesquisadores e profissionais da saúde. Clique no botão "NOVO POST" no alto da página!