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A medicina do hábito

A medicina do hábito
Emerson Wolaniuk
out. 10 - 6 min de leitura
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Acordar cedo. Tomar café da manhã com a família ou ler o jornal preferido. Exercitar-se por uma hora. Tomar um bom banho, vestir-se com calma. Dirigir-se até o trabalho. Trabalhar durante seis horas em uma cadeira confortável, a 22 graus, com aquilo que amamos. Sair do trabalho ao final do dia, ainda com sol. Chegar em casa e ter tempo de jogar tênis ou ler um romance. Ver um filme no cinema, talvez. Dormir cedo. Dormir 8 horas por noite. Repetir.

Essa rotina lhe parece familiar? Não. Com certeza, essa rotina saudável não lhe é familiar. Parece, inclusive, utópica. Mas, por que, dentre tantas as possibilidades agradáveis de modo de vida, escolhemos justamente o contrário?

Acordar de madrugada, ainda está escuro. Tomar café em pé na cozinha, em 5 minutos. Chegar muito cedo no trabalho, trânsito vencido, mas ainda com algum atraso. A gravata está desalinhada. O sapato um tanto velho. Trabalhar 12 horas em pé ou sentado em uma cadeira de plástico nada ergonômica. Levantar-se mil vezes e sentar-se mil vezes. Atender muitos pacientes. Ser solicitado diversas vezes, seja por colegas de trabalho, chefes ou telefonemas. De jaleco, a temperatura da sala a 29 graus e você está suando às 10h da manhã. Almoçar qualquer coisa, em 15 minutos, ver o feed de notícias do Facebook. A tarde passa rápido demais, seus pés estão doendo. Está escuro, são 19h e você vai para casa. Não quer conversar, está cansado. Vê o feed do Facebook, do Instagram, Gmail, paga contas por aplicativos. Dorme. Mais um dia sem se exercitar. Sua esposa perguntou como foi seu dia, mas você não ouviu. Dormir 5 horas e meia por noite. Acordar num sobressalto, está atrasado novamente. Repetir.

O que nos faz aguentar o tranco de uma rotina extremamente cansativa, mecânica, de alta exigência física, psíquica e intelectual? O que nos faz abrir mão da companhia da família, do ideal da juventude e dos hábitos saudáveis de vida? A resposta é: a recompensa.

A recompensa é pagar as contas em dia, é poder comprar um chocolate e sentir o prazer instantâneo de suas calorias ou do McDonald’s. Aos fins de semana, um prazer mais refinado de um bom restaurante. A recompensa é o sobressalto e a distração etérea de uma nova notificação em seu feed de notícias. Memes: piadas que duram um segundo. Infinitas delas. Está em olhar para o símbolo da Audi no volante do seu carro. Em também ter um iPhone X. Está em se esforçar além dos limites, mas ser reconhecido como o herói trabalhador e salvador de vidas. Abrir mão de tudo em troca dessas recompensas (que inclusive agora lhe parecem fúteis) vira um hábito. E um vício.

Compare os dois parágrafos: o primeiro e o terceiro. Qual deles você preferiria se hoje um anjo de Deus caísse em sua frente e te pedisse, com uma prancheta em mãos, para marcar com um X sua nova opção de vida. Tenho certeza de que marcaria a primeira. E tenho também certeza de que vive a descrita no terceiro parágrafo ou algo muito próximo dela. A resposta para isso está no fato de que hoje sua vida está tão emaranhada nessa rotina de hábitos e vícios que retroceder e recomeçar é um caminho que seu cérebro condicionado está longe de lhe oferecer como opção. Mas é. Você não toma esta decisão porque não quer, e neste momento você pode estar relutando em acreditar nisso. Mas não queremos quebrar ciclos, hábitos, rotinas e, principalmente, vícios.

A exposição a prazeres instantâneos, sejam eles fast foods, alimentos altamente calóricos e açucarados, tabaco, álcool, internet, pornografia, Twitter, Instagram, 140 caracteres, uma foto, uma piada de um minuto, um único movimento: curtir. Repetir. Se isso não se assemelha a um fenômeno de condicionamento pavloviano de macacos ou ratos de laboratório, que recebem uma recompensa cada vez que apertam um botão, vai assustar-se ao pesquisar sobre isso e perceber o que é exatamente o que o mundo está fazendo conosco. Está nos adoecendo pelo hábito.

A humanidade busca o conforto e o progresso como um movimento natural de sua evolução e perpetuação na Terra, mas estamos utilizando a tecnologia da modernidade e dos prazeres instantâneos para nutrir um circuito interno de recompensa em nosso sistema límbico da mesma maneira que um adicto nutre seu vício por cocaína. E nos transformamos em uma máquina de fazer exatamente o que detestamos, sejamos médicos ou não. Vendemos as noites e o conforto de nossos lares em troca de pagar contas e nos distraímos com prazeres tacanhos durante o processo. “Vai valer a pena todo este esforço.” Provavelmente, quando você estiver esgotado aos 35 anos e utilizando uma associação de antidepressivos, remédios para dormir, energéticos, assistindo no espelho sua autoestima devastada por uma cintura abdominal de 110 cm e algumas rugas de preocupação, que preenchimento e Botox poderão resolver.

As férias custam caro. O tempo custa caro. Você não pode, tem que trabalhar. Seus pacientes não podem, têm que trabalhar, mas, mesmo assim, não podem comprar os melhores remédios, ou as melhores comidas. Seus amigos hoje também não podem, estão de plantão. Na sua mesa, talvez um periódico científico que você assina ou que ganhou. Na contracapa: a propaganda do Brintellix. No seu bolso, um iPhone X. Lá fora, um Audi financiado em 48 vezes. Na sua casa, seus filhos crescem vendo TV e comendo bolachas recheadas. As férias na Disney custam caro. Você posta no Facebook. Todos curtem. Você acorda às 5h30, coloca os sapatos de sempre, são 3 xícaras de café todas as manhãs. Repetir. Deixa esse negócio de vida bonita para a propaganda de margarina.


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