São 7h da manhã. Cheguei há pouco no hospital, troquei de roupa e fui acompanhar a passagem de plantão na UTI. Olhamos os pacientes buscando possíveis altas e sinais de alerta, atualizamos fluxos, solicitamos exames e prescrevemos...
É uma sexta-feira. Olho para os ventiladores mecânicos tentando entender o que vejo e aplicar o que tive numa aula. Entre uma atividade e outra penso na vida, nas coisas que precisam ser resolvidas, nas decisões que preciso tomar e na caminhada que tenho feito nos últimos anos.
-Venham ajudar na massagem. Paciente parou.
Inicia-se um corre-corre na UTI. Me dirijo para o leito da paciente que internou no dia anterior. A equipe rapidamente se posiciona e assim como acontecia nas simulações que tive durante os anos anteriores na faculdade cada um assume uma função. A massagem cardíaca é iniciada, dispositivos de oxigenação conectados e logo vejo alguém preparando as drogas que podem ser necessárias.
Dois minutos se passam. Reavaliamos a paciente. Novo ciclo de massagem é iniciado. Segue-se o protocolo de reanimação cardiopulmonar. Os minutos passam. A paciente não reage.
-Quem vai na massagem na próxima troca?
-Eu vou.
Ao fim do ciclo vigente, enquanto o pulso é verificado rapidamente me posiciono ao lado da paciente. Inicio a compressão torácica.
Um, dois, três, quatro, ... Sigo contando em minha mente. Completo as primeiras 30 compressões e enquanto a paciente é ventilada penso apenas nas simulações que realizei na faculdade. Parecia tão mais fácil massagear o boneco. A posição era mais confortável, o esforço era menor, a pressão era fácil de ser conduzida e a morte era apenas uma variável falada. Agora ela está ali, a espreita...
Sigo massageando a paciente. E quando completo os dois minutos e troco de lugar com outra pessoa da equipe percebo como fiquei cansado. Novo ciclo se inicia. Seguimos na massagem, fizemos drogas, choque, tudo o que o protocolo prevê. Chega então o momento sobre o qual li, estudei e debati na faculdade, mas para o qual talvez eu nunca esteja preparado. Continuar ou cessar a reanimação?
Após breve discussão entre a equipe, levando em conta tudo o que nossa paciente passou até ali e como ela ficaria caso retornasse, optamos por cessar as manobras de reanimação. A senhora a quem tentávamos reanimar já não mais ocupa o corpo que está em nossa frente.
-Hora do óbito, 9h51.
Meus olhos enchem de lágrimas de forma automática. Seguro. A equipe retorna para suas funções habituais e a UTI volta ao seu ritmo normal de trabalho. E assim precisa ser. Continuo ali, em frente ao corpo da senhora, apenas olhando para ele. Foi a primeira vez que presenciei o fim da vida. O corpo da senhora começa a ser desinvadido. Observo por um tempo antes de voltar a mim e seguir com as funções do dia. As lágrimas insistem em sair e eu insisto em segurá-las. Apenas penso em quão frágeis somos.
Ontem completou 1 mês que vi aquela senhora partindo. E foi somente ontem que consegui escrever sobre aquele dia.
Algumas experiências mexem tanto com a gente que é preciso esperar que seus efeitos se assentem para que possamos tentar expressar o que sentimos. Um mês se passou, mas algumas lágrimas verteram ao lembrar daquela sexta-feira em que pude acompanhar a volta daquela senhora para casa.