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Altruísmo: uma lição necessária

Altruísmo: uma lição necessária
Leonardo Cardoso
jul. 21 - 7 min de leitura
010

O telefone toca.

-Secretaria Municipal de Saúde, boa tarde, com quem eu falo?

-Aqui é Marta.

Assim começou minha conversa com a senhora de 68 anos que ganhou espaço cativo em minhas lembranças e memórias escritas.

-E no que eu posso ajudar a senhora?

-Esse é o telefone pra gente tirar dúvidas do COVID?

-É sim.

-Então, eu tenho uma dúvida. Eu mando a roupa para lavar fora e ela volta toda limpinha e embaladinha. No entanto, quando as moças da lavanderia vão passar as roupas, as vezes a ponta do lençol encosta no chão. E aí eu estou com medo de pegar o coronavírus por causa disso.

Ouvia atentamente a história contada por minha paciente imaginando que havia algo por trás dessa dúvida. E era esse algo que precisava descobrir.

-Eu saio com todo cuidado. Quando chego em casa tiro da sacola e deixo a sacola na porta. Deixo meu sapato pra fora de casa uns 3 dias antes de guardar na caixa. Deixo os lençóis guardados sem usar por 15 dias. Mas tenho medo. Será que isso é suficiente?

Enquanto ouvia Marta percebi que sua voz se apresentava um pouco alterada. Conseguia ouvir sua respiração entre as palavras. Sabia que ela estava nervosa e ansiosa.

-Dona Marta, posso pedir algo para a senhora antes de conversarmos sobre tudo isso?

-Pode sim.

-Quero que a senhora respire fundo junto comigo. A senhora aí e eu aqui. Vamos lá. De novo. Mais uma vez.

Percebi que aos poucos fui deixando de ouvir sua respiração entre as palavras que falava.

-Dona Marta, primeiramente quero agradecer por ter ligado pra gente. Eu compreendo a senhora e o medo que sente. É super compreensível. Vamos ver como posso ajudar a senhora. Mas, antes da gente conversar, posso fazer uma pergunta?

-Pode sim.

-A senhora tem alguma doença prévia, tipo pressão alta ou diabetes?

-Eu tenho ansiedade, depressão e transtorno bipolar.

Bingo! Descobri o que poderia atuar como um fator a mais no medo de Marta. E, a partir do momento dessa descoberta, sabia que estava diante de uma paciente que precisava de cuidado e atenção especiais.

-Certo D. Marta. Então, a primeira coisa que quero dizer para a senhora é que a senhora não apresenta sintomas, certo?

-Isso mesmo. Não estou com sintomas.

-Isso é muito bom, sabia?

-É mesmo?

-Sim. Isso mostra que a senhora tem tomado os devidos cuidados quando precisa sair de casa. Além disso imagino que dentro de casa esteja se cuidando, se alimentando bem, esteja tentando se proteger ao máximo e com isso proteger o próximo.

Precisava, antes de tirar qualquer dúvida de minha paciente tranquiliza-la e acalma-la sobre a situação que estávamos vivendo.

-Ah... Estou fazendo isso sim meu filho. Quando saio de casa coloco máscara, levo álcool gel. Quando volto deixo o sapato pra fora por 3 dias. Depois limpo ele e guardo na caixa. É bom para proteger, né? Tiro a roupa, coloco pra lavar e já tomo banho. E essa roupa deixo só pra sair de casa. A sacola que vem da lavanderia deixo numa cadeira na entrada de casa para não trazer para dentro. E as roupas e os lençóis deixo guardados por 15 dias antes de usar.

-A senhora está fazendo tudo certo D. Marta. E sabia que eu também guardo meus sapatos nas suas caixas?

-Sério, meu querido?

-Sério. Fica mais fácil pra organizar e pra proteger eles.

-Sim, é muito bom ter as coisas organizadas né?

Um pouco mais tranquila minha paciente começa a se apresentar de forma melhor em sua fala. Percebo que aos poucos ela vai se acalmando, o que deixa minha mente e coração mais tranquilos.

-Desculpe ter te incomodado. Você tem seu trabalho aí. Mas, é que a gente fica sozinha em casa e aí começa a pensar nas coisas, bate a ansiedade...

-D. Marta, eu entendo a senhora. Essa pandemia tem me ensinado muito. Sei bem como é passar pela ansiedade. E por isso não precisa se desculpar. Estou aqui para ouvir vocês e ajudar como for possível.

-Ah... A gente se entende né meu querido?

-Com certeza.

-Certo. Estou um pouco mais calma então. Vou deixar você trabalhar.

-Fico feliz que esteja mais calma D. Marta. Qualquer coisa que precisar pode ligar aqui pra gente.

Faço algumas orientações sobre os cuidados a serem tomados, os sinais de alerta a serem observados e sobre como a respiração pode ajudar ela a se acalmar nos momentos difíceis.

-Como é seu nome mesmo?

-Leonardo.

-Muito obrigado Leonardo! Um beijo!

-Outro para a senhora.

Desligo o telefone. Termino de fazer minhas anotações no sistema que utilizamos para o atendimento e salvo as informações. O telefone toca novamente e inicio o atendimento do senhor que está do outro lado da linha. Em certo momento, ouço alguém me chamando.

-Léo?

Olho para o lado e vejo minha colega.

-Você atendeu alguma Marta?

-Só um minutinho, por favor, seu Roberto.

Coloco a ligação no mudo.

-Atendi sim.

-Ela quer falar com você.

-Certo. Peça para ela aguardar só um pouquinho, por favor, que estou finalizando esse atendimento e já falo com ela na sequência.

Retomo o atendimento de Roberto. Ouço suas queixas, faço as orientações necessárias e quando desligo o telefone descubro que Marta também desligou. Sigo para aquela que seria, então a última ligação da tarde. E enquanto atendo o paciente do outro lado da linha alguém me chama.

-Léo?

Olho para minha outra colega que estava sentada do outro lado de nossa mesa.

-Você atendeu Marta?

Faço um sinal de positivo com a mão.

-Ela quer falar com você.

Com as mãos sinalizo para que minha colega peça que Marta aguarde um pouquinho. Sigo atendendo Ricardo e quando encerro sua ligação vou até o outro lado da mesa. Dessa vez Marta está aguardando.

-Alô, D. Marta?

-Oi meu querido, desculpe te atrapalhar, mas pedi para te chamarem porque gostei de conversar com você.

-Não atrapalha não D. Marta.

-Então, eu queria apenas te contar que estou mais tranquila, mais calma, que respirei fundo e que até liguei lá na lavanderia para passar as orientações que você me deu.

-Que bom D. Marta. Fico feliz com isso.

-Quero te agradecer muito pela atenção, pelo cuidado e pelo carinho. Foi muito bom conversar com você. Seus pacientes devem ter muita sorte por ter um médico como você para cuidar deles.

-Ah... Na verdade eu é que tenho sorte por encontrar pessoas como a senhora nessa caminhada. Muito obrigado mesmo! E qualquer coisa que precisar pode ligar aqui, tá bem?

-Tá bem meu querido. Muito obrigado novamente. Você é um doce!

Desligo o telefone. Olho para a tela do computador enquanto higienizo a mesa. Absorto em meus pensamento lembro de Marta e de vários outros pacientes. Em pensamento agradeço a Deus pela oportunidade de estar trilhando esse caminho. Não é fácil, mas tem valido a pena!

 


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