O parecer técnico e as consequências das condutas realizadas pelo Presidente da República, referente à defesa e ao incentivo do uso da hidroxicloroquina (HCQ) como tratamento ou até mesmo terapia preventiva contra o coronavírus, já é amplamente discutido entre veículos de comunicação, juristas e figuras políticas. Contudo, há uma carência incoerente nos questionamentos àqueles que detém a responsabilidade direta sobre a escolha terapêutica e a deliberação para se prescrever o antimalárico. Cerca de 1/3 dos médicos ainda creem na HCQ como preventora da COVID-19 (pesquisa realizada pela AMB, publicada pelo Estadão 02/02/2021) e optam pela recomendação do medicamento sem gerar qualquer admoestação. O fato de ser, supostamente, o detentor dos conhecimentos acerca da medicina não exime o profissional de ser advertido pela conduta equivocada.
Seduzidos pelo desejo de desfrutar de um prestígio que viria com a solução para um problema mundial, médicos que se lançaram na utilização de HQC no começo da pandemia não demoraram muito para se desiludirem com o potencial terapêutico do medicamento. Entretanto, os que se recusam a perceber que depositaram sua esperança em algo comprovadamente ineficaz – por desorganizações cognitivas geradas pelo excesso de informações injustificadas, falsas, ilógicas que leva o indivíduo a terceirizar suas opiniões e a abster-se de seu senso crítico – ou se amedrontam com a possibilidade de terem sua credibilidade e competência descredibilizada por pacientes que veem a HCQ de maneira dogmática, devem ser responsabilizados à luz da bioética, do Código de Ética Médica e, se necessário, também nas ordens Cível e Penal.
Repleta de discussões a respeito da filosofia moral e da epistemologia, a bioética é uma ciência transdisciplinar atuante na conexão entre a ética e a vida, geralmente ponderando a favor ou contra dilemas ligados à área da saúde e em situações que um ato humano afeta na qualidade de vida de outro. A bioética tem quatro principais axiomas: o princípio da beneficência, não maleficência, da autonomia e da justiça. Em tese, todo médico deveria se alinhar plenamente a esses ideais, e isso implica em não prescrever a HCQ para pacientes com COVID. O princípio da beneficência já foi exaustivamente contestado em periódicos de respaldo e referência internacional (JAMA, NEJM, The BMJ etc.) por ratificar que essa intervenção não altera prognóstico, nem mortalidade, nem mesmo incidência na contaminação. Da mesma forma, o princípio da não maleficência é ignorado devido ao risco de se adquirir alterações cutâneas, arritmias cardíacas, hepatite fulminante, retinopatia em troca de um benefício nulo. Nem mesmo o direito de cada indivíduo escolher, de maneira esclarecida, sobre o tratamento que deseja receber é respeitado, visto que quem deseja esse “tratamento” não está elucidado dos efeitos benéficos e maléficos a ponto tomar uma decisão bem fundamentada, como requer o princípio da autonomia.
Visando defender princípios e aperfeiçoar práticas, o Código de Ética Médica formulado pelo Conselho Federal de Medicina regulamenta as condutas do médico em exercício de sua profissão, e garante penas disciplinares (Art 22 da Lei no 3268/57) caso haja transgressão. Logo no Capítulo I, onde são apresentados os Princípios Fundamentais, nota-se a divergência entre a norma e a prática desse terço dos médicos brasileiros, uma vez que deveriam aprimorar seus conhecimentos e recorrer ao melhor do progresso científico em benefício do paciente (Cap I – V), e exercer a medicina com os meios científicos disponíveis que visem os melhores resultados (Cap I – XXVI). Em uma situação que carece de soluções efetivas, pode surgir a convicção de se utilizar do que for disponível com o pretexto de “tentar de tudo” em meio a tantas falácias sobre supostos benefícios, embasando-se ainda no artigo 32 do CEM, que diz que é vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção e saúde e tratamento em favor do paciente. Todavia, esse artigo destaca a necessidade de haver reconhecimento científico para legitimar tal conduta, além de que tal dever ético não justifica administrar fármacos off label (cuja indicação não consta na bula) com finalidade de “pesquisa” e “teste clínico”, pois tais atitudes violam as diretrizes presentes no Capítulo XII a respeito das normas em pesquisas médicas.
Diante da impossibilidade terapêutica de cura o médico não tem o dever de curar, visto que a recuperação é, na maioria dos casos, espontânea. Acrescentar o risco de iatrogenia sem nenhum benefício justificável – nem mesmo para fins de efeito placebo como amenizador psicológico – pode enquadrar em imperícia médica (Cap III – Art 1). Nessas situações cabe ao profissional o dever de cuidar sintomaticamente do paciente, seja com alívio de dor, suporte respiratório, controle de processos inflamatórios, tromboembólicos, monitoramento, e até para impedir infecções concomitantes. Por fim, destaco o Princípio Fundamental X do Capítulo I que ressalta a proibição de se explorar o trabalho médico com finalidade política, e o Artigo 20 do Capítulo III:
“É vedado ao médico permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do financiador público ou privado da assistência à saúde, interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da sociedade”
Reforçando que além do Presidente da República, os médicos desqualificados devem ser cobrados e devidamente submetidos às penas disciplinares.
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