As Mazelas do Internato Médico
A Situação Atual do Internato nas Escolas Médicas Brasileiras
Por Suelen Nunes
Durante o 50º COBEM, na USP, em São Paulo, ocorreu o V Fórum do Internato. O Fórum teve início com a professora Dione Maciel da Universidade de Pernambuco (UPE) que apresentou o histórico das legislações sobre internato no Brasil. Segundo ela, o estágio profissional se tornou obrigatório em 1969, porém, sem qualquer regulamentação. Já em 1974 a Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) realizou uma reunião com o objetivo principal de definir as características de funcionamento do estágio obrigatório. Para isso, realizou um estudo coma finalidade de diagnosticar o padrão do internato nas escolas médicas do Rio de Janeiro e dos estados do Sul. A carta de conclusão deste trabalho contém o seguinte trecho:
“O objetivo final da educação médica transcende a escola, situa-se no setor social devendo ser definido a termos da melhoria das condições de saúde e bem estar da coletividade.”
Em 1983, o Conselho Federal de Educação lançou uma resolução que ordenava e regulamentava legalmente o internato. Para Dione Maciel, foi fundamental que as escolas e os próprios acadêmicos possuíssem um instrumento para embasar o desenvolvimento e a adaptação do estágio profissional. A docente apresentou, ainda, diversos pontos contemplados pela resolução: a adequação da formação do médico ao processo de promoção, proteção e recuperação da saúde, a contribuição para a humanização da prática médica e a valorização das ações integradas de saúde. Além disso, a resolução apresentava parâmetros pontuais para organizar o internato, como por exemplo, discorrer sobre a supervisão docente e instituir uma relação mínima de um preceptor para dez alunos, estabelecer uma carga horária mínima de 1800 horas, determinar que o cenário de atuação deveria compreender áreas fora do hospital e instituir pediatria, clínica médica, ginecologia, obstetrícia e cirurgia como áreas essenciais de estágio obrigatório.
A professora apontou que a resolução considerava o acadêmico como integrante ativo do atendimento e, por isso, preconizava que houvesse escala de férias para que nenhum serviço fosse prejudicado. Segundo ela, a resolução de 1983 abordava, também, a forma de avaliação, que deveria contemplar conhecimento, habilidades e atitudes do acadêmico.
Porém, em 2001, a resolução de 1983 perdeu a validade com a criação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) que contém um único artigo sobre o internato. O Artigo 7 das Diretrizes define que a carga horária deve corresponder a 35% do total do curso, acresce a Saúde Coletiva às áreas obrigatórias de atuação, determina que o estágio deve ocorrer no três níveis de complexidade e pode conter no máximo 20% de carga horária teórica.
Dione Maciel citou, também, a Lei 11.788 que regulamenta os estágios e legisla sobre o internato.
“O internato possuía uma regulamentação própria que atendia as características do internato no curso médico. Já a lei dos estágios alberga todas as áreas do conhecimento.”
A docente da UPE concluiu que devemos instituir novamente uma regulamentação como a de 1983, que detalhe e defina parâmetros para o funcionamento dos internatos nas atuais 197 escolas médicas brasileiras.
“O que um estudante precisa aprender no internato? É preciso determinar para que a avaliação não se torne aleatória.”
Em 2009, no COBEM Curitiba-PR, reafirmou-se a necessidade de um diagnóstico do internato em todo o Brasil. Então foi elaborado um modelo de questionário digital que pudesse ser respondido tanto pelas instituições quanto pelos próprios internos.
Assim, no mesmo ano, ocorreu uma busca pelo apoio do MEC com o propósito de instituir a obrigatoriedade do preenchimento do formulário por todas as escolas do país o que, segundo Zanolli, não foi possível.
Como alternativa, o questionário foi enviado pela Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), porém houve poucas devolutivas, uma mostra de descaso com a educação médica.
O docente da FAMEMA citou outro projeto da ABEM, iniciado em 2010, que deu origem a uma descrição do desempenho que deve ser desenvolvido nas cinco grandes áreas do internato, além de ter finalizado o questionário de avaliação para as 197 escolas médicas brasileiras. Segundo ele, já foi enviado um convite às coordenações de medicina, para que as escolas participem, agora em uma segunda etapa, da discussão e validação deste projeto. O objetivo final é originar um documento, que será enviado ao MEC, com a sugestão da regulamentação das atividades a serem desenvolvidas pelo acadêmico no internato.
O terceiro palestrante foi Itágores Lopes Souza Coutinho Hoffmann, atual coordenador do curso de medicina da UFTO que relatou a experiência de implementação do internato em uma instituição sem hospital escola próprio. Segundo ele, foi definido um estágio obrigatório de dois anos que contempla as quatro grandes áreas (Pediatria, Ginecologia, Obstetrícia e Cirurgia) e outras três que a instituição julga serem necessárias para formação completa do profissional médico: Urgência e Emergência, Medicina de Família e Comunidade e o Internato Rural. O processo de elaboração e implantação contou com uma Comissão de Internato, composta por docentes de todas as áreas.
“Preconizamos o internato rural, pois o internato não pode desconsiderar a região em que está inserido.”
O coordenador apontou que a definição de quem seriam os preceptores foi um dos maiores desafios. Afinal, os preceptores deveriam ser profissionais que já estavam presentes nos serviços. Ou seja, era preciso convencer o médico a realizar a supervisão acadêmica e realizar a capacitação deste profissional para a docência. A universidade contou com um curso da ABEM para realizar a capacitação e do Grupo Hospitalar Conceição de Porto Alegre no âmbito da Medicina e Família e Comunidade.
Segundo Itágores Hoffmann, era preciso assegurar também a valorização profissional. Assim, foi criado pelo Governo Federal o Pró-Internato, projeto que tem como objetivo assegurar recursos para os cursos que não têm hospital próprio oferecendo bolsas para os docentes. Além desse projeto, a UFTO recebeu também um apoio financeiro do Governo Federal destinado às escolas sem hospital, e proporcional ao número de alunos. A instituição optou por oferecer bolsas para os preceptores distribuídas por concursos descritos em editais referentes a cada grande área do internato.
Em seguida, Gustavo Fraga, coordenador da disciplina da cirurgia do trauma na UNICAMP falou sobre o ensino da urgência e emergência na graduação. Afirmou que a grande preocupação diz respeito aos médicos recém-egressos que não seguem para a residência e optam por trabalhar com a urgência e emergência. A dúvida, para o docente, é se a escola médica está dando uma boa formação para esses profissionais. Como exemplo, citou o resultado da prova do CREMESP de 2006, na qual apenas 40% dos recém-egressos sabiam tratar adequadamente um caso de traumatismo torácico.
Segundo o coordenador da UNICAMP, as Diretrizes Curriculares Nacionais são bastante superficiais sobre a descrição do que deve ser ensinado na graduação. Em um questionário respondido pelos coordenadores de curso da medicina de cerca de 40% das 169 escolas consultadas, os resultados demonstraram que existem grandes divergências no ensino da Urgência e Emergência ente as escolas. Das instituições participantes, 9% responderam que não oferecem atividades teórico-práticas em Urgência e Emergência na estrutura curricular. Quanto a temáticas pontuais, 92% disseram ensinar a abordagem ao paciente com parada cardiorrespiratória e 86% a conduta em caso de hemorragia. Enquanto, no caso do trauma, um dos maiores causadores de óbitos no Brasil, 20% das escolas afirmaram não possuir o tema no programa de ensino.
Para Gustavo Fraga, os campos de treinamento acadêmicos podem ser muito diversificados e compreender cenários como pronto socorro, laboratório de habilidades, SAMU e até mesmo as UPAS. Porém, o que vemos são locais inadequados ao ensino, com ambientes sempre lotados, com falta de preceptores e falta de laboratórios. E sendo o treinamento continuado fundamental para atuação junto à Urgência e Emergência, é preciso um número ainda maior de profissionais que sejam capacitados para a docência nesta área.
Fraga relembrou os quatro projetos da ABEM 50 anos que compreendem: o teste de progresso, as formas de avaliação, o internato médico e o ensino de Urgência e Emergência. Assim, todas as escolas médicas devem estar atentas, pois podem fazer parte da formulação destes projetos com um representante docente e um discente.
“As Diretrizes Curriculares Nacionais preconizam a formação do generalista. E eu, enquanto estudante de medicina, estou inserida entre os quatro muros do hospital universitário.” - Diz a acadêmica Raquel Carvalho de Souza.
Segundo ela, a aderência precoce do estudante de medicina aos cursinhos para a residência influencia diretamente no aproveitamento das atividades propostas para o internato. Afirmou ser comum ver acadêmicos que priorizam o estudo focado para as provas de residência a invés da formação de habilidades e competências desenvolvidas no período do estágio obrigatório.
Raquel de Souza apontou, ainda, os conflitos da convivência entre internos e residentes na mesma área de prática. Questionou quais as atribuições específicas do interno e do residente dentro do funcionamento do serviço de saúde. Segundo a acadêmica, a disputa pela execução de procedimentos e atuação tem origem principalmente na qualidade do estágio obrigatório que o recém-egresso vivenciou. Com isso, o profissional que se forma sem ter desenvolvido habilidades básicas à formação do generalista como, por exemplo, a realização de partos normais de baixo risco, chegará à residência querendo desenvolver estas competências e disputará espaço com os internos as práticas do serviço. Dessa forma, se houvesse uma regulamentação comum para o internato no país haveria uma distinção mais clara na atuação de internos e residentes.