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Bioética e Ética Médica

Bioética e Ética Médica
Hélio Angotti Neto
mai. 3 - 12 min de leitura
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Desde a década de 60, quando o termo Bioética surgiu dentro da Academia e foi utilizado em livros, a área multidisciplinar que estuda questões acerca da vida humana, da intervenção profissional em saúde e da relação do homem com o ambiente não para de crescer. Alguns programas, como o do Conselho Federal de Medicina, contam inclusive com participação internacional de nossos colegas de Portugal.[1]

Há quem enxergue na Bioética uma ameaça à Ética Médica tradicional. Outros veem nela algo necessário para contextualizar e promover o diálogo de uma ética profissional específica com a sociedade não especializada.

Num ponto estão certos os que promovem a Bioética: a ética profissional não é uma ilha, e os valores da sociedade permeiam a prática médica de forma inquestionável. A perspectiva pela qual uma sociedade enxerga o mundo inevitavelmente influenciará a Medicina e vice-versa.

Mas quais são as principais formas de enxergar a Ética Médica e a Bioética? Quais são as escolas de Bioética? Qual a influência da Bioética em nossas vidas? Como a Bioética pode nos ajudar a entender melhor o paciente, a profissão e a sociedade? Quais os principais avanços no campo da Bioética e da pesquisa eticamente controversa? Estas e outras perguntas serão repetidas e respondidas ao longo de nossos encontros na Academia Médica.

Porém, antes de iniciarmos com as novidades no campo da Bioética, ressalto que todo médico é inevitavelmente comprometido com uma ética. O que isso quer dizer?

Quer dizer que somos profissionais. Nós professamos algo.

Se perante a burocracia estatal o que nos capacita a usar o título de médico é um diploma, perante a história de nossa profissão e, muitas vezes, até mesmo perante a sociedade, o que nos capacita é uma mistura entre certificação formal e adesão a um corpo determinado de nobres valores e práticas.

Na qualidade de profissionais juramentados, nós assumimos um compromisso profundo com a sociedade, com nosso próprio ser e até mesmo com o aspecto transcendente de nossas vidas.

Há um compromisso para toda a vida e uma responsabilidade em usar de forma correta o conhecimento e a técnica adquiridos, cumprindo os três aspectos da ação humana já delineados por Aristóteles: a ciência (Episteme: o conhecimento), a técnica (Tekné) e a prática (Práxis ou Ethos: aspecto ético).[2]

E para aqueles que afirmam faltar tempo ou paciência para meditar sobre aspectos éticos, uma verdade incontornável precisa ser dita: a Ética faz e fará parte de sua vida profissional para sempre. Desde o início da Medicina compreendida como profissão, o médico capaz de meditar acerca da Ética, isto é, almejar a condição de filósofo, sempre foi visto com admiração em reconhecimento à valiosa colaboração entre Arte Médica e busca pela Sabedoria.

Sejam bem-vindos ao estudo da Ética Médica e da Bioética.

Entre Gregos e Romanos

Nosso novo – nem tão novo assim, vamos lá – Código de Ética Médica[3] traz o rosto de uma curiosa figura mitológica e permite uma série de interessantes análises simbólicas. Lá não está Hipócrates, tampouco um médico anônimo de nossos tempos. Lá está o rosto de Janus, o deus de duas faces dos romanos.

Há algumas curiosidades acerca do antigo deus das duas faces. Ele é exclusivo dos romanos[4] e representa a transição, um rosto que olha para o passado e outro para o futuro, como se preparasse a mudança, o início de um novo tempo.[5] E, realmente, a proposta ética para muitos é esta: mudar, ou quebrar, antigos paradigmas.

Para os romanos, principalmente os mais cultos, que reclamavam da presença massiva da cultura grega entre eles, um deus próprio poderia até ser motivo de orgulho. Talvez tal sentimento de orgulho com a mudança de padrões também possa despertar muitos corações ainda hoje.

Nas redes sociais vemos exemplos interessantes da ideologia de mudança e transição compartilhada pelo Conselho Federal de Medicina.

Um exemplo recente é o dizer abaixo:

“O Código representa a introdução da medicina brasileira no século XXI. As regras ora delineadas confirmam no presente o reconhecimento de que o mundo e o homem mudaram. [6]”

Reflito e chego à seguinte conclusão: sim e não.

Há algo no ser humano que não muda, e é isso o que torna as humanidades essencialmente diferentes da ciência moderna.

Se a tecnologia e nossas condições sociais estão sempre mudando, e requerem as constantes atualizações que se deram nas diversas transições de épocas vividas pelo homem, o mesmo não pode ser dito do caráter do ser humano, pelo menos nos últimos milênios.

O sofrimento, o medo da morte, a fragilidade, o anseio pela mão caridosa de um médico amigo, a confiança depositada naquele que se oferece para ajudar... são experiências universais e presentes em todos os períodos históricos da humanidade.

O mais correto talvez seja misturar Parmênides e Heráclito e compreender que, se por um lado, todas as coisas mudam o tempo todo, por outro lado, o ser humano ainda é o mesmo que foi há tanto tempo.

Vivemos diferentes conflitos em diferentes épocas, mas podemos compreender a alegria e o sofrimento de nossos semelhantes em todos os tempos por manter algo em comum, algo de universal em relação a eles.

Voltando às posturas de mudança ética do Conselho Federal nos últimos anos, podemos destacar posições que realmente quebram totalmente a herança grega e cristã da medicina ocidental. Propostas de legalização do abortamento até a décima segunda semana e adaptações do famigerado protocolo Groningen (de eutanásia infantil) já foram sugeridas pelo nosso órgão máximo de representação ética.[7]

As sugestões não emplacaram, tampouco foram unânimes entre os Conselhos Regionais[8], mas deixaram claro que diversos médicos enxergam novos tempos nos quais os valores mudaram e, portanto, os homens e as sociedades também mudaram. Para eles, talvez a boa medicina seja algo bem maleável e socialmente definida em sua maior parte.[9]

Talvez muitos pensassem, nos tempos que nos precederam, que as ideias pitagóricas (precursora ideológica dos hipocráticos) e cristã de que toda vida humana era preciosa, digna e até mesmo sagrada eram revolucionárias, e de fato o foram e ainda o são.

Hoje muitos julgam ultrapassadas tais ideias que moldaram a medicina hipocrática e cristã, e podem advogar, conscientemente ou não, um retorno parcial aos tempos pré-cristãos em termos de valorização da vida humana. A pressão mundial para a relativização do valor da vida humana, para a liberação do abortamento, do homicídio infantil[10] e da eutanásia de crianças e idosos é monstruosa e massiva.[11]

Não ouso aprofundar ou abordar diretamente aqui a complexa discussão sobre aborto ou eutanásia, mas lembro que se alguém tem o direito de matar ou morrer, outra pessoa deverá ser responsável por executar o ato terminal. E preocupo-me em ver o médico contemporâneo como o responsável por encerrar vidas.[12]

Toda a discussão sobre o quanto defendemos a vida pode parecer muito abstrata para alguns, mas são essas questões as cruciais para a definição de que tipo de civilização nós queremos ser, e que tipo de legado cultural e moral deixaremos aos que virão.

Sei que ao escrever isso passo por reacionário para os muitos empolgados com medidas tão defendidas pela Organização Mundial de Saúde e pelas organizações como a Planned Parenthood[13], mas o bom sabedor de história antiga compreende que poucas coisas foram tão novas, revolucionárias e assustadoras quanto a medicina hipocrática ou o compromisso cristão com o ser humano, verdadeiros precursores dos nossos direitos humanos.

Talvez Janus, se olhasse para nossos tempos de mudanças éticas civilizacionais, questionasse como alguns hoje ainda desejam regressar aos velhos hábitos espartanos[14], deixando para trás as novidades pitagóricas e judaico-cristãs.[15]

Como dizia Salomão em seu Eclesiastes, nada há de novo debaixo do sol.[16]

Concordem ou não, pessoalmente, eu prefiro a efígie do bom e velho Hipócrates, respeitado até mesmo entre os cristãos da Idade Média, ao rosto bifronte de Janus. Mas teremos muitas oportunidades para compreender melhor quais os novos e antigos desafios que a Bioética nos traz.

 

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[1] CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Novos alunos recebem orientações sobre doutoramento em Bioética. 30 de abril de 2015. Disponível em: <http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=25485:2015-04-30-19-27-05&catid=3:portal>. Acesso em: 03 jan. 2016.

[2] ADLER, Mortimer Jerome. Aristóteles para Todos: Uma Introdução Simples a um Pensamento Complexo – Coleção Educação Clássica. São Paulo, SP: É Realizações, 2010.

[3] Cf. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Código de Ética Médica. RESOLUÇÃO CFM Nº1931/2009. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/novocodigo/integra.asp>. Acesso em 03 jan. 2016.

[4] Ao contrário de outros deuses como Zeus, que tinham sua representação alternativa em outra cultura na forma de Júpiter.

[5] “Why then is it said that the beginnings of things belong to him”. Cur ergo ad eum dicuntur rerum initia pertinere. Cf. AUGUSTINE. City of God, Volume II: Books 4-7. Translated by William M. Green. Loeb Classical Library 412. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1963, p. 398-399.

[6]Negrito destacado por mim.

[7] Assunto já abordado pelo Academia Médica em: <http://academiamedica.com.br/discussao-descriminalizacao-do-aborto-ate-a-12o-semana-de-gestacao/>.

O Conselho Federal de Medicina expõe sua justificativa em: <http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23663:cfm-esclarece-posicao-a-favor-da-autonomia-da-mulher-no-caso-de-interrupcao-da-gestacao&catid=3>.

E a postura é criticada pelo jornalista Reinaldo Azevedo em: <http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/cultura-da-morte-maioria-do-conselho-federal-de-medicina-apoia-descriminacao-do-aborto-ate-12a-semana-de-gestacao-assim-tambem-ela-acha-a-exemplo-de-certa-comissao-que-feto-de-gente-e-in/>.

Acessos em: 03 Jan. 2016.

[8] Como debatido no I Seminário UNESC de Humanidades Médicas, em 2013. Cf. ANGOTTI NETO, Hélio (org.). Mirabilia Medicinæ 1, I UNESC Seminar of Medical Humanities, 2015.

[9] PELLEGRINO, Edmund D. “Philosophy of Medicine: Should It Be Teleologically or Socially Constructed?” Kennedy Institute of Ethics Journal, Volume 11, Number 2, June 2001, p. 169-180.

[10] Como descrito no livro “A Morte da Medicina”, lançado pela Vide Editorial.

[11] ROCCELLA, Eugenia; SCARAFFIA, Lucetta. Contra o Cristianismo: A ONU e a União Européia como Nova Ideologia. São Paulo: Ecclesiae, 2014.

[12] Preocupação antiga, como descrito no livro publicado no final dos anos 70. Cf. KOOP, C. Everett; SCHAEFFER, Francis A. Whatever Happened to the Human Race. Wheaton, Illinois: Crossway, 1983.

[13] Recentemente exposta num escândalo relacionado à venda de partes fetais obtidas em abortamentos. Cf. CENTER FOR MEDICAL PROGRESS. The Human Capital Project. Disponível em: <http://www.centerformedicalprogress.org/>. Acesso em 03 jan. 2016.

[14] Conhecidos por seus hábitos de homicídio infantil e eutanásia, arremessando do penhasco crianças e velhos frágeis.

[15] Sobre a evolução da Ética Médica, sugiro consultar a obra: JONSEN, Albert. A Short History of Medical Ethics. New York: Oxford University Press, 2008. Sobre os laços entre Hipocratismo e a escola pitagórica, sugiro a leitura de EDELSTEIN, Ludwig. Ancient Medicine: Selected Papers of Ludwig Edelstein. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1987.

[16] Eclesiastes 1.9. “O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol.”

 


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