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Carlos Chagas - Um nobre sem Nobel!

Carlos Chagas -  Um nobre sem Nobel!
Luan Gustavo
jul. 12 - 57 min de leitura
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No meu terceiro texto publicado na Academia Médica, eu conto a história do médico Carlos Chagas, um dos brasileiros que chegaram perto de ganhar o prêmio Nobel mas acabaram não sendo laureados. No início do século XX, em MG, ele faz uma das grandes descobertas da ciência brasileira, elucidando todo o ciclo de uma parasitose, que afeta principalmente o coração, a Doença de Chagas. O sanitarismo rural brasileiro também é abordado. Além disso, eu discuto duas representações literárias do homem do campo, a primeira através do olhar do escritor Monteiro Lobato em seu personagem Jeca Tatu. A segunda, através da visão de Euclides da Cunha, em seu livro de 1902, Os Sertões.


Caso queira, você pode ouvir esse texto no seu agregador de podcast favorito. Busque por @historynemia

Carlos Chagas nasceu no dia 9 de julho de 1878, na cidade de Oliveira Minas Gerais, na verdade ele nasceu na fazenda Bom Retiro, uma fazenda que produzia gado de corte, café, cana de açúcar e ficava a uns 20km da cidade.

Seu pai se chamava José Justiniano Chagas e sua mãe, filha de fazendeiro grande, se chamava Mariana Cândida Ribeiro de Castro. Com apenas 4 anos de idade, ele perdeu o pai e a mãe dele passou a cuidar não só do filho, como também assumiu o controle tanto da fazenda Bom Retiro, do pai dela, quanto da fazenda Bela Vista, perto de Juiz de Fora, que era propriedade do casal.

Com 8 anos de idade ele começou a estudar num colégio jesuíta em Itu, no interior de São Paulo, era uma escola muito rígida, tinha um ensino de alta qualidade mas exigia muita disciplina dos alunos e o Carlinhos acabou sendo expulso da escola por indisciplina. Ele continua os estudos em São João del Rey em Minas, termina lá algo equivalente ao ensino médio e depois ele parte  pra Ouro Preto, a histórica cidade de Minas Gerais que atualmente é famosa também pelo seu carnaval, que é muito agitado dura vários dias atrai vários turistas.

Provavelmente a agitação da cidade não é coisa recente e não necessariamente só em períodos de carnaval, em 1895 o Chagas chega lá pra fazer tipo um cursinho pré-vestibular pra engenharia e segundo os relatos ele entra na bohemia, acaba tomando bomba nos exames e volta pra Oliveira, a cidadezinha onde ele nasceu.

Lá ele tinha um contato bem próximo com seus tios, e um deles o tio Calito era médico formado no Rio de Janeiro, e desde pequeno, o Chagas pela convivência com ele já tinha uma quedinha pela medicina, engenharia era uma vontade da mãe dele, e o tio então sugere então que ele vá pra capital, Rio de Janeiro e comece a estudar medicina lá, e é isso que o ele faz. 

 

No ano de 1897 o Chagas começa estudar na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, uma das poucas do Brasil. A medicina, as ciências da saúde como um todo, a nível global vinha passando por mudanças extremamente relevantes para sua história, poucas décadas antes os caras tinham derrubado a teoria miasmática, comprovando que microorganismos estavam causando doenças. Os miasmas são algo como vapores da atmosfera, odores fétidos, poluição, algo até meio místico se a gente quiser. Por vários séculos, milênios até, essa foi considerada a principal causa de tudo quanto era doença.

Os estudos do alemão Robert Koch, do Louis Pasteur, o advento da anestesia, Joseph Lister e seus métodos de antissepsia, eram coisas muito novas no fim do século XIX, e início do XX e se a gente quiser relacionar com toda a história da medicina até hoje, essas coisas começaram tipo, ontem.

A faculdade de medicina do Rio de Janeiro, a Escola de Cirurgia da Bahia, que foi a primeira do país inaugurada em 1808, hoje é a UFBA, se preocupavam em acompanhar essas mudanças. Nas universidades europeias vinha surgindo um conceito de medicina tropical, que segundo eles se tratava do estudo de enfermidades que atingiam somente aos trópicos, tipo cólera, malária e febre amarela, que são doenças transmitidas por insetos.

Balela pura isso, essas doenças sempre existiram na Europa também, sempre foram muito nocivas naquela região, esse termo de medicina tropical é um tanto quanto impreciso, parte de um princípio eurocentrista que muitas vezes tenta enfermar os trópicos, a Ásia, ou serve de desculpa pra invasões colonizadoras, enfim. A medicina clínica, experimental, o laboratório, estavam florescendo no mundo e o Brasil vinha acompanhando essas tendências.

Para a conclusão do curso de medicina, que durou entre 1897 e 1903 o Carlos Chagas precisava de uma tese de doutoramento, como se fosse um TCC, durante o curso ele se aproximou de dois professores: Miguel Couto e Francisco Fajardo, essas caras foram muito importantes pra vida científica do Chagas, eles eram microbiologistas. Para escrever sua tese e realizar suas pesquisas, o Chagas começa em 1902 frequentar o Instituto Soroterápico Federal, que também era conhecido como Instituto Manguinhos e atualmente se chama Fundação Oswaldo Cruz, a nossa querida Fiocruz. Sendo orientado pelo Oswaldo Cruz, ele estuda os efeitos da malária no sangue, em 1903 defende sua tese e em seguida recebe seu diploma.

Cruz gostou do trabalho do moleque e até chamou ele pra seguir em Manguinhos como pesquisador, mas o Chagas queria mesmo era clinicar, então ele passou a trabalhar no hospital Paula Cândido em Niterói e também tinha um consultório particular no centro do Rio.

Agora, pensa numa cidade tumultuada era o Rio de Janeiro no início do século XX. A então capital federal, sob o comando do presidente Rodrigues Alves e do prefeito Pereira Passos, a exemplo de cidades europeias como Paris, Barcelona, Londres, passava por um momento de sanitização, vinha tentando se modernizar, se urbanizar, e por ter sido feito de uma forma mal planejada, ou mau executada, esse movimento de gerou diversos efeito colaterais, desapopriações, esse evento contribui também para o início da favelização do Rio de Janeiro, em 1904, por exemplo, houve também a revolta da vacina, um episódio extremamente conturbado onde basicamente o Estado obriga as pessoas a se vacinarem a força, em um cenário onde população média da cidade nem sequer sabe o que é uma vacina, pra que serve, como funciona, isso gera várias mortes é algo que vai muito além do ato da vacinação em si.

Paralelamente a isso, havia um campo de estudos que vinha se desenvolvendo a passos largos no Brasil, os chamados estudos entomológicos, que visam entender os insetos, suas relações com o meio ambiente, com as plantas e até com os seres humanos, doenças,o Instituto Manguinhos e seus pesquisadores eram muito solicitados, para o combate a malária que era um problema seríssimo no Brasil. No início do século XX o instituto realizava várias atividades que eram muito importantes para o desenvolvimento da ciência brasileira como um todo, eles produziam vacinas, e produzem até hoje, realizavam esses estudos entomológicos, e também tinham uma relação íntima com o desenvolvimento econômico nacional. Além dessas atividades que eu disse e muitas outras, os caras realizavam várias expedições por todo o território nacional, viagens mata adentro pelos interiores do Brasil. Quais eram os objetivos dessas viagens?

Sezão, febre palustre, febre intermitente, maleita, impaludismo e vários outros nomes que dizem a mesma coisa: malária! Esse era o principal motivo, os caras estavam sempre atrás de descobrir uma forma eficaz de profilaxia, isto é, uma forma de prevenir a enfermidade, além de tratar os que adoeciam. Podemos dizer tranquilamente que o motivo é econômico. 

Segundo um médico estadunidense que trabalhou um tempo em Porto Velho durante a construção da e Estrada de Ferro Madeira Mamoré, Carl Lovelace,  as doenças da região, principalmente a malária, reduziria a produtividade de um trabalhador pela metade 6 meses depois que ele chega pra trabalhar, um mês depois o trabalhador já pede atendimento médico. Segundo ele, que chega nas obras da ferrovia em 1908, a média de permanência de um trabalhador na construção da da linha era de 3 meses. Ainda que a taxa de mortalidade fosse relativamente baixa, 0,5% segundo o Oswaldo Cruz, os que adoeciam chegavam a 90%. Isso significa que pra Ferrovia da Morte, Ferrovia do Diabo, esses eram alguns dos apelidos dados a estrada de ferro, continuar sendo construída, essas enfermidades deveriam ser evitadas, não só a malária, mas também outras parasitoses, enfermidades bacterianas, víricas. Tinha de tudo!

O Oswaldo Cruz, por exemplo, em 1909 foi contratado pela Madeira-Mamoré Railway Company, responsável pelas obras da ferrovia, o Carlos Chagas em 1913 vai pra Amazônia em nome da Superintendência de Desenvolvimento da Borracha, os seringueiros.

Mas os caras não iam só pro norte, os médicos Carlos Neiva e Belisário Penna em 1912 percorrem as margens do rio São Francisco e Tocantins em nome da Inspetoria de Obra Contra as Secas, o instituto atuava em expedições sanitárias pelo nordeste, baixada fluminense, sudeste, vários outro lugares.

Uma dessas viagens que nos interessa bastante pra esse episódio, acontece no mês de junho de 1907. O Carlos Chagas parte junto com o Belisário pro norte de Minas Gerais, existia um projeto para expansão das obras da estrada de ferro Central do Brasil, a ferrovia já existia desde meados do século XIX e o desejo era dar uma ampliada nela, um projeto bem ambicioso que visava chegar de pouco em pouco desde de o Rio de Janeiro, até Belém do Pará, mas que nunca chegou.

Dentre as diversas expedições que ele realizou em nome do Instituto Soroterápico Federal, aqui está uma muito especial na biografia do Carlos Chagas, que foi essa viagem realizada para a cidade de Lassance em Minas Gerais. Nesse trecho da ferrovia que ficava perto da cidade de Pirapora, as obras não estavam conseguindo avançar justamente por conta de uma epidemia de malária. A intenção dos expedicionistas era basicamente orientar a população sobre as formas de prevenir a doença, um papel educativo, buscar por alguma nova espécie de mosquito e tratar quem já estivesse enfermo.

A prevenção era basicamente mosquiteiro, aquelas telinhas fininhas nas janelas e nas portas das casas, e se possível também em cima da cama, eles também adicionavam substâncias tóxicas contra a larva dos insetos nos reservatórios de água, com o tempo, mais recentemente, foram sendo desenvolvidos inseticidas pra jogar no ar, tipo aquele carro do fumacê, que visa o mosquito em sua fase adulta. No estado do Paraná, uma das medidas profiláticas contra a doença do barbeiro era a demolição das casas rurais, juntamente com a imposição de normas que deveriam ser seguidas por quem quisesse construir uma nova casa. Agora, se o morador receberia ou não outra residência eu não consegui apurar. E não me surpreenderia nem um pouco se eles não recebessem uma nova construção e simplesmente fossem deixados a Deus dará. Outra medida de prevenção era pedir pra os moradores tomarem quinino, essa substância servia tanto para profilaxia, quanto para o tratamento, era extraída da casca de uma árvore chamada Quina. Essa substância está também relacionada com o remédio hidroxicloroquina, que trata malária até hoje, e que foi envolvido numa série de polêmicas relacionadas ao coronavírus.

Quando os viajantes chegaram em Lassance, Chagas logo montou um laboratório meio improvisado no vagão de um trem que estava lá parado e de vez em quando ele ficava lá tentando descobrir alguma nova espécie, algo novo, e logo ele consegue. Ele achou no sangue de um macaquinho típico da região um tipo de parasita que ele batizou de Trypanosoma minasense, é um parasita que vive harmonicamente no sangue dos saguis e não lhes causam nenhuma enfermidade

O chefe dos engenheiros da linha férrea se chamava Cornélio Homem Catarino Motta, e ele comentou com o pessoal que recém havia chegada que tinha um bicho por ali, como se fosse um besouro, que costumava sugar o sangue dos moradores enquanto eles dormiam, o pessoal da região chamava o inseto de barbeiro, uma vez que ele preferia picar o rosto das pessoas, o Penna fica intrigado com a história e captura um exemplar do inseto. O Chagas então resolveu estudá-lo, e encontrou no intestino do inseto um parasita, igual ou bem parecido com o que ele havia identificado no sangue do macaquinho, ele achou até que se tratasse da mesma coisa, mas como ele não tinha estrutura suficiente alí pra continuar as pesquisas, ele enviou amostras pro Rio, e o Oswaldo Cruz infectou alguns macacos de laboratório que acabaram adoecendo e que continham tais parasitas circulando pelo sangue. Chagas volta pra manguinhos, realiza novas pesquisas e percebe que se trata de uma nova espécie de Trypanosoma, que ele batiza  Trypanosoma cruzi em homenagem ao próprio Oswaldo Cruz.

Depois de um tempo, ele volta pra Lassance pra verificar se esse tipo de parasita é capaz de causar doença em humanos, ele realiza exame de sangue em alguns moradores e acaba achando, a princípio no sangue de um gato, o mesmo trypanosoma e no dia 14 de abril de 1909, ele finalmente encontra o parasita no sangue de uma criança de dois anos que estava doente: a menina Berenice. Ele comunica sua descoberta à revista Brazil-Médico. 

Esse, é considerado o grande trampo do Carlos Chagas, ele é considerado o primeiro cientista a descobrir sozinho o ciclo completo de uma parasitose. Isso é algo grandioso, tanto que ele foi indicado duas vezes a receber prêmio Nobel de medicina.

Veja, ele acha o vetor, o barbeiro, que tem a capacidade de transportar o parasita causador da doença, e acha o próprio parasita dentro do inseto. Mas também não é que ele tenha descoberto isso do nada ou que ele tenha sido um homem muito à frente de seu tempo e viu algo que estava na nossa cara o tempo todo, mas nós como meros mortais não conseguimos identificar. 

Ainda que o feito dele tenha sido incrível, digno de um Nobel, esse tipo de transmissão vetorial, mediada por insetos, já já eu vou explicar melhor, é um conhecimento já existente quando Chagas faz suas descobertas, a malária por exemplo é transmitida dessa forma, no caso é um mosquito, o Anopheles, que leva o plasmodium, o parasita, de um mamífero pra outro, e o ser humano infelizmente está na rota desse delivery e acaba adoecendo, o Chagas tinha amplos conhecimentos sobre a malária, diga-se de passagem, ele conclui a faculdade realizando estudos sobre a malária em manguinhos, então o que ele faz é incrível, sem dúvidas, mas ele também comete alguns erros, a princípio ele crê que o bócio, uma hipertrofia da glândula tireóide, que deixa o pescoço muito inchado, é causada pelo parasita, mas alguns estudos da época indicaram o contrário e pra ele tudo bem se isso estiver errado, ele deixa a questão em aberto, hoje está claro que não há relação com o parasita.


Mesmo assim ele descobriu tudo sozinho! Ok, mas quem fala pra ele sobre uns tais insetos que andam picando as pessoas é o engenheiro Cornélio Motta, quem captura o barbeiro é o Belisário Penna, ele manda a amostra de sangue pro Rio de Janeiro, é Oswaldo Cruz quem inocula nos macaquinhos de laboratório. Eu não quero desmerecer a descoberta, de forma alguma, eu adorei passar uns dias com ele durante as pesquisas pra construir esse episódio e acho que ele deveria sim, ter ganhado o Nobel, aparentemente ele era uma pessoa boa, um ótimo professor. Mas sem essa bobagem de gênio revolucionário à frente de seu tempo, um homem incompreendido, isso é exagero e até um desserviço.

Os pesquisadores também divulgaram internacionalmente a descoberta, Alemanha, França. Na própria Academia Nacional de Medicina, Cruz fala sobre a descoberta, em 1910 e o Chagas também acaba se tornando titular da academia.


Caso você esteja se perguntando tá, mas como funciona, o que é a doença de chagas exatamente? A Tripanossomíase americana, se trata de uma enfermidade infecciosa que 100 anos atrás era transmitida principalmente pelo barbeiro, esse inseto que é tipo um besouro, o acometimento humano é na verdade um acidente de percurso.

Nas áreas endêmicas existia, ou existe ainda que em pouca quantidade, atualmente está bem controlado no Brasil, no sangue de alguns animais domésticos e silvestres um parasita, o tal Trypanosoma cruzi, que vive em harmonia com esses animais, pode ser um tatu, um macaco, cachorro, gato, qualquer mamífero, sem necessariamente adoece-los. Por outro lado existe também o barbeiro, um inseto hematófago, quer dizer, o inseto se alimenta de sangue, preferencialmente mamíferos. Se o barbeiro vê um gato, por exemplo, dormindo de bobeira, o barbeiro vai e pica o gato e começa a chupar o sangue dele, infelizmente esse gato continha o parasita na sua circulação sanguínea. O gato acorda, espanta o inseto. Uma vez que o barbeiro chupou o sangue infectado do gato, o parasita vem junto e começa a morar no intestino do inseto, vive ali, se multiplica, também sem causar nenhum tipo de dano a esse inseto.

Esse mesmo barbeiro, uma hora vai sentir fome de novo, fome de sangue, só que dessa vez ele não acha nenhum gato ou cachorro moscando por aí, mas ele vê que tem um homem ali dormindo, um ser humano e resolve chupar o sangue desse ser humano. Ao mesmo tempo em que o barbeiro está chupando o sangue do ser humano ele fica muito cheio e defeca. Dessa vez o cara não acorda na hora, o barbeiro enche o buxo e sai voando. No outro dia pela manhã o cara acorda, tem uma irritaçãozinha ali pelo rosto e acaba se coçando, nessa que ele se coça ele acaba jogando as fezes que estavam por ali, dentro do buraquinho que foi feito na hora que barbeiro picou, a própria corrosão da pele pela unha também acaba se tornando uma porta de entrada.

A partir daí o parasita que estava nas fezes, que estava no intestino do inseto se multiplicará e se não houver um tratamento objetivando matar esse parasita, de preferência nos primeiros dias após a picada, na fase aguda, é bem provável que o parasito viverá dentro desse ser humano pelo resto de sua vida. Alguns pacientes entram na chamada fase indeterminada da doença, aqui a gente consegue comprovar a existência do parasita no indivíduo mas ele não apresenta nenhum sintoma, leva uma vida normal, em equilíbrio com o T. cruzi. O problema é que pelos próximos 30-40 anos, esses indivíduos têm uma maior chance de desenvolver sérios problemas cardíacos, que são capazes de fazer o coração ir perdendo sua funcionalidade, até não dar conta mais de bombear o sangue. Uns 30 ou 40% desses pacientes, que a princípio não apresentavam nenhum sintoma, vão chegar a essa situação, um número bem alto. 

Então é tipo assim, às vezes a gente tá lá no plantão aí chega uma pessoa, sentindo uma dorzinha inocente, por protocolo a gente acaba submetendo o paciente a um eletrocardiograma. De repente gente nota um padrão das ondas do ECG que podem indicar doença de Chagas, isso acende um sinal de alerta e nós perguntamos de onde a pessoa veio. Geralmente a pessoa nasceu numa área endêmica, talvez pela amazônia, mais pelo norte do Brasil. Se o paciente nasceu, ou morou em alguma dessas áreas endêmicas, ou que já foi endêmica um dia, aí nós precisamos investigar mais de perto, e se comprovada a existência do parasita, seja através de exames laboratoriais que identificam anticorpos ou às vezes o próprio Trypanosoma pode ser encontrado, nós iniciamos um acompanhamento anual ou bianual desse paciente, sempre procurando antever alguma eventual complicação. Aqui já não existe mais a possibilidade de cura, também não quer dizer que o paciente sofrerá as consequências indesejadas, mas a gente deve sim acompanhar mais de perto.

O principal barbeiro, o que mais tem a capacidade de transportar o parasita no intestino, é chamado de Triatoma infestans, e ele é considerado um vetor, ele tem essa capacidade de carregar o parasita de um para outro mamífero, nesse exemplo que usei ele pega de um gato e leva pra um ser humano, mas o contrário também pode acontecer também poderia acontecer entre tatu e raposa, por exemplo. A doença de Chagas, pode se manifestar de algumas maneiras diferentes, não só no coração, mas também o sistema digestivo pode ser o alvo. No coração que é o principal órgão acometido, com o passar dos anos pode ocorrer a chamada cardiopatia chagásica crônica.

O coração, a gente sabe, é um músculo responsável por bombear o sangue pra todas as partes do corpo, sangue esse que flui através dos vasos, no episódio anterior a esse eu abordo a fisiologia cardiovascular com uma maior riqueza de detalhes, é o episódio número dois, sobre William Harvey, um médico inglês que no século XVII comprova que o sangue de fato circula dentro do nosso corpo. O coração não depende totalmente do cérebro para seu funcionamento, você já deve ter visto por aí algum coração de animal batendo fora do corpo, o que o sistema nervoso faz é basicamente acelerar os batimentos, quando você tá fazendo exercícios físicos por exemplo, ou diminuir os batimentos cardíacos quando você está em repouso lendo um livro ou dormindo.

O diferencial do coração que deixa ele independente do cérebro é seu sistema de ativação próprio, o tal do sistema de marcapassos, caso você possa, de uma conferida no instagram @historynemia eu disponibilizei pra ti uma imagem bem esclarecedora desse sistema, aliás isso é algo comum, eu sempre subo uma série de imagens que ajudam a ilustrar o texto caso você não possa..

Suponhamos que dentro do coração exista uma rede de fios elétricos formados por células especializadas, esses fios são os responsáveis por conduzir a eletricidade, eletricidade de verdade, a mesma que carrega seu celular, só que numa voltagem bem baixa,  essa eletricidade conforme viaja por esses fios internos contrai o músculo cardíaco ao redor e produz o batimento que movimenta o sangue. Além de gerar uma inflamação no coração, o parasito, suas toxinas e o próprio sistema imunológico do hospedeiro, afetam esse sistema de condução, principalmente o sistema parassimpático, que é responsável por desacelerar o coração, acalmar ele quando não há necessidade de bater rápido. Com o tempo essa fiação acaba se desgastando e isso faz com que que o coração vá se tornando cada vez menos efetivo, a condução vai ficando bloqueada, suas contrações vão perdendo força, sua função bomba diminui.

Já que as contrações estão mais fracas o sangue tende a ficar mais tempo dentro das câmaras cardíacas, isso é ruim pois o coração começa também a se dilatar, pra acomodar esse sangue, começa aumentar de tamanho. É a chamada cardiomegalia. Uma vez que o coração está se dilatando, aqueles fios do sistema de condução acompanham essa dilatação, é como se eles estivessem sendo esticados, a ponto de arrebentar. Isso prejudica ainda mais algo que já está prejudicado. Como consequência pode acontecer de surgir uma arritmia cardíaca, uma taquiarritmia atrial, por exemplo, ou fibrilação ventricular. Isso significa que uma parte do coração fica batendo rápido, ocorre algo como se fosse um curto circuito e bate tão rápido que na verdade é como se não batesse, bate 4x mais rápido, em um cenário que o mecanismo de redução da velocidade de batimentos já está prejudicado, porém são contrações incompletas, superficiais, que não chegam a esguichar de fato o sangue pra frente, de um modo satisfatório.

 Esse é mais um mecanismo que dificulta a saída do sangue do coração, note que é uma cadeia de eventos que se convergem em uma mesma direção, se retroalimentam e, quanto pior vai ficando o cenário, mas a situação tende a piorar. Quer dizer, o sistema de condução foi prejudicado, isso dilata o coração, a dilatação prejudica ainda mais, o músculo fica flácido, perde força, esse é mais um fator que ajuda o sangue a não sair do coração. Esse sangue parcialmente estacionado dentro do coração tende a formar pequenos coágulos, sangue seco, fica tipo uma casquinha de machucado.

E qual é problema disso? Essa casquinha, pode até sair do coração, e viajar pelos vasos do corpo, e se ela entope algum vaso no meio do caminho, no cérebro por exemplo ocorre o chamado AVC, e isso pode levar o paciente a morte ou ocasionar sequelas irreversíveis. Pode acontecer de entupir um vaso do pulmão ou do próprio coração no chamado infarto agudo do miocárdio. 

No sistema digestório, em um mecanismo que também envolve perda da efetividade dos nervos da região, o movimento peristáltico que é responsável por fazer o alimento se movimentar pelo tubo digestivo pode até ser interrompido em algum trecho, ocasionando os chamados megaesofago ou megacolon. Segundo a Fiocruz, a estimativa é que em 2017 existiam entre 12 e 14 milhões de infectados na américa latina. Também existem casos de transmissão por transplante de órgãos e transfusão de sangue em outros continentes. No ano 2006 o Brasil até obteve um certificado da OMS, de isenção da transmissão silvestre de doença de chagas pelo Triatoma infestans, o barbeiro e, ainda que essa seja a principal espécie vetora, isso não significa que a doença está erradicada, significa que uma das mais de 100 espécies do gênero triatoma, que que é capaz de transmitir a doença, já não transmite mais picando diretamente um ser humano.

Ainda hoje ocorrem surtos esporádicos, onde na maioria das vezes o parasita não é transmitido pela picada direta do inseto, e sim pela presença de partes do inseto ou de suas fezes no açaí, por exemplo, ou no caldo de cana. O pé de açaí é uma árvore que o inseto gosta de morar, não que você não possa mais tomar ou comer açaí, mas a colheita e preparo da fruta pelos produtores devem seguir uma série de normas higiênicas, que visam isentar o consumidor desse contato com o bicho.

Todos esses efeitos que eu mencionei a pouco ocorrem ao longo de décadas, não é do dia pra noite. Mas pode existir também uma manifestação aguda, em que algumas dessas complicações aparecem logo depois da picada do inseto, é mais raro, mas quando isso acontece a enfermidade tende a evoluir de uma forma mais prejudicial ao paciente. Mas no geral os problemas cardíacos só aparecem algumas décadas depois na fase crônica da doença.

Até hoje existem estudos em andamento que tentam compreender melhor a doença, essa parte epidemiológica. Veja, eles anunciam a descoberta do novo parásito em 1909-10, mas na década de 20, início da de 30 ainda rolavam uns debates na academia nacional de medicina em que o pessoal questionava se a enfermidade era aquilo tudo mesmo, se de fato afetaria uma grande parte do Brasil ou se era algo endêmico a região de Lassance e nada mais. As expedições de Chagas, e de outros pesquisadores de Manguinhos, ajudaram a evidenciar uma forte relevância no que diz respeito, não só ao papel socioeconômico, da tripanossomíase americana, da qualidade de vida da população, e talvez até de um ponto de vista militar. 

 

 “O Brasil é um grande hospital”  

Muito com base em relatórios dessas viagens, o Médico Miguel Pereira afirma em 1916 que “o Brasil é um grande hospital”  dizendo que o Brasil é um país que tem uma população doente, e ele diz isso em resposta a um deputado que afirmou que se o Brasil fosse invadido por estrangeiros, lembrando que em 1916 estava ocorrendo a primeira guerra mundial, o jeito ia ser convocar o os caboclos do sertão pra combater.

 

Essa sentença do Miguel Pereira acabou se tornando um divisor de águas, é interpretada também como um desabafo, ele esboça aqui uma insatisfação com os rumos que o sertão brasileiro está tomando nesse estágio da nossa história. Mas onde é esse tal sertão brasileiro que tantas vezes foi romantizado na nossa literatura? Segundo o Afrânio Peixoto é logo ali, no final da Avenida Central, na capital da república já começa, e é grande viu. O povo brasileiro, nesse contexto, o dos sertões, dos interiores, era visto como desanimado, improdutivo, preguiçoso. E sendo assim, quais seriam as causas dessa ociosidade? As hipóteses são várias e algumas merecem ser problematizadas, alguns nomes como Gobineau , um diplomata francês que passou um ano no Brasil entre 1869-70, achavam que essa postura estaria determinada pela composição racial do Brasil e pelo nosso clima tropical. Louis Agassiz,e Gustav Le Bon são outros antropólogos que vão nessa linha. O Gobineau inclusive diz que o ideal mesmo seria os brasileiros deixarem de se reproduzir entre si e que programas de imigração deveriam ser incentivados, desse modo, aos poucos a população seria substituída e assim os problemas da nação brasileira seriam resolvidos. Já o Agassiz diz que “Aqueles que põem em dúvida os efeitos perniciosos da mistura de raças e são levados, por falsa filantropia, a romper todas as barreiras colocadas entre elas deveriam vir ao Brasil” Ele diz isso num livro que ele escreveu sobre uma viagem ao Brasil. São declarações fortes, claramente racistas e eugenistas. Menos mau que essa seja uma perspectiva dos estrangeiros, são pessoas que passaram pouco tempo no Brasil, vinheram aqui e depois saíram falando mal por aí, nós brasileiros que nascemos aqui, sabemos que esse não é o caso! Será? 

 

A gente sabe que a literatura, de um modo geral, não é ingênua e tampouco incondizente com a realidade social na qual se insere. Existe um personagem clássico da literatura brasileira que se chama Jeca Tatu, esse personagem nasce no livro Urupês, na verdade partes do texto eram publicadas no jornal O Estado de São Paulo em 1914 e depois foram compiladas em um livro. O Jeca Tatu é um personagem do escritor Monteiro Lobato, que nasceu no interior paulista. Pelo que eu pude apurar esse personagem nasce em um contexto em que o Lobato, não sei se ele compra ou se ele herda uma fazenda no interior do estado, é algo assim. 

 

O fato é, que ele vai lá pra conhecer a terra e, ver como é, o que dá pra fazer em termos de produção, e logo ele tem a ideia de modernizar a fazenda, adicionar novas tecnologias, novas técnicas de plantio, coisas do tipo. Depois da visita o Lobato fica transtornado, p da vida e é nesse contexto que nasce o personagem. Tá, mas o que ele viu lá que deixou ele tão furioso? O próprio homem do interior, que pro autor forneceria uma mão de obra incapaz e seria a causa do mal nacional. Nas palavras dele, o caboclo, o mestiço é “um funesto parasita da terra, homem inculto, inadaptável à civilização". Pelo que eu pude apurar, essa não foi a primeira nem a última vez que o sr Monteiro Lobato deu declarações desse tipo. Aparentemente afirmações de cunho racista foram algo frequente em sua obra. O personagem Jeca Tatu é preguiçoso, amuado, meio desanimado, não tem ambição nenhuma de crescer na vida e não gosta de trabalhar. Ainda que o Lobato tenha dito isso a respeito de um pessoal que ele viu no Vale do Paraíba, no interior de São Paulo, de algum modo essa acaba se meio que se tornando a representação do povo dos sertões brasileiros, e onde é esse tal sertão? Como dito antes, saindo do centro do Rio você já chega. Está nas periferias das grandes cidades, está no Amazonas, no interior do Paraná, em Minas Gerais, no Nordeste, está em lugares que eram muitas vezes esquecidos, deixados de lado pelos governantes (exceto na hora de ir arrecadar os impostos, claro!). Pra muitos intelectuais da época o Brasil era visto como uma nação desunida, talvez nem fosse uma nação na verdade, o país era dividido, longínquo, quase como se fosse composto por estados independentes.

 

Um desses intelectuais é o nosso saudoso Euclides da Cunha, um dos maiores escritores da língua portuguesa. Em sua magnífica obra Os Sertões, de 1902, o Euclides aborda essa questão racial, antropológica, sociológica, mas através de uma outra perspectiva. Eu já vi especialistas em literatura fazerem uma leve crítica à abordagem do Euclides, como se ele tivesse levado um pequeno puxão de orelha, algo que nem se compara com a abordagem feita pelo Lobato. Para que você possa ter uma melhor noção eu trouxe um trecho da obra euclidiana muito famoso, que diz o seguinte: 

 

“O sertanejo é, antes de tudo, um forte.

Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. [...].

É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, [...].

É o homem permanentemente fatigado.

[...]

Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

[...]

Ante o revés O homem transfigura-se [...]; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.”


 

Quer dizer, ele diz que o sertanejo é aparentemente desanimado, mas quando o bicho pega, nesse trecho do texto ele dá o exemplo de uma rês que foge na hora que o sertanejo vai tocando a boiada, aí o boiadeiro se transforma, tira a força de um titã sabe-se lá de onde, passa no meio dos espinhos indo atrás do boi e acaba recapturado-o. E desse modo, o sertanejo vai tocando a vida. Ao longo da obra, o Euclides claramente faz um forte apelo social, ele viaja pra Bahia como representante do jornal A Província de São Paulo, para cobrir a última fase da Guerra de Canudos, e na volta ele diz basicamente que o pessoal lá está bem esquecido, o ambiente é árido, hostil e o povo tem que se virar, não tem muito pra onde correr, diz que a vida é dura naquelas bandas. Além é claro, da parte 3 do livro em que ele denuncia o massacre que ceifou 25 mil vidas.

 

O Neiva e o Penna, no início da década de 1910 foram, para o vale do Rio São Francisco já tendo em mente que a seca ali seria uma das causas do subdesenvolvimento da região. O governo tencionava construir represas e açudes pra aproveitar a água da chuva, essa parte do plano pelo menos em partes deu certo, várias represas foram construídas, a cidade de Canudos, a primeira Canudos, do Antônio Conselheiro, está lá submersa em uma dessas obras do DNOCS. A possibilidade de transposição do Rio São Francisco também é algo que vai nessa linha, é muito antiga, vem desde os tempos do Império. Essa no entanto sabe-se lá quando será concluída, se é que um dia será. Se você um dia for se candidatar a presidência do Brasil não deixe de ir lá construir seus 50 metros de canal, tirar umas fotinhas pro instagram e fazer aquele super documentário pra propaganda eleitoral, dizendo que agora vai, isso certamente te trará alguns votos. Ao retornarem da viagem, os viajantes, como é de praxe, fazem um relatório, onde apresentam suas conclusões,  nessa os expedicionistas dizem que sim é possível fazer umas açudes ali, mas só isso não vai resolver, os índices de enfermidades contagiosas são altos, os moradores da região estão muito expostos, adoecem fácil e sem um contexto de saneamento básico, as obras contra a seca por si só não vão ajudar muito. Essa conclusão deixa claro que, na visão deles, não se trata de uma questão de inferioridade racial, como afirma Lobato e os outros caras que foram citados, e sim é, pela questão do abandono e desleixo das autoridades. É um problema de saúde pública. Essas conclusões estão atreladas ao relato feito pelo Euclides da Cunha, que publicou seu livro uns 10 anos antes dessa viagem.




 

Então é mais ou menos nesse tipo de contexto que vão surgindo as expedições do antigo Instituto Soroterápico Federal, e as conclusões dessas viagens começam a se repetir, são brasileiros que vivem abandonados, isolados, sem estradas, não tem polícia, não tem escola, cuidados médicos e higiênicos? Esquece! Segundo eles, muitos não sabiam nem o que seria esse tal de Brasil, que o Piauí era um estado, Ceará era outro. O povo não contava com nenhum tipo de proteção governamental. A partir de então temas de saúde pública, saneamento rural começam a ganhar um espaço cada vez maior nos debates políticos da época, visando estratégias de melhoramentos nesse setor, uma dessas estratégias pra melhorar esse cenário foi a criação da Liga pró Saneamento do Brasil, encabeçada por Belisário Penna, a liga que era composta pela cúpula médica da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, do Instituto Oswaldo Cruz,  e até o presidente da república Wenceslau Brás fazia parte. Eles coordenavam atividades de educação sanitária como: distribuição de panfletos, visitavam escolas, palestravam para associações de moradores rurais, os políticos começam também a flertar com a criação de um Ministério da Saúde.

 

Um ponto que eu acho importantíssimo e louvável no trabalho da Fiocruz, desde os tempos de Instituto Manguinhos, é a preocupação social deles. Naquela época a maioria da das infecções por mau de Chagas se davam a partir da picada do barbeiro, e esses triatomíneos muitas vezes moravam dentro das casas da pessoas, dentro de suas casas de pau-a-pique, dentro das cafuas, que são essas casas que tem as paredes construídas basicamente com galhos de árvores e barro, muitas vezes com teto de palha. Esse tipo de construção se tornava um ambiente muito favorável pro inseto, imagine: a parede do seu quarto, feita de barro cru, esquece tinta, não há cimento, esquece forro no teto, seja de gesso ou de madeira, pvc, simplesmente não existe. Além disso essa parede serve de abrigo pra insetos, às vezes a gente se incomoda com mosquitinhos, pernilongos esses triatomíneos tem 3 cm de tamanho, e simplesmente moram alí, fazem barulhos estranhos, e pra piorar ainda podem transmitir doenças, uma delas que, progressivamente, muitas vezes ao longo de 30 - 40 anos, vai aos poucos matando o acometido, insidiosamente vai debilitando o coração até que ele simplesmente entra em colapso e para.  

 

Enquanto pra alguns a falta de progresso do Brasil era vista como consequência do clima e de uma forma preconceituosa até como consequência de sua suposta “composição racial” o Carlos Chagas, o pessoal do Instituto Manguinhos, sempre consideraram essa e outras doenças de transmissão vetorial, doenças evitáveis, não que fosse fácil, mas sim seria possível, isso serve tanto para as Minas Gerais quanto para a Amazônia, para o nordeste, desde que, é claro, hajam políticas de prevenção, desde que as autoridades façam algo pra intervir, educando a população, usando lá os inseticidas, talvez até providenciando casas mais estruturadas, de tijolo, cimento devidamente forradas. E eles estavam certos em relação à eficácia de medidas de prevenção, tanto que hoje a doença já praticamente não é transmitida através da picada do barbeiro. O problema é que essa era e até hoje é uma enfermidade considerada de pobre, do sertão, da amazônia, que nunca ou quase nunca afeta as elites, para corroborar essa idéia eu te digo que hoje, existem somente dois remédios no mundo capazes de tratar prontamente a doença de Chagas, capazes de matar o parasita, no Brasil existe só um aliás, Benzonidazol, isso pra uma doença que começou a ser estudada há mais de 100 anos. 

 

Melhorar o saneamento básico brasileiro significaria dar um empurrão no país, Melhorar as condições de higiene, cuidar da água parada, um tratamento adequado de esgoto, aumentar o acesso à educação, entre outras coisas, significaria proporcionar uma melhor saúde, felicidade, uma melhor qualidade de vida para que as pessoas dos interiores pudessem trabalhar, pudessem viver com mais dignidade. E é exatamente isso que acontece com o personagem Jeca Tatu.

 

Redenção do Jeca

 

Agora o personagem do Monteiro Lobato, leia-se, representação dos habitantes da zona rural, começa a mudar sua postura, fica mais atento e ambicioso. O que será que fez o personagem mudar de atitude? Foram as medidas de saneamento do governo? Estaria Monteiro Lobato arrependido das coisas que ele disse antes? Um dos fatores responsáveis foram os estudos do Pena e do Neiva aos quais o Lobato teve acesso. Após tomar conhecimento dos problemas sanitários do Brasil ele entende que o “Jeca Tatu não é assim, está assim”, e desde então começa uma fase redentora do personagem. 

 

O ápice dessa redenção está fortemente atrelada a um remédio milagroso. O remédio? (nesse trecho do podcast se ouve uma propaganda do Biotônico Fontoura) Se sua infância, ou parte dela foi a mais de 15 ou 20 anos atrás, certamente você já ouviu essa musiquinha antes, tocava em tudo quanto era lugar, passava toda hora na tv. O Biotônico Fontoura, que é um suplemento alimentar composto basicamente por ferro e açúcar, antes tinha até álcool na composição, 9,5 %, não é pouca coisa, é o percentual aí de uma boa cerveja, um vinho talvez. Em 2001 a Anvisa determina, depois de muitas décadas de comercialização do produto, a isenção de álcool na fórmula. Esse produto era vendido, ainda é na verdade, como um fomentador de apetite, algo que supostamente fazia as crianças sentirem fome, era recomendado pra todas as idades, mas o apelo infantil era evidente. Essa musiquinha, por incrível que pareça, por estar sendo veiculada na tv, no rádio talvez, não foi o ápice da divulgação.

 

O ápice do que muitas vezes aparece como uma das maiores campanhas publicitárias da história do Brasil foi um almanaque, um livretinho que, pelo que parece, quando você comprava o produto, essa revistinha infantil vinha junto. Segundo o site do Monteiro Lobato 100 milhões de exemplares foram distribuídos ao longo de mais de 60 anos. A última edição foi lançada em 1982. Essa propaganda, a princípio, contava a história do Jeca Tatu que nós já conhecemos, amuado, preguiçoso, não tinha coragem de capinar o quintal, nem de fazer reparos em sua casa, só queria saber pitar e tomar seus martelinhos de pinga o dia inteiro. Até que um dia o destino do Jeca muda completamente. Devido a chuva, um doutor para na casa do Jeca pra esperar o temporal passar, e nota a miséria da residência, percebe que o Jeca tá amarelo, muito magro e logo em seguida já dá seu diagnóstico: Jeca você tem ancilostomíase! O Jeca não entende e o doutor explica que ele tem o tal do amarelão, que é uma parasitose, ele fala que o Jeca tem verme, receita lá uns comprimidos pra ele tomar além é claro, do Biotônico Fontoura. O Monteiro Lobato era amigo do Sr Cândido Fontoura, que teria criado a fórmula do suplemento.

 

 O que acontece é que a partir daí, o Jeca então se livra dos vermes, muda completamente sua postura, enriquece, se torna ativo e ambicioso, abandona a cachaça, só quer saber de andar em cavalo árabe e fumar charuto do bom, fica até mais rico que seu vizinho italiano. Pelo número astronômico de 100 milhões de cópias distribuídas, a gente consegue facilmente deduzir que esse almanaque foi influente na cultura brasileira, principalmente no campo. A revistinha era ilustrada, também vinha com dicas de higiene pra criançada, curiosidades. A princípio ela era encontrada nas farmácias, onde vendiam o Biotônico, mas acabou entrando nas escolas, também. E ela se inseriu de uma forma tão profunda na vida das pessoas que teve gente que, inclusive, aprendeu a ler através dessa revistinha. 

 

Pena que com a população em geral isso não aconteceu, em relação a doença de Chagas houve sim uma redução, eram 4,5 milhões entre as décadas de 70 e 80, no ano de 2005 estimava-se 1,9 milhão de infectados no Brasil. Em relação às medidas de saneamento básico nós ainda estamos longe do que foi idealizado pelos expedicionistas do início do século passado. Hoje, aproximadamente 100 milhões de brasileiros, quase um a cada dois, não têm acesso a rede de esgoto, 16% da população, umas 35 milhões de pessoas, não têm acesso a água tratada. Isso sem contar os 38% da água que é retirada da natureza, potabilizada e se perde no meio do caminho, é um desperdício altíssimo e muito caro.Obviamente esses dados se refletem na qualidade de vida das pessoas e no seu estado de saúde, enfim. É complicado

 

Vida Pessoal

 

Voltando a falar um pouco mais sobre a vida pessoal do Chagas em 1904 o ele se casa com Iris Lobos Chagas e tem 3 filhos, o Maurício infelizmente faleceu ainda bem novinho, e os outros dois cresceram e também se tornaram cientistas: o primogênito, Evandro Serafim Lobo Chagas até fundou em 1936 o Instituto de Patologia Experimental do Norte, em Belém, que era uma espécie de filial do Instituto Oswaldo Cruz na região norte o instituto realizava estudos epidemiológicos e após a morte do Evandro em um trágico acidente aéreo no ano de 1940 a instituição passou a levar seu nome: Instituto Evandro Chagas, e existe até hoje.

 

O Carlos Chagas Filho se formou em medicina e deu aulas de física biológica na Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro. Ele também se tornou delegado do Brasil na Unesco em 1966, presidiu algumas instituições de pesquisas nacionais, foi membro de várias academias internacionais, além é claro de ter trabalhado no Instituto Oswaldo Cruz, que ele e o irmão sempre frequentaram desde criança, ele faleceu em 2000.

 

Após a morte do Oswaldo Cruz o Chagas assume a direção do Instituto Manguinhos, e dá continuidade ao trabalho, ele passa por momentos difíceis, mas também incentiva novos campos de pesquisa, amplia o contingente de pesquisadores, o instituto começa a desenvolver, fabricar e vender vacinas para financiar as próprias pesquisas. O instituto também passa a exercer uma função parecida com a da Anvisa atualmente, controlando fármacos produzidos no exterior que entram no Brasil e também os produzidos nos próprios laboratórios nacionais. A atual Fiocruz se torna um grande centro de ciência brasileira, os caras tem muitos contatos com escolas internacionais, com o Instituto Louis Pasteur de Paris, onde o Oswaldo Cruz inclusive foi treinado, vários pesquisadores brasileiros também vão pra lá fazer estágio, os caras também recebem vários intercambistas, várias personalidades, entre os quais o glorioso Albert Einstein. O Chagas morreu bem jovem, em 1934 com apenas 56 anos, de problemas cardíacos. A possibilidade de morte por doença de Chagas foi cogitada, mas isso nunca foi comprovado. No instagram @historynemia, no post desse texto eu postei uma foto que  foi tirada no dia da visita do Einstein, o Chagas também está presente, é bem legal.

 

Agora, e quanto ao prêmio Nobel? O Chagas foi oficialmente indicado duas vezes, uma em 1913 e outra 1920 pra concorrer em 1921. Apesar dele ter feito algo absurdo e nunca repetido na história da medicina, ele elucida completamente todo o ciclo de transmissão, o agente causador as manifestações clínicas do mal de Chagas. Em nenhuma das ocasiões o brasileiro ganhou, por quê será? 

 

Olha, as hipóteses são diversas: talvez por conta de um suposto descenso da importância de estudos microbiológicos, como se eles estivessem saindo de moda na década de 20 ao mesmo tempo em que campos como genética e biofísica ascendiam, como se esses estivessem entrando na moda.

 

Outra possibilidade que também é debatida, é a de que alguns membros da própria Academia Nacional de Medicina se mostraram desfavoráveis à laureação do Chagas, quando eles foram indagados por uma equipe da organização do evento que visitou o Rio de Janeiro durante o concurso. Talvez pelo desdém de seus críticos que questionavam a real relevância da Tripanossomíase americana no cenário latino, talvez por panelinha, inimizade, coisas do tipo.

 

Eu não sei quais são os critérios que o Karolinska Institutet usa pra escolher os vencedores; Claro, o Chagas é brasileiro, eu também sou, isso já seria um bom motivo pra eu ter torcido por ele se vivo eu estivesse no início do século XX.   Ademais isso traria uma boa visibilidade pra ciência brasileira, a obra do Chagas seria muito mais reconhecida, além da enfermidade em si, talvez melhores medidas de prevenção tivessem sido tomadas, novas possibilidades de tratamento poderiam ter aparecido.

 

Eu não acredito que ele não tenha ganhado por uma suposta irrisoriedade do mal de Chagas, uma hipótese que também pode ser levantada, já que era uma doença que afetava milhões de pessoas na américa do sul. Ele teve um senso clínico aqui muito feliz, um raciocínio investigativo extremamente apurado, não é atoa que ele ganhou vários prêmios por isso, lá no instagram eu até listei alguns deles pra você. Um que vale a pena ser citado aqui é o prêmio Schaudinn, um prêmio alemão que era concedido de 4 em 4 anos em Hamburgo, ele ganha em 1912 desbancando vários cientistas renomados da época,  entre eles o bacteriologista alemão Paul Ehrlich e  o médico francês Charles Richet, que ganharia o nobel de 1913. Aparentemente esse prêmio alemão era algo bastante relevante pra época, os concorrentes nos indicam isso.

 

 

Na minha opinião, opinião pessoal, ele não ganhou simplesmente por ele ser brasileiro e sendo influenciados por um ideal eurocentrista, nós ou os jurados lá do prêmio tendemos muitas vezes a acreditar que não existe ciência na África, que não existe ciência na Ásia ou na América do Sul. São vários os exemplos em que isso acontece, o japonês Kitasato Shibasaburo foi um cara que conseguiu isolar o bacilo causador da peste bubônica, a bactéria Yersinia pestis alguns dias antes do suiço Alexander Yersin. Ele divulga um artigo sobre suas conclusões e dias depois, usando diferentes métodos, o Yersin também chega ao mesmo agente causador e também solta um artigo sobre. E só pelo epônimo usado para nomear a bactéria você já sabe quem foi que levou toda honra e toda a glória. Não que o prêmio Nobel seja tudo isso também, sim é importante, mas vários especialistas de diferentes áreas muitas vezes discordam das premiações, vieses políticos frequentemente são apontadas como motivo da vitória, eu mesmo acho um epônimo algo muitos mais daora e mais eterno vamos dizer assim do que o Nobel. Mas é claro, há um consenso de que teria sim, sido positivo para a ciência brasileira.

 

Tem um cara, o  Sir Peter Brian Medawar que nasceu no Brasil, em Petrópolis e foi embora pra Inglaterra ainda na infância e se naturalizou britânico, seu pai é um libanes, também naturalizado britânico e sua mãe é inglesa de nascença. No ano de 1960 ele foi laureado com o prêmio Nobel de medicina após a realização de pesquisas sobre o sistema imunológico. Durante a cerimônia ele foi anunciado como britânico, o Brasil não saiu na foto. Em 1962 ele vai pro Rio de Janeiro, visita a Fiocruz. Por ele ter saído ainda muito jovem do Brasil, eu acho que nem português ele falava. Não sei! Aí eu te pergunto, esse cara é brasileiro? Você considera esse um prêmio Nobel do Brasil?

 

Pela sua nobre atenção eu agradeço, até o próximo dia 8, valeu!

 

 

Referências:

SCHWEICKARDT, Júlio César; LIMA, Nísia Trindade. Os cientistas brasileiros visitam a Amazônia: as viagens científicas de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas (1910-1913). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.14, suplemento, p.15-50, dez. 2007.

Simone Petraglia Kropf, Carlos Chagas: science, health, and national debate in Brazil, 21–27 May 2011

Bruno A.L. Jorge e Pedro G. Lanzieri; Carlos Chagas: um homem, uma doença, uma história. Editora da Universidade Federal Fluminense, 2012

Avatares de la medicalización en América Latina, 1870-1970/ Compilado por Diego Armus - la. ed. - Buenos Aires: Lugar Editorial, 2005.

Andrade J.P., Marin-Neto J.A., Paola A.A.V., Vilas-Boas F., Oliveira G.M.M., Bacal F., Bocchi E.A, Almeida D.R., Fragata Filho A.A., Moreira M.C.V., Xavier S.S., Oliveira Junior W. A., Dias J.C.P. et al. Sociedade Brasileira de Cardiologia. I Diretriz Latino Americana para o Diagnóstico e Tratamento da Cardiopatia Chagásica. Arq Bras Cardiol 2011; 97(2 supl.3): 1-48.

Machado, Marcelo & Rossi, Edneia & Neves, Fátima. (2012). O discurso educacional e o Almanaque do Biotônico Fontoura: por entre práticas de leitura e a produção de uma representação do sertanejo (1920-1950). Revista HISTEDBR On-line. 12. 10.20396/rho.v12i45.8640137. 

https://revistapesquisa.fapesp.br/as-fotos-secretas-do-professor-agassiz/

https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/06/24/raio-x-do-saneamento-no-brasil-16percent-nao-tem-agua-tratada-e-47percent-nao-tem-acesso-a-rede-de-esgoto.ghtml

https://monteirolobato.com/miscelanea/jeca-tatuzinho/jeca-tatuzinho-historia/

http://chagas.fiocruz.br/doenca/epidemiologia/


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