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Cooperação em tempos de cólera. O que podemos aprender com as formigas?

Cooperação em tempos de cólera. O que podemos aprender com as formigas?
Fernanda Bianca Paes Gulinelli
out. 14 - 10 min de leitura
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Estamos em meio a nova epidemia de cólera. Não a do vibrião, mas a Cólera sentimento, ira, furor, raiva. 

Em todos os locais os ânimos se exaltam, as vozes se elevam, os dedos apontam para o outro. Nos hospitais, entre as diferentes equipes, também não é de se estranhar que isso aconteça com mais frequência do que imaginamos. Quanto mais estressante o ambiente, mais instáveis são as relações interpessoais. Fato é que a culpa é do outro. O outro é o problema. O outro é velho e obsoleto, não tem conhecimento suficiente, não se atualizou, não fala a minha língua, não tem a minha especialidade. Discorda do meu diagnóstico e da minha proposta terapêutica. O outro me olha enviesado, me analisa e viola meu direito de ser único e especial. O outro me incomoda. 

Falando especificamente do ambiente de trabalho médico, o sujeito que responsabiliza o outro por todo e qualquer revés tende a se distanciar da natureza real dos problemas como uma forma de defesa contra o julgamento alheio. E então, como numa onda em formação, ele se frustra e se encoleriza, gerando um ambiente altamente hostil, aumentando o estresse da equipe multiprofissional e afetando direta ou indiretamente o sucesso do tratamento dos pacientes. 

Vivemos tempos nos quais se olha muito para a própria imagem, porém evita-se a qualquer custo a imersão dentro de si 

(Ao mesmo tempo em que Narciso acha feio o que não é espelho, ele tem medo de mergulhar profundamente nas águas do seu interior e se espantar com aquilo que  existe atrás do reflexo. Narciso sabe que, às vezes, sua imagem através do espelho pode ser um retrato de Dorian Gray). 

Inconscientemente, este é o momento em que as defesas psíquicas se armam e a máxima de que a melhor defesa é o ataque é posta em prática. Desvia-se a cólera de si para o outro. Apontam-se defeitos, projetam-se falhas, descarregam-se frustrações. Quem é este e por que age assim? O que tanto o incomoda? Quais são as deficiências que precisam ser escondidas da vista dos outros mas que são tão flagrantes ao inconsciente de quem as possui?

Ao invés do reconhecimento de que a fraqueza ou deficiência de um pode ser suprida pelo conhecimento e habilidade do outro, em prol de alguém ou de um Bem maior, opta-se pela visão distorcida de quem pensa que é o dono da verdade. 

Uma vez que a cooperação é trocada pela encolerização, sabemos que este é um jogo perdido para todos os envolvidos. Embora o mais prejudicado invariavelmente seja  o paciente, que confia a uma equipe seus problemas, na esperança de que sejam mitigados ou resolvidos, sem saber que internamente a equipe se desgasta e se estilhaça, sobrando farpas para todos os lados. 

Algumas vezes, obviamente, os conflitos não são ruins, vindo inclusive a cooperar  para o crescimento e amadurecimento  pessoal. No entanto, quando passa a "envenenar" os que o vivenciam, pode ser altamente nocivo. 

Fato é que fomos criados para competir. Somos estimulados desde sempre a não nos contentarmos com o segundo lugar, a buscar a melhor performance, a ser o destaque, a virar o jogo, a manter a frente na disputa. Atire a primeira pedra aquele que nunca ficou constrangido com os gritos dos pais nas arquibancadas durante as competições do colégio. 

Até nos esportes coletivos, onde deveria ser regra a  cooperação para otimizar os resultados do trabalho em equipe, temos sinais inequívocos  de que sempre existe alguém para bancar o “dono da bola“. 

Dando um exemplo prático, quem acompanha o campeonato europeu sabe bem quem é Edinson Cavani. Ex-PSG, contratado recentemente pelo Manchester United, apesar de ser um grande artilheiro, tem a má fama de ser “fominha”. Enquanto atuou pelo time francês pouquíssimo contribuiu com passes que gerassem finalizações para seus companheiros de equipe - que o digam Neymar e Mbappé. Se ele não faz o gol, melhor que ninguém faça! Só faltou deixar combinado com o técnico, não? 

Certo, mas onde entram as formigas? Embaixo do gramado do campo? Não só. Deixem-me tentar explicar. 

Formigas são insetos de comportamento social que tem conseguido manter sua sobrevivência na Terra por mais de 100 milhões de anos, desde que se diferenciaram de suas ancestrais, as vespas. São consideradas um grande sucesso na história da evolução. 

Qual o segredo para que seus sistemas de sobrevivência funcionem tão bem que tenha lhes permitido chegar tão longe?

Simples. É que  quando as formigas se unem, o indivíduo desaparece. Transformam uma multidão de indivíduos num superorganismo somente com a cooperação. Isso é o que se denomina de ímpeto comunal. Trocando em miúdos, as formigas sobrevivem há tanto tempo e com tanto sucesso por que “entendem“ que maiores são as chances de sobrevivência do indivíduo se ele estiver inserido num coletivo forte e organizado. 

Numa sociedade de formigas, existe um esquema de divisão de tarefas, sendo designados os indivíduos em número e capacidade para uma tarefa pré-determinada. A saber: 

Grande engano é  pensar  que a Rainha é a líder do formigueiro. Não existe espaço na organização do formigueiro para um indivíduo único no comando. A Rainha tem a função primordial de reprodução da espécie. 

As operárias ou obreiras limpam formigueiro, coletam alimentos, caçam  e tomam conta da cria. 

As formigas Soldados protegem o formigueiro de predadores. 

Dessa forma, executam atividades estruturais e com alto padrão de sofisticação dentro da colônia por meio de ações coletivas e relações de ajuda mútua. 

Esse comportamento social tem o intuito de manter a ordem e promover um desempenho adequado para  o sucesso coletivo.  

Sabem por que formigas de mesma espécie não competem entre si no formigueiro? Porque põe em risco a sobrevivência da colônia enquanto organismo e portanto põe em risco a vida de cada um de seus indivíduos. 

A entomologia, ciência que estuda os insetos, nos ensina que outro item essencial para o sucesso evolutivo das formigas é a comunicação. E acreditem, as formigas se comunicam de maneira coordenada, da forma correta e compartilham conhecimento - fato este conhecido como corrida em tandem. Corrida em tandem é uma forma de recrutamento, ou “ensinamento”, no qual um indivíduo que conheça uma fonte de recursos  ensine ao outro o caminho até ela e assim sucessivamente até que todos os indivíduos talhados para a tarefa de coleta conheçam a localização da fonte de recursos. Isto nos mostra os benefícios da  disseminação da informação tanto para o indivíduo quanto para a colônia. 

Observou-se ainda que as decisões na sociedade do formigueiro são tomadas de maneira compartilhada por vários indivíduos para que seus resultados sejam os mais precisos possível. 

É isso basicamente que faz com que as formigas ao longo de 130 milhões de anos tenham evoluído como  um grupo, garantindo a sobrevivência da espécie e suprindo as necessidades dos  indivíduos. 

E nós, profissionais da saúde, por onde entramos nesse formigueiro? 

Nos bastaria observar e executar, se ao invés do bem estar individual de alguns tivéssemos como maior objetivo cuidar das necessidades do indivíduo por nós assistido. 

Ideal seria que as equipes interdisciplinares se comunicassem de maneira correta e eficiente e compartilhassem seus conhecimentos e que alguns médicos, ao invés de tomar para si todas as condutas relacionadas ao paciente, soubessem trabalhar em equipe e dividir tarefas para permitir que cada profissional dentro de sua especialidade pudesse usar da melhor forma suas habilidades. 

Ideal seria que o paciente não fosse de um determinado médico, mas sim da instituição hospitalar. Esta sim, deveria assumir um paciente como seu e usar os recursos disponíveis de maneira a minimizar danos, obter diagnósticos e promover terapêutica adequada ao paciente, no menor tempo possível e sem gerar custos financeiros ou humanos excessivos. E para isso seria necessário a cooperação. Que vai muito além de ajuda mútua. Cooperar muitas vezes implica em abrir mão de “privilégios”. 

Tudo aquilo que depende de esforço coletivo esbarra em barreiras de toda sorte, inclusive interesses financeiros. E quando estes estão em jogo, não se hesita em chutar o formigueiro, cortar a cabeça da rainha, prender os operários, expurgar os soldados e mandar as favas a cooperação. 

Talvez a grande sorte destes pequeninos insetos fascinantes é que elas não dependem de um sistema monetário para garantir sua sobrevivência. 

Por fim , entre o ideal e o real sempre existe o possível. E ainda acredito firmemente que é possível existir cooperação no ambiente de trabalho. Nem que para isso acontecer, alguns poucos tenham que começar do zero, aos poucos, dando o exemplo e disseminando as ideias. O famoso trabalho de formiguinha.

 


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Referencias 

Sverdrup-Thygeson, Anne. Planeta dos Insetos , 1ª edição , Editora Matrix (2019)

Engel, Michael S. , Innumerable Insects: The Story of the most diverse and Myriad animals On Earth. ( American Museum of Natural History)-2018, Ed . Sterling.


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