Parte I: O homem sem subclávia.
Conheci Leonardo de Albuquerque Mattos em uma das minhas consultas matinais de terça-feira. Habitualmente, é esse o dia que reservo para exercer a prática clínica. Sabido das peças que a mente humana prega, treinei meus impulsos com o intuito de não cair nas graças da rotina e do tédio. Acostumei meu espírito a ser surpreendido. Como um beduíno, sempre mudando. O paradoxo, creio eu, de acostumar-se com a novidade é natural a minha profissão. Lembro de uma aula da faculdade em que meu professor de cirurgia torácica, Políbio Costa Herculano Neto, fez o alerta. Era, sem sombra de dúvida, o cirurgião mais experiente do serviço de cirurgia geral do hospital. Seu currículo provava sua habilidade: “3.825 cateteres centrais”. Havia visto as variações anatômicas de etnias inteiras e poderia introduzir um guia na veia subclávia com a mesma facilidade com que qualquer um de nós amarra os sapatos. Foi então que ele nos disse: “Três mil oitocentos e vinte e cinco vezes havia feito aquilo. E pasmem! Num domingo de carnaval, fazendo a rotina do hospital, encontrei um homem sem a veia subclávia direita! É isso mesmo que ouviram. Não havia nada que o delatasse na inspeção de seu membro superior. Seus braços eram simétricos e a circulação da mão perfeita. Nenhuma cirurgia prévia. Nem mesmo edemaciado estava. Não há menção nenhuma na literatura sobre algo desse calibre. Foi confirmado depois. O homem era um homem e os aparelhos não estavam errados. Não havia o vaso de retorno que eu e vocês temos. A volta do sangue era feita por outros caminhos menos calibrosos, que não passavam nem perto da clavícula”. O relato do caso do professor Políbio fora seguido com muita curiosidade pelos seus pares, entretanto, não causou muito impacto na comunidade internacional. Sequer provocou surpresa ou comoção. A despeito dos esforços, a comissão da revista internacional de anatomia apenas respondeu que “aconselhava a não publicação do artigo, pois algo dessa estirpe era certamente um equívoco”. Nosso mestre não se abalou com a negação da publicação. Fez dessa descordialidade em desconsiderar as provas inequívocas de sua descoberta uma oportunidade. Um espaço de crescimento pessoal e também meio de ensinar-nos a nunca nos colocarmos como imunes a surpresas. É digno relatar que, na época, deslumbrado pela habilidade e fama conquistados pelo professor Políbio, não tive dúvida alguma de que ele havia falado a verdade sobre tudo.
Guardei essa história colada ao meu número do CRM como vacina ao egocentrismo que, com os anos, o conforto traz. Quando se trabalha por tanto tempo, pode-se ver dezenas de milhares de pacientes, o que cega consideravelmente o olho atento de um caso inédito. Tudo é virose, sabe? Uma “catarata do raciocínio" que se desenvolve com a experiência. Entretanto, pelo meu esforço em me por sempre alerta, fui recompensado. Vinte e nove anos após o dia em que o professor Políbio nos contou sobre o homem sem subclávia, Leonardo veio ao meu consultório.
Logo que entrou, acendi o pavio do meu raciocínio clínico. Os poucos segundos que precedem o início da consulta, em verdade, são um prelúdio da obra principal. E não podemos desconsiderar o valor dos prelúdios. Ouça prelúdio de 1812, Tchaikovsky, e entenda. Voltando... A dificuldade ou facilidade com que a porta é aberta (Está sem forças para empurrá-la? Abriu de maneira delicada e pausada indicando despreocupação ou chutou a porta de raiva?). A força aplicada para girar a maçaneta (É alguma dor que o limita ou falta de força muscular?). A marcha de poucos metros até a cadeira frente a mesa (Ataxia cerebelar? Marcha ébria? Ceifante?). A pele (Trabalha sob o sol? Tem algum traço que denota etnia com doença típica?). O cheiro emanado (Está suado porque o dia está quente ou por que está com febre? Cheira mal por que não liga para o banho ou por que alguma moléstia o tirou a vontade de cuidar da higiene?). O brilho dos cabelos, simetria corporal, padrão respiratório enquanto caminha. Se senta acolchoando-se na cadeira ou se evita tocar alguma porção do corpo que dói. A face em que o “bom dia, meu caro” é recebido e a reação dele ao responder. Dentre tantos outros elementos, até o paciente se acomodar frente ao médico e iniciar o relato do que lhe aflige, um filme passa diante dos olhos. Lembro-me de D. Elídia, 68 anos, senhora distinta e de reputação inquestionável. No momento em que sentou na minha frente, disse a ela: “A senhora usa crack!”. Com uma imensa surpresa, D. Elídia trancou o fôlego e foi embora, sem se consultar. Infelizmente eu estava errado. D. Elídia não usava crack. Mas parecia. Enfim, eu era muito novo... Talento se conquista com o tempo. Ah, sim! Leonardo. Sem tanta pressa, era um homem com roupas de extremo bom gosto. Um belo exemplar da espécie masculina, diga-se de passagem. Parecia um rapaz de sucesso. O que carrega alguém para que seja dito tal coisa apenas olhando? Sem conhecer qualquer informação sobre sua vida, sentira isso no momento em que entrara. Interessante. Aparentemente saudável, como quase todos os jovens. Claro, era notável sua postura. Ereta, todavia, de olhos tão arcados quanto o mais condenado dos sujeitos. Um fardo de sofrimento pairava sobre suas pálpebras. E mais outro tão pesado o obrigava a olhar pro chão. Levantei-me da cadeira e estendi a mão, cumprimentando-o.
– Bom dia rapaz! Sente-se, por favor.
Como uma miss bem treinada ele se iluminou. Instintivamente, Leonardo pusera um sorriso no rosto. Parecia, mesmo vindo de um homem em sofrimento, um sorriso sincero. Um belo de um sorriso. Surpreendeu-me e conquistou minha simpatia apenas com um gesto. Que dentes!
– Bom dia Doutor. Apertamos as mãos. Que bonito esse quadro atrás do senhor!
O rapaz acertou em cheio no que restara erguido de dúvida sobre seu talento. Era um conquistador! Havia 3 semanas que eu o havia pendurado ali. A noite estrelada – Van Gogh. Acredita que nenhum paciente, nem mesmo minha secretária, tecera qualquer comentário sobre? Mesmo que não gostasse. Ora! Falasse então. A indiferença chateou-me profundamente. Ter comentado, assim que entrara, sobre o quadro mostrou mais que um mero golpe de sorte. Soou como um talento nato para a empatia, para a conquista. De repente, tão logo apertara minha mão com a direita, o patife usou a esquerda para dar-me um fortíssimo beliscão no antebraço!
– Ah meu Deus! Me perdoe, Doutor. Que vergonha! Eu não acredito que fiz isso com o senhor. Meu Deus! Aí está, eis o meu problema, Doutor: Eu não sou eu. EU SOU DOIS!
Recuperando-me ainda do susto e esfregando a pele para diminuir o vermelhão do ataque, rapidamente recuperei a calma. Ele havia ficado honrosamente constrangido. Não tive dúvidas que o beliscão fora sem querer. A prova da inocência? Seu embaraço extremo. Deixei o rapaz continuar, encorajando-o.
– Não se envergonhe rapaz! Você está aqui buscando por ajuda, não? Eis o que irá encontrar. O prédio da advocacia fica na rua da frente. Aqui nessa sala não serão feitos julgamentos sobre sua pessoa. Sou todo ouvidos.
– Obrigado, Doutor. Controlando a respiração. Minha história é uma rede de embaraços e aflição. Tenho agora 23 anos e há 1 ano vivo muitíssimo mal. Era um rapaz normal. Nada de extraordinariamente grave havia ocorrido em minha vida. Até os 22. Aos vinte e dois passei a conviver com terrível moléstia. Desde então, não tenho mais paz. Ah, Doutor! Estou desesperado. Se o senhor não puder ajudar-me...acho que me jogo desse prédio.
Leonardo descontrolou-se novamente e desatou a chorar. Debruçando-se na mesa com a cabeça entre os braços, escondendo o rosto de vergonha. Repousei minha mão em seu ombro e dei dois tapinhas.
– Vamos Leonardo. Coragem! Conte-me o que aconteceu aos 22.
Em lágrimas, disse:
– Obrigado, Doutor. Disseram-me que o senhor era muito competente no que fazia. Agora posso ver que é verdade. Acho que posso continuar...
DESGRAÇADO! Deu-me outro beliscão. Dessa vez na mão que estava no ombro. Tentei ser mais rápido. Foi como tentar ganhar de um bote de uma serpente. Pegou-me no ar.
– Desculpe-me novamente, Doutor! Não foi minha intenção! Eu juro!
– Calma rapaz. Eu acredito em você. Vamos em frente. (seu filho da...)
– Sou um homem de afetos, Doutor.! Meus amigos são meus tesouros e minha família diamantes puros! Orgulho-me de ser um rapaz direito. Encho-me de prazer ao ter uma conversa, mesmo que com um estranho. Esse é meu vício: a boa convivência. Nem álcool nem fumo, apenas pessoas. Cada boa alma que me dá o prazer de partilhar sua intimidade me atrai demasiadamente e me faz sentir vivo e feliz. Porém, Doutor, aos vinte e dois isso mudou. Não o meu prazer por um bom papo, e sim o de outras pessoas ao conversarem comigo. Deixe-me contar direito. Aos 22 conheci uma garota, Doutor. Gostei dela logo de cara. Acredito que ela também se interessou por mim. Convidei-a para sair e ela aceitou. Naquela noite, nem lembro exatamente porque, entramos em um assunto em que possuíamos opiniões completamente divergentes. E não havia nada demais nisso! Sempre considerei mais importante perder a piada e não perder o amigo. No caso, perder a discussão e não perder a namorada. É o convívio tempero da vida! Pois bem, não sei exatamente sobre o que ela argumentava: feminismo, política ou o se quibe enrolado em bolinha deixava de ser quibe e virava almôndega. Ela gostava desses assuntos, e eu o escutava pacientemente. Não havia necessidade de interrompê-la. O fato foi que, num certo ponto do embate, eu resolvi mudar o rumo das coisas. Já havia apresentado alguns argumentos, ela os repudiara veementemente. Não havia porque estragar a noite enveredando-a para uma conversa inconveniente. Ela desferiu-me um último ataque. Sutilmente insinuou que havia certa hipocrisia em algo que nem entendi direito. Como era do meu feitio, esquivei-me da investida e, em vez de atacá-la, a elogiei. “Sabe... Você pode estar certa mesmo, Amanda. Talvez eu precise de um pouco mais de tempo para digerir toda essa informação. Podemos conversar melhor sobre isso num... próximo encontro? Eu adoraria poder ouvir você novamente. Mas você vai ter que me prometer uma coisa: que estará tão linda quanto hoje!” Por favor, não me interprete mal. Não estava tirando proveito dela. Estava é me apaixonando por aquela garota! Daquela vez, porém, algo horrível aconteceu. Aproximei-me ainda mais da mesa para que ela visse que estava sendo sincero. Coloquei um dos braços atrás das minha costas, apoiando meu queixo no cotovelo do outro e deixando que meu rosto fosse o único alvo para seus olhos castanhos. Foi então que minha outra mão, aquela que estava nas costas, lançou-se em direção ao seu rosto. De trás para frente. Circularmente. Um tapa! Plaft!O senhor pode acreditar, Doutor? Eu a esbofeteara! O que seguiu foi um completo desastre. Eu perdi a garota e quase fui expulso do restaurante pelos presentes.
– O caso é realmente sério, meu jovem.
– Sim, Doutor. Desde aquele dia – 2 de abril de 2017 – isso se repetia em quase todas as minhas conversas. Tinha uma reputação de ser uma pessoa agradável para conversar. Paciente. Um bom ouvinte. Sabia arrancar fácil um sorriso. Mas, tão logo o sorriso surgia, de alguma maneira eu estragava tudo com um desses tiques. E, conforme os meses passavam, ficavam cada vez piores os “ataques”. Tapa, beliscão, chute na canela, até cuspir na cara eu já fiz. O que lhe asseguro, Doutor, é minha total aversão a esse comportamento. Não sou eu! Eu juro. Como se um espírito de cólera se apossasse das minhas forças por milésimos quando há uma discórdia na conversa, essas coisas acontecem. Deixando o misticismo de lado, até mesmo sinto a sua presença. Não como uma entidade sobrenatural. E sim como alguém constantemente a meu lado. Assistindo todas as minhas ações, só esperando o momento para tomar o controle. Já procurei todo o tipo de ajuda leiga possível. Em meu desespero, resolvi apelar à medicina.
– E a família? Como se porta com eles?
– Da mesma maneira, Doutor. Semana passada quebrei um ovo na cabeça de minha avó só por ela ter pedido que eu lavasse a louça quando cheguei da faculdade. Ela tem 88 anos, Doutor! O senhor pode acreditar nisso? Em julho, quando minha irmã fora viajar e pediu para tomar conta de seus gatinhos, dei um puxão no cabelo dela. Tão forte que a cabeça foi até a cintura.
Não parecia se tratar de um mentiroso ou qualquer tipo de trapaceiro. Fisgou-me pela curiosidade. Síndrome de Tourette? Alguma demência precoce? Ou quem sabe algo psicossomático? Certo medo eu senti, pois sabia que aquele não seria um paciente qualquer. Segui o protocolo e agendei o retorno imediato para a próxima semana.
– O que vou lhe pedir são alguns exames laboratoriais e uma ressonância magnética. Arranjarei com o pessoal do laboratório de imagem para que seu caso tenha prioridade. Até lá, aconselho evitar tudo o que não esteja na sua habitualidade, Leonardo.
– Claro, Doutor. Obrigado.
– Nos vemos então na semana que vem, rapaz! Venha, vou lhe acompanhar até o elevador.
Apertei o botão para descer. Enquanto esperávamos fiz-lhe uma última pergunta.
– Quem é a pessoa mais próxima de você hoje, Leonardo?
– Ninguém, Doutor. Exilei-me completamente. Minha única companhia é meu porco-espinho.
– Um porco-espinho?
– Sim. Comprei na esperança que pudesse treinar meu outro Eu. Conversava com o bichinho sobre banalidades para disparar esse meu outro lado. A ideia era que, quando fosse beliscá-lo, seria repreendido pelos espinhos, o que deveria funcionar como um reforço negativo e controlar a besta que vive em mim. Mas não deu certo.
– O que aconteceu?
– Não aconteceu. Simplesmente esse meu outro Eu não caiu na armadilha. É mais esperto do que eu. Mas fiquei com o porco-espinho. Tem sido um excelente companheiro nesses meses de solidão.
PIM! O elevador chegou.
– Até mais, Doutor. Obrigado por ouvir-me e relevar meus acessos com tanta paciência.
Cai na besteira de despedir-me apertando a sua mão. AÍ SEU...! Não é que ele me beliscou pela terceira vez. Adiantei-me a seu constrangimento:
– Não foi nada rapaz. Agora vá! Quero ver você aqui logo com os exames.
E nos despedimos.
Parte II: Parafasia (Clique aqui para ler)
[Continua...]
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