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Corpo Caloso: uma (neuro)ficção em três pedaços - Parte II

Corpo Caloso: uma (neuro)ficção em três pedaços - Parte II
Eric Andrius Coelho Duarte
jan. 12 - 11 min de leitura
030

Parte I: O homem sem subclávia (clique aqui para ler)

[...]

Parte II: Parafasia.

Fiquei sem reação. Nunca havia visto nada como aquilo em vinte e nove anos de clínica. Nem mesmo em livros. Vagamente lembro-me de discutir, em um congresso sobre a possibilidade ridícula disso acontecer. Coloquei-me de pé, andando e lendo os exames, de frente para as enormes janelas do meu consultório. Abri-as um pouco para que pudesse mirar o horizonte e deixar o ar entrar. Olhando para baixo vi as dezenas de pessoas, formiguinhas, que caminhavam apressadamente. Lembrei-me do professor Políbio e o homem sem subclávia. Numa união atemporal, senti-me como ele. Estava de frente para uma exceção a natureza. Ali, com Leonardo, sentado, ansioso pelo meu parecer, lia o comentário do radiologista que laudara a imagem. “Exame repetido duas vezes, em aparelhos diferentes. Não há erro na imagem”. Olhando para o rapaz, totalmente saudável, eu me perguntava como ele estava vivo!

– E então, Doutor. O que diz? Tem cura?

– Como posso dizer isso a você, Leonardo...

– Doutor, não aumente o suspense. O que é?

– O senhor não possui um corpo caloso.

– Um o quê?

– Um corpo caloso.

– E isso faz o quê, Doutor?

–  Bem, ele liga as coisas, sabe? Seu cérebro é dividido em duas metades dentro da sua cabeça. Uma direita e outra esquerda. O que conecta elas é uma imensa rede de fibras, como cabos. Uma infinidade deles! Como um punhado de espagueti cru segurado com as duas mãos. As mãos seriam essas metades e o espagueti é isso que você não tem, um corpo caloso.

– E então?

– Bem... Vou tentar explicar da maneira mais didática possível. O que me intriga é saber como você está vivo, para falar a verdade.

– !

– Ok, ok. Estou sendo indelicado. Não é uma explicação completa, bem metaforizada diga-se de passagem. É, entretanto, o que posso lhe oferecer nesse primeiro momento. Com o tempo, tanto você quanto eu entenderemos melhor. Aviso-lhe: preciso que você preste bastante atenção e evite duvidar demais antes do fim.

– Ok, Doutor.

– Então vamos lá. Já reparou como todo o seu corpo é simétrico? E nessa simetria, um lado tem – praticamente – a mesma função do outro? Sua mão esquerda é capaz de fazer as mesmas coisas que a direita. Agarrar, pinçar, segurar, escrever. O pulmão de uma metade do tórax o mantém vivo da mesma forma e com tanta eficiência como o do outro lado. Os ouvidos dos dois lados o permitem distinguir tons sutis, mesmo sem que o senhor precise entender bulhufas sobre teoria musical, como a voz de seu pai no telefone ou de outra pessoa com a mesma idade, gênero e peso.

– Entendo. Mas minha letra fica horrível escrevendo com a outra mão.

– Exato, Leonardo! Um lado não é exatamente igual ao outro. Assim é com mãos e caligrafia como também com as outras partes. Seu pulmão esquerdo é ligeiramente menor, devido ao espaço que o coração ocupa, deslocado para o lado esquerdo do peito. Ele é minimamente menos potente em capacidade respiratória que o direito. Pouca coisa. Só que é. Seus ouvidos? Já reparou que, quando quer prestar atenção em algum som baixinho – uma conversa ou determinado trecho de uma música – sempre gira a cabeça para um mesmo lado? Dando preferência a um ouvido mais capaz de captar sutilezas.

– Tudo bem até aqui, Doutor. Faz sentido.

– Então Leonardo, o nosso cérebro também é assim. Seu lado direito não é igual ao esquerdo. Algumas funções são simétricas aos dois hemisférios e outras exclusivas. Vou lhe dar o exemplo da linguagem. Boa parte das pessoas têm uma área bastante especial para o processamento da fala no hemisfério esquerdo. Chamamos de Dominância Esquerda. Umas poucas a tem no lado direito e outras mais raramente ainda têm nos dois.

­– Broquei nessa. Como assim?

– O que entendemos como linguagem é bem mais complexo do que um leigo pode imaginar. E mesmo os médicos menos exigentes com seu raciocínio. Existem muitas sutilezas que precisamos esclarecer para que uma teoria convincente sobre as nossas faculdades comunicativas possa ser estabelecida. Volte, entretanto, para o que eu estava falando.

– Tudo bem.

– Essa parte importante que eu lhe falei, da linguagem, e que está no hemisfério cerebral esquerdo, não é a única. Existem outras que trabalham juntas. Espalhadas no próprio hemisfério esquerdo e que compõe o todo da linguagem. Consegue entender isso?

– Tá. Então, se o hemisfério esquerdo faz tudo isso, o que sobra para o direito?

– É aí que nosso raciocínio fica interessante. Alguns componentes da linguagem, como o “tom de voz”, são realizados – nas pessoas que tem o hemisfério esquerdo dominante – não no lado esquerdo! E sim no direito. Um exemplo é o tom de voz das frases. Tenho uma paciente que teve um AVC exatamente nessa área que lhe falo, no lado direito do cérebro. Uma senhora adorável que, após sua internação, passou a falar monocordicamente. Como um leitor preguiçoso. Sem qualquer variação de emoção quando o texto exige. Chama-se aprosodia. Frases como “Eu te amo” e “Eu quero 6 pães de trigo” são ditas da mesma maneira por essa velhinha. Mesmo sabendo que possuem significados completamente diferentes.

– Hum...

– Não quero complicar muito o entendimento. O que preciso é que você entenda que seu cérebro do lado direito não é igual ao esquerdo. Para facilitar, Leonardo, é como se cada lado fosse uma pessoa. Cada uma com um com gosto, emoções e valores diferentes. Até mesmo uma personalidade distinta. Suas memórias são guardadas espalhadas por todo o cérebro, não em um local só, o que torna perfeitamente factível um lado ser diferente do outro, uma vez que uma mesma memória não é guardada em dois lugares diferentes. E esse fato cria diferenças que, somadas, fazem as duas metades do cérebro serem como pessoas distintas. O que evita a briga entre esses dois irmãos é uma rede imensa de neurônios. O nome dela é corpo caloso. E, Leonardo, o seu problema é que você não tem isso! No seus exame, no lugar onde deveria existir, só há um grande mancha escura. Não sei como isso é possível. Existe casos em que crianças nascem sem corpo caloso. Chama-se agenesia de corpo caloso. Eu acho que você nasceu com um. Do contrário teria queixas anteriores. Mas algo aconteceu que fez seu corpo trazer a tona esse defeito. Talvez o episódio em que você me relatou sobre a garota no restaurante tenha sido o momento em que esse anomalia tornou insustentável. Existem muitos problemas descritos nessas crianças que nascem assim. Nenhuma vive bem. Ou um lado coopera com o outro, ou não há espaço para ninguém. Mas você levou uma vida normal até agora. Normal e falante. Havia um corpo caloso onde agora não há nada.

Após um bom punhado de explicações e teorias ele abaixou os olhos, respirou e levantou a cabeça, fazendo aquele olhar. O olhar que todos os pacientes fazem. Uns verbalizam, outros ficam só no olhar mesmo. Era a minha deixa:

– Não existe nenhum tratamento ou cirurgia para isso, Leonardo. Me desculpe...

 Ele não disse nada. Olhou para suas mãos, objetos de tanto embaraço recente, desabando no choro. Momentos difíceis esses em que a profissão exige postura. É impossível não se emocionar em certos momentos e sentir um pouco da angústia daquele que, antes de ser seu paciente, era um ser humano, igualzinho a você. Levantei-me da cadeira e coloquei minha mão em seu braço, não me importando se o outro Eu dele iria me repreender. Não repreendeu.

Não sabia exatamente no que pensava. Não precisava saber. Talvez, antes dessa consulta, possuía outras explicações. Dois grupos provavelmente. O primeiro de alegria. Cura. Benigno. “Você ficará bem”. E a vida segue... O segundo de total desolação. Uma vida de desgraças. Infelizmente, tratava-se de um desgraçado.

– Será que vai piorar?

Não querendo dar-lhe esperanças que eu não tinha, disse:

– Talvez Leonardo. Seus sintomas começaram abruptamente. Talvez tornem-se estáveis, como muitas doenças crônicas. O fato é que dificilmente regredirão.

– Oh, meu Deus! Como vou viver assim, Doutor?

– Esse é o ponto. Você pode viver rapaz! Anime-se.

Disse, tentando, desajeitadamente, animá-lo. Não deu muito certo.

– Acho que o senhor não entendeu o que eu passo, Doutor. Não quero parecer desrespeitoso, mas pense no que acaba de me dizer. Eu não posso viver sob essas circunstâncias! Você viveria sem sua memória? Como seria se todas as vezes que fosse realizar um exame tivesse que ter o livro do lado? E que quando tirasse os olhos da dose do medicamento já esquecesse em seguida. Essa é sua ferramenta de trabalho, claro, mas não só isso. Aposto que a sua profissão é sua vida também. Não que seja apenas isso. Mas é também! Onde começa uma e termina a outra? Quando o senhor sai do consultório? Quando está de jaleco? Pois bem, Doutor. Eu sou um maldito homem que é dois. Tão importante para o senhor é poder trabalhar quanto pra mim é poder conviver bem com os outros. Seu mundo é baseado no que você sabe. O meu no que compartilho. E como viverei sendo assim?

 Sem respostas, silenciei-me por um instante. Ele estava certo. Como viver assim? Achei prudente deixá-los uns instantes sozinhos. Ele e seu outro. Fui à cozinha da clínica pegar um café para nós três, e pensar... Na porta do consultório, esforçando-me para segurar três xícaras nas mãos, havia uma caixa de transporte para gatos. Só que, em vez de um gato, havia o porco-espinho de que tinha me falado. Olhava pra mim com certa apreensão. Parecia esperar por uma resposta minha, como qualquer acompanhante preocupado. Respondi-o com condescendência fazendo uma negativa com a cabeça. Ele havia entendido. Seu dono não ficaria bem. Triste, se enrolou como fazem os porco-espinhos. Vagando em minhas reflexões enquanto olhava para o animalzinho, fui despertado por um forte barulho vindo do consultório! Um frio na espinha subiu até a minha nuca. Abri a porta com violência e vi, no fundo do consultório, Leonardo. Ele havia aberto totalmente as janelas e sentava-se na soleira do prédio, de cócoras, prestes a se jogar. As mãos seguravam o teto e metade do corpo já pendia para fora, a 15 andares do chão. Olhando para mim, disse:

– Acho que encontrei minha saída, Doutor.

 

[Continua...]

 


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