Não tem jeito. O ser humano é fascinado pelo mistério. Todos nós, em maior ou menor grau, somos atraídos pela necessidade desvendar o que está oculto e escondido. Talvez isso seja herança de nossos ancestrais caçadores e coletores, que eram desbravadores por natureza. O fato é que ainda resiste na gente o impulso de resolver enigmas.
Se a gente prestar bastante atenção, vai ver que algumas das nossas tradições têm muito disso, e esta atração por desvendar segredos e superar desafios está presente em muitas áreas da nossa vida. Até nas nossas brincadeiras. Afinal, quem nunca brincou com os amigos de caça ao tesouro, a caça aos ovos de páscoa ou de esconde-esconde?
É interessante notar como muitas áreas do conhecimento humano se valem desse nosso impulso. Se repararmos com bastante atenção, é possível notar que o diagnóstico médico, a investigação criminal, a perícia em obras de arte e tantas outras práticas têm muito em comum. Embora existam diferenças muito claras entre elas, todas se valem de indícios, sintomas e vestígios ― ou seja, de pistas ― que podem levar a uma resposta, que pode levar a outras perguntas, que podem levar a outras respostas e assim por diante.
Tomemos como exemplo a psicanálise. Sigmund Freud foi desde a juventude grande admirador da arqueologia, uma ciência que também se vale de indícios de descobrir tesouros da história e da cultura humana que de outro modo continuariam enterrados. A psicanálise também se vale das pistas, dos sintomas, para saber onde e como cavar, na busca pelos tesouros da nossa psique.
Hoje existem ainda outros experimentos muito interessantes que exploram de forma positiva a nossa curiosidade e nossa sede por montar quebra-cabeças. Em 2002, a médica norte-americana Lisa Sanders iniciou uma coluna chamada Diagnosis no The New York Times, onde conta com o auxílio dos leitores para resolver casos de pessoas que estão doentes e que foram mal diagnosticadas ou que não receberam diagnóstico nenhum. A cada coluna, Lisa apresenta um caso diferente. Histórias reais de pessoas que precisam de ajuda para um diagnóstico correto. Então, uma rede de pessoas formada pelos leitores, que atuam nas mais variadas áreas do conhecimento ou que simplesmente possuem os mesmos sintomas, se juntam na tentativa de buscar uma resposta.
Uma iniciativa muito interessante, que faz um enorme sucesso e ainda ajuda. Há algum tempo a Netflix produziu a série Diagnóstico, que mostra justamente esse trabalho que Lisa Sanders vem desenvolvendo. Inclusive, essa mesma coluna foi a grande inspiração para a série Dr. House, da qual Lisa serviu como consultora e que se tornou sucesso de público no mundo inteiro, incluindo aqui no Brasil.
O sucesso de Dr. House ajuda a mostrar um pouco da força daquilo que o historiador da arte Noah Charney chama de “instinto de caça ao tesouro”, já que as fontes de criação para o personagem vieram obviamente do famoso detetive Sherlock Holmes, criado por Arthur Conan Doyle. Mas elas vão um pouco mais além.
O mais famoso detetive do mundo, que teve sua primeira aparição na história Um Estudo em Vermelho, publicada em 1887, foi inspirado em um médico real chamado Joseph Bell, um exímio cirurgião de Edimburgo e homem de olhar arguto e treinado na arte das minúcias. Entre seus amigos e admiradores estavam ninguém menos que a rainha Victória, Florence Nightingale, Robert Louis Stevenson e o próprio Conan Doyle, de quem ele foi professor. As habilidades de Bell como diagnosticador/detetive eram consideradas lendárias entre alunos e conhecidos.
“O mal de muita gente é ver sem observar”, disse em certa ocasião, retratada no livro O Cavalheiro de Domingo, de Irving Wallace. “Um bom detetive deve ser capaz de dizer, antes mesmo de um desconhecido ter tido tempo de se sentar, qual é sua ocupação, seus hábitos e seu passado, bastando para isso apenas uma rápida observação e um pouco de dedução. Olhem bem para um homem e poderão ver-lhe a nacionalidade estampada no rosto, seu modo de vida escrito em suas mãos e o resto de sua história contada em seus gestos, nas tatuagens que tem no corpo, nos berloques da corrente do relógio, nos bicos dos sapatos e na poeira do terno.”
Mesmo anos depois da morte de Joseph Bell, ocorrida em 1911, Conan Doyle ainda falaria publicamente sobre a influência e as fortes impressões que o antigo professor suscitava entre seus alunos: “O Dr. Bell costumava ficar na sua sala de consultas diagnosticando as doenças das pessoas à medida que iam entrando, antes que elas abrissem a boca. Dizia-lhes os sintomas de que sofriam e até lhes revelava pormenores da sua vida passada, sendo raro enganar-se.”
O poder analítico de Bell era sua arma mais poderosa e graças a ela podia abrir mão de algumas etapas importantes na semiologia médica. No entanto, precisamos lembrar que nem todos podem ser como Joseph Bell e que por isso mesmo é preciso levar em consideração outros fatores para a realização de um bom diagnóstico.
UMA BUSCA ANTIGA
Conhecer a origem dos males que nos afligem sempre foi um ato de grande importância para a história da humanidade. As primeiras centelhas do diagnóstico e do prognóstico datam de muito tempo atrás. O papiro de Edwin Smith é um dos tratados médicos mais antigos conhecidos na atualidade, datado em aproximadamente 1.600 anos Antes da Era Comum. As 40 tábuas do Akkadian Diagnostic Handbook trazem descrições de sintomas de doenças variadas e, assim como o escrito egípcio, também faz uso de uma inferência mais racional em relação às causas das doenças. Na China, temos o Huang di Nei Jing (Livro do Imperador Amarelo). Os exemplos são inúmeros e apontam a necessidade sempre presente da busca pela origem de um mal (seja ele físico ou espiritual).
Em seu famoso Dicionário do Diabo, publicado entre 1881 e 1906, o escritor e jornalista norte americano Ambrose Bierce, com o veneno que lhe é peculiar, descreve a palavra diagnóstico como “a previsão que um médico faz para a doença do paciente de acordo com seu pulso e seu bolso”. Mesmo que pareça um ataque um tanto duro, não deixa de ser um pouco verdadeiro para a sua época. A prática do diagnóstico, até bem recentemente, era vista mais como uma arte, ou um processo adivinhatório, do que como algo a ser levado realmente a sério.
Este cenário começa a sofrer profundas mudanças a partir do fim do século XIX, juntamente com o surgimento de novas tecnologias e conhecimentos que mudaram o modo de identificar e de tratar os males do corpo humano. O estetoscópio de René Laennec, o raio-x de Wilhelm Conrad Röntgen e o esfigmomanómetro de Scipione Riva-Rocci são apenas alguns dos exemplos dos aparatos que ajudaram nessa revolução técnica.
Entretanto, não podemos esquecer a dimensão pessoal e humana de cada paciente. É o que nos dizem aqueles casos mais complexos, por exemplo; onde os exames e testes revelam pistas falsas, enquanto a verdadeira causa de uma doença brinca perigosamente de pique-esconde ou se disfarça para enganar o médico que está à sua caça. Nesses casos, a anamnese pode ser uma aliada fundamental. Mas isso vai depender, e muito, de fatores como a qualidade da escuta, da perspicácia e do repertório do profissional que a irá conduzir.
Quando um paciente descreve os sintomas que sente, não se trata apenas de uma informação que está sendo passada, mas de uma narração. “As narrativas não apenas relatam e recontam experiências ou eventos, descrevendo-os a partir da perspectiva limitada e posicionada do presente”, escreveu o antropólogo Byron Good em seu trabalho Medicine, Rationality and Experience. “Eles também projetam nossas atividades e experiências no futuro, organizando nossos desejos e estratégias ideologicamente, direcionando-os para fins ou formas de experiência imaginadas que nossas vidas ou atividades particulares pretendem cumprir.”
Essas narrativas são capazes de abrir novos mundos e possibilidades e, não raramente, costumam vir recheadas de metáforas que demandam não apenas conhecimento técnico para suas interpretações. No livro Diagnosi e Destino, recentemente traduzido no Brasil pela editora Âyiné, o psiquiatra e psicanalista italiano Vittorio Lingiardi afirma que a prática clínica é feita de histórias construídas também pelas metáforas. Segundo ele, “o próprio diagnóstico pode ser visto como uma tentativa de traçar eventos aparentemente não relacionados. Desistir de metáforas é quase impossível”.
HISTÓRIAS PARA SEREM OUVIDAS
Em tempos como os de hoje, a velocidade se tornou o signo que rege a vida de qualquer profissão. E com a medicina não é diferente. Com essa louca corrida contra o relógio, saber ouvir é uma arte cada vez mais esquecida, mas que precisa ser resgatada pelo bem de uma atividade que está cada vez mais mecânica e automatizada. Com o crescente desenvolvimento da tecnologia, o que irá diferenciar o homem da máquina será justamente a capacidade de sentir e raciocinar, mesmo por entre narrativas desencontradas e carregadas de metáforas que só a cognição humana é capaz de gerar e absorver.
Como sabiamente observou Giorgio Bert, médico e professor de semiótica médica na Universidade de Torino, em seu Medicina Narrativa: “Cada doença pode ser narrada de maneiras diferentes. Construir uma aliança terapêutica entre médico e paciente requer uma narrativa compartilhada, que se constrói momento a momento, dia a dia e nunca é definitiva.”
Narrar, escutar e desvendar formam um conjunto de ações e impulsos presentes na história humana desde os seus primórdios. Na profissão médica, principalmente na do clínico, saber observar, escutar, absorver e interpretar representam verdadeiro diferencial em época de hipervelocidade e mecanização. Além de uma experiência que pode ser reveladora, escutar atentamente as narrativas de pacientes pode revelar aquelas pistas que não são tão óbvias e ajuda na construção de vasta e preciosa bagagem, que pode fazer toda diferença na hora de ajudar alguém.
Quanto mais histórias, mais referências.
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