A palavra distopia remete ao termo grego “dis” (doloroso, mal) somado a “topia” (lugar - τόπον), e pode ser considerada um neologismo derivado do conceito de utopia que não deu certo e gerou o mal.
Na literatura, temos diversas utopias e distopias, às vezes próximas o suficiente de nossa realidade a ponto de nos assustar e se revelarem verdadeiras profecias modernas, como as histórias de ficção criadas por George Orwell e Aldous Huxley que se confirmaram em muitos pontos com o passar do tempo e que nos ajudam inclusive a compreender nosso cenário político atual.[1]
Mas, recentemente, uma nova forma de utopia surge no horizonte, trazida pelos ventos da Bioética: o Transumanismo. E com forte potencial para se tornar uma distopia.
A ideologia transumanista pode ser resumida da seguinte forma: somos todos produtos de uma evolução aleatória sem propósito nenhum. Como tal, evoluímos biologicamente de forma não organizada. Nossa moralidade também não evoluiu de forma a estar pronta para lidar com os novos desafios impostos pelo progresso e, por isso, seres humanos são problemáticos. Para sanar esses defeitos, podemos utilizar a biotecnologia aliada à nossa racionalidade para aprimorarmos nosso físico, nossa mente e nossa moralidade e vencermos os desafios do futuro.
Os transumanistas têm uma preocupação válida: o aumento do controle sobre a natureza pode ser perigoso. Ou alguém duvida do poder de fogo de uma bomba atômica?
Entra em jogo, então, a solução proposta pelos famosos bioeticistas e entusiastas do aprimoramento humano, Julian Savulescu e Ingmar Perrson.
No livro Unfit for the Future[2] (Inadequados Para o Futuro), os bioeticistas mostram alguns dos problemas que se avolumam no horizonte:
- a população da Terra cresce além de qualquer controle;
- os recursos hídricos e fósseis estão acabando;
- o aquecimento global é um problema que pode destruir nações inteiras;
- as pessoas simplesmente não colaboram umas com as outras pensando no futuro global;
- a evolução moral não acompanha o ritmo da evolução científica e tecnológica.
E dão sua solução: o Transumanismo aplicado à nossa moralidade.
Livro Unfit for the Future, de Ingmar Perrson e Julian Savulescu.
Segundo os autores, uma elite tecnocrática esclarecida poderá manipular nossos valores e nosso caráter por meio de substâncias químicas e alterações genéticas para que nós sejamos mais obedientes e mais altruístas, menos resistentes, e dispostos a aceitar a redução de nossa privacidade o aumento de poder de um governo central com intenções globalistas, capaz de utilizar medidas até mesmo impopulares para controlar a natalidade no mundo, reduzir a poluição e a destruição da camada de ozônio e acabar com as guerras e a fome.
Esta seria a medida salvadora de nosso futuro, impedindo o ser humano de causar o Grande Mal que poderia acabar com toda a existência humana na Terra ao usar de forma irresponsável os recursos limitados e a poderosa tecnologia alcançada.
A manipulação do caráter alheio se justifica pela responsabilidade moral de não permitir que o mal aconteça e de agir em favor da coletividade, da sobrevivência da espécie e da busca do igualitarismo.
As necessidades materiais e formais para tal empreendimento são assustadoras. Será necessária uma elite tecnocrática que concentrará o poder e a tecnologia suficiente para manipular o Espírito de povos inteiros, controlando sua moralidade e suas crenças (eles enfatizam que tal medida poderia ser libertadora). A democracia é vista como um problema[3] e o despotismo esclarecido é visto com muita simpatia. Na verdade os proponentes do Transumanismo ocupariam as cadeiras de tal despotismo.
E se todo este texto parece uma grande peça de ficção científica, saiba que alguns experimentos já acontecem, e “maravilhosas” drogas como a Psylocibina já provocam comprovadamente as alterações psíquicas almejadas.[4]
Por trás dessas idéias estão editores de periódicos científicos respeitados no mundo inteiro, pesquisadores detentores de verbas milionárias e influentes professores que ocupam cátedras nas grandes universidades de renome internacional. E verbas, muitas verbas, de corporações bilionárias (ou trilionárias, quem sabe).
Uma brevíssima análise dialética desse enredo de ficção científica nos permite levantar algumas questões incômodas:
Controlar o ser humano por meio de manipulações genéticas e tecnológicas somente servirá para aumentar ainda mais a possibilidade de mau uso do poder, que estará incrivelmente mais concentrado. Controla-se quem usa a tecnologia, logo, a potencialidade de destruição aumentaria ainda mais!
Quem garante que a moralidade e a racionalidade que coordena o projeto – nossos iluminados bioeticistas transumanistas – não é produto aleatório do acaso e, portanto, repleto de limitação e imperfeição? Como garantir um parâmetro seguro numa cosmovisão destituída de objetivismo moral explicável? E mesmo que tal parâmetro universal pudesse ser oferecido, quem garante a moralidade do agente?
Um governo poderosíssimo liderado por uma elite esclarecida, concentrando meios tecnológicos para manipular o caráter e a mente de seus servos, invadindo a privacidade alheia, possuindo caráter global e justificado pela necessidade de igualitarismo e beneficência não seria o anseio por uma tirania perfeita? Não seria esta a velha especulação de uma cidade governada pelo Rei Filósofo conforme Platão mostrou em A República?[5]
A forma dessa proposta já foi vista várias vezes em nossa história, e o resultado sempre foi o mesmo: morte. Morte de milhões de pessoas que não se adaptaram ao projeto, ao modelo. Chame de mentalidade revolucionária[6], comunismo, nazismo ou o que mais quiser, a mesma fórmula se repete de um jeito aterrorizante.
Cria-se uma imagem paradisíaca a ser alcançada nesta realidade, algo que o grande filósofo exilado da Alemanha, Eric Voegelin, chamava de “Imanentização do Eskathón”. Este termo muito complicado explica o anseio de algumas ideologias totalitárias e perigosas em encarnar na nossa realidade um ideal utópico e fazer o que for necessário para alcançá-lo, mesmo que seja a concretização de males e crimes terríveis. Pois, se o objetivo é tão nobre, que medida seria realmente inadmissível? Ou assim pensam e pensaram os defensores das mais sanguinárias concentrações de poder que a humanidade já viu.[7]
É como o nazismo e o comunismo realmente funcionaram: religiões sem Deus controladas apenas pela vontade tirânica de alguns homens e pela ilusão e obediência cega das massas.
Por fim, toda a proposta transumanista incorre no risco de cair no fenômeno chamado de Paralaxe Cognitiva pelo filósofo Olavo de Carvalho: o “deslocamento, na obra de um pensador, entre o eixo da especulação teórica e o da experiência concreta que ele tem da realidade. É o resultado de um esforço de abstração mal dirigido, que acaba por tomar como separados efetivamente os elementos que tinham sido apenas afastados em imaginação, por facilidade de método.”[8]
Será que em meio à humanidade moralmente defeituosa, resultante de um processo cego e caótico de evolução natural imperfeita, despreparada para enfrentar os perigos de um futuro incerto, tendenciosa ao egoísmo e necessitada de condução, encontraremos os nossos pretensos mestres iluminados para moldar a mente, o coração e o corpo das massas e dirigir os rumos da política internacional? Isto é, entre os pobres seres humanos limitados e moralmente defeituosos, quem são eles que anseiam por controlar senão outros seres humanos limitados e defeituosos?
Parece-me que estamos diante de mais uma das inúmeras crias do bom e velho iluminismo secular, e de toda a sua incoerência existencial. Não é à toa que alguns pensadores consideram o Transumanismo “a mais perigosa ideia do mundo”.[9]
Pessoalmente, concordo mais com Margaret Somerville, que enuncia de forma mais clara qual é realmente a ideia mais perigosa de todas: “achar que não há nada de especial em ser humano”[10], um dos elementos fundamentais para a visão destituída de significado transcendental do Transumanismo.
“Se não há nada especial em ser humano, não há nada de essencial em nós que devamos preservar às futuras gerações. Isso significa que somos livres para usar a nova tecnologia, como advogam os transumanistas, para alterar a humanidade de forma que nos tornemos ‘pós-humanos’, isto é, não humanos, conforme se depreende. Em outras palavras, haveria muito menos ou até mesmo nenhum limite ético para se buscar o propósito utópico dos transumanistas: que os humanos se tornem um modelo obsoleto.”[11]
E você, está obsoleto e pronto para ceder à distopia Transumanista?
Prof. Dr. Hélio Angotti Neto é Coordenador do Curso de Medicina do UNESC, Diretor da Mirabilia Medicinæ (Revista internacional em Humanidades Médicas), Membro da Comissão de Ensino Médico do CRM-ES, Visiting Scholar da Global Bioethics Education Initiative do Center for Bioethics and Human Dignity, Membro do Comitê de Ética em Pesquisa do UNESC e criador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina (SEFAM).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6394379738440524
SEFAM: www.medicinaefilosofia.blogspot.com.br
Mirabilia Medicinæ: http://www.revistamirabilia.com/medicinae
[1] ANGOTTI NETO, Hélio. A Profecia Moderna de George Orwell. Blog Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina. Internet, http://medicinaefilosofia.blogspot.com/2014/09/1984-profecia-moderna-de-george-orwell.html
[3] Não defendo que a democracia seja perfeita. Ela realmente tem lá seus problemas.
[4] TENNISON, MN. Moral Transhumanism: The Next Step. Journal of Medicine and Philosophy, Aug ust 37(4), 2012, p. 405-16.
[5] PLATÃO. A República. Lisboa: Editora Calouste Gulbekian, 2014.
[6] CARVALHO, Olavo de. A Mentalidade Revolucionária. Diário do Comércio, 17 de agosto de 2007. Internet, http://www.olavodecarvalho.org/semana/070813dc.html
[8] CARVALHO, Olavo de. Menti para os Leitores. O Globo, 10 de julho de 2004. Internet, http://www.olavodecarvalho.org/semana/040710globo.htm
[9] FUKUYAMA, Francis. Transhumanism. Foreign Policy, 23 de outubro de 2009. Internet, http://foreignpolicy.com/2009/10/23/transhumanism/
[10] SOMERVILLE, Margaret. Bird on an Ethics Wire: Battles about Values in the Culture Wars. Chicago: McGill-Queen’s University Press, 2015.
[11] Texto original de Margaret Somerville encontrado em: SMITH, Wesley J. Human Exceptionalism: Life and Dignity with Wesley J. Smith. National Review, 20 de agosto de 2010. Internet, http://www.nationalreview.com/human-exceptionalism/324628/preserving-human-exceptionalism-necessary-preserving-humanity-wesley-j